A MINHA ÓPERA FAVORITA
Já, vida fora, tive várias, como é evidente, até a Bohème já foi minha favorita, e uma das
primeiras, e Rigoletto, e Tosca, enquanto ia ficando mais fino, e
depois foi mais Valquíria, e ainda
depois foi a dúvida Bodas/D.João que
ainda hoje permanece, e foi Tristão,
e hoje é esta. Achei-a a mais moral de todas. Digo eu, claro. Uma ópera que
esteve por um tris para não ser aquilo que foi, ou como hoje a conhecemos. E
esteve para não ser aquilo que veio a ser por uma questão de moral. E moral
política.
Desaparecido Meyerbeer, e com Wagner ainda em fase de
afirmação internacional do seu génio, tocava a Verdi a liderança do mercado
mundial da ópera. E Verdi não deixa de ter em mente o futuro do melodrama. O
que não quer dizer que renegue o passado. Acaba de se safar da aventura
político-parlamentar de Turim. Está aborrecido com a política, mas não pode
deixar de prestar atenção ao mundo que o rodeia. Em Busseto querem-no outra vez
candidato ao parlamento.
- Não posso aceitar. Perde-se muito tempo. Discute-se
demasiado. O mais que posso fazer é recomendar-vos um sucessor. Sim, um homem
frontal e sincero, e de formação liberal.
E o interessante é que por entre as amarguras da sua
hostilidade pessoal à vida política, vai maturando a sua ópera política entre
todas, o D. Carlos.
Os tempos iam agitados pela Europa. Karl Marx publicara O
Capital em 1866. D. Carlos vai subir à cena, em Paris, em
1867.
E as
nuvens de uma grande tempestade política continuam a pairar sobre a península
itálica. A capital transfere-se para Florença, daí resultando forte agitação de
massas no Piemonte. Verdi diz a isso:
- Aos torineses falta o verdadeiro
amor pátrio, e as mais belas e espirituais intenções desvanecem-se neles logo
que os interesses materiais entram em jogo.
O povo vai sendo incitado pelos
partidos a uma nova guerra contra a Áustria. A Áustria mantém o Veneto na sua
posse e em Abril de 66 a Itália alia-se à Prússia na estratégia de retirar aos
austríacos a hegemonia sobre a Confederação dos Estados Germânicos. A guerra
está aí a rebentar. Verdi vai confiando os seus pensamentos aos amigos mais
chegados.
- A todo o momento estou à espera de
ouvir troar o canhão. Não me admirava se uma manhã destas uma bala viesse fazer
ricochete nas paredes do meu quarto. Mas enfim, a guerra terá de se fazer. Essa
coisa do Congresso é uma plaisanterie…
Abandonar Itália? É uma primeira
intenção. Porque vive numa zona sempre exposta aos combates. Mas falta-lhe
ânimo para tanto. Deixar a Itália, muito bem. E ir para onde? E fazer o quê?
Para já, vai respeitando a encomenda
parisiense e vai compondo o D. Carlos.
Acabara o terceiro acto. Começava o quarto. Acabado o quarto acto, a ópera era
de considerar concluída. O quinto fazia-se por si. E depressa. Oito, quinze
dias de trabalho bastavam. O libretto é francês, mas tenho quase a certeza de
que Verdi o pensa musicalmente em italiano; e pensará, claro, fazê-lo
representar mais dia menos dia em italiano e em Itália. Em fins de Junho
entregará o original e logo depois partirá para Paris para começar os ensaios.
- Sabe que voltei a escrever ao
Escudier… a pedir-lhe que transmitisse ao Senhor Perrin a minha vontade de
continuar em Itália para além do tempo combinado. Se eu for imediatamente para
Paris, duvido que me seja possível acabar a ópera. Falo sério. Não sou capaz de
trabalhar em Paris.
Só sabe compor quando esta na sua
casa de Sant’Agata. È fatto cosi. Em Sant’Agata trabalha muito, os temas
vão-lhe ocorrendo, as situações
dramáticas vão ganhando consistência musical. Está concentrado. Mas nem por
isso o D. Carlos progride rapidamente.
A 18 de Junho o exército italiano
entra em combate, e a 24 sofre a famosa derrota na batalha de Custozza, um
acontecimento que marca a História contemporânea de Itália e que serve de fundo
ao famoso filme de Luchino Visconti Senso.
Mas Verdi também não quer ficar em
Sant’Agata. Génova? É uma hipótese. Ele gosta da cidade.
- Entre tantas batalhas, tanto fogo
e tanta agitação, esta ópera, ou vai sair melhor do que as outras, ou será uma
coisa intragável…
A mulher, a Strepponi, desabafa com as
amigas:
- Ai, amigas, não me falem em
Sant’Agata. Se ao menos eu arranjasse por lá uma família com quem pudesse
trocar meia dúzia de palavras… oh, mas o meu Verdi tem aquele carácter de
ferro… gosta do campo mesmo no inverno… aquelas planuras geladas, aquelas
árvores nuas como esqueletos. Ele sabe criar prazeres, ocupações, cada estação
do ano tem o seu interesse para ele…
Eu faço ideia. Ela, Giuseppina
Strepponi, uma citadina, uma cantora lírica habituada ao cosmopolitismo
milanês, ali metida. Indo para Génova seria um alívio para ela, ali mesmo
defronte do mar, a poder decorar a casinha ao seu gosto. Ah, os boatos que
corriam…
- A Áustria cede Veneza ao imperador
dos franceses. É o que leio nos jornais. Estás a ouvir, Giuseppina? Se eu
mandar dizer isto ao Escudier ele bem pode fazer uma ideia do meu estado de
espírito. Como é possível? O Escudier é sensível a estas questões da pátria e
da honra. Ele que se ponha no meu lugar.
A questão de moral de Verdi era de
uma simplicidade atroz: tinha um contrato de trabalho para respeitar na capital
de um império que daí a dias poderia vir a aceitar a oferta feita por outro
império de um pedaço de território da sua pátria. Da sua amada Itália! E sem
que os italianos tivessem metido para aí prego ou estopa.
- E agora diz-me lá Giuseppina… que
fará o imperador francês com o Veneto? Devolve-o a nós? Fica com ele? Que
ganham os austríacos com isso? E entretanto, Paris acende as luminárias! E o
Escudier vai ter de dizer ao Senhor Perrin que eu não estou capaz de escrever
uma nota…
Franz Joseph, imperador dos
austríacos e Napoleão III, pela França, negoceiam a paz.
Giuseppina Streponni escreve cartas:
O
meu Verdi anda de um humor muito negro. Mas também nenhum italiano que se preze
pode andar bem disposto, e ainda menos os que se vêem obrigados a ir à capital
dos fanfarrões. E da maneira como anda o meu Verdi não me surpreenderia nada
que mandasse tudo para o diabo, o contrato, o Perrin, a Opera, a Paris e tudo o
mais. E se fosse meter outra vez em Sant’Agata.
E Verdi pede directamente a Monsieur
Perrin a desvinculação do contrato com a Opera. Monsieur Perrin recusa. O contrato para montar o D. Carlos é para ser cumprido.
O exército italiano averba nova
derrota. Em Lisse. A 20 de Junho. A neura de Verdi adensa-se. O humor de Verdi
é cada vez mais fúnebre.
- Fiz os possíveis e os impossíveis
para anular o contrato com a Opera. Não consegui. Agora imaginem-me lá vocês um
italiano como eu, que tanto ama a sua terra, a trabalhar como um doido em
Paris.
De facto, vai a Paris num pé e vem
noutro. O tempo à justa para passar as partes dos solistas. Mas ainda não
acabou o trabalho de composição da ópera. Ver-se-ia se nos Pirinéus, num lugar
de nascentes de água fresca, num apartamento de hotel, se conseguia terminar a
partitura.
Consegue. D. Carlos fica pronto.
Aos primeiros dias de Setembro Verdi está em Paris.
Ensaios de conjunto. A Opera (la grande
bottega) é uma máquina imponente e pêrra. Nada funciona bem e depressa.
Passa-se o Setembro e passa-se o Outubro. A paz com a Áustria é assinada em
Viena. A Itália sente-se humilhada. Em Paris, as cosias com o D. Carlos não há meio de andarem.
Entrava Dezembro. Quando estreará o D.
Carlos? Não se arrisca uma previsão.
Em Itália rebentam os tumultos. Teatros fechados. Verdi
sabe disso e sente-se mal por estar em Paris, no bem-bom, trabalhando que nem
um condenado, sim, mas moralmente desfeito. Ensaios e mais ensaios. E o D. Carlos sem atar nem desatar.
Suspensões. Adiamentos. Incompetências. Doenças deste e daquele, verdadeiras e falsas. Más
vontades, ui!
Dona Strepponi já deve ter feito algumas amigas em Paris.
Deve estar a dirigir-se a elas quando a ouço daqui dizer:
- Pois se for da vontade de Deus… e das tartarugas da
Opera… o D. Carlo… ou o Don Carlôs, se as minhas amiguinhas quiserem… subirá à
cena lá para os fins de Janeiro. Mas digo-vos que é um castigo para todos os
pecados cometidos por um compositor ter que montar uma ópera neste vosso teatro
de tramóias e maquinismos feitos de mármore e de chumbo… oh, amigas, o que eu
quero é ir depressa para Génova, tratar da mobília do nosso apartamento, da
decoração e tudo o mais. Já não posso é ouvir mais discussões sobre se o Faure
pode fazer assim, ou se a Sass pode fazer assado. Dio Santo, che noia…
1867 – outro ano maldito para Verdi. Outro annus horribilis. Para lá dos
acontecimentos políticos e militares, para lá dos aborrecimentos com os ensaios
na Opera, a 14 desse mês de Janeiro morre o velho Carlo Giuseppe, o pai, 82
anos. Um pouco mais tarde, o querido amigo e libretista Piave ficará
paralítico. Está à conversa, ao serão, com a mulher:
- Foi um ano tão maldito como o de 1840. Não achas? Desgraças
e mortes. Não vejo o dia de deixar este grande país…
- O maior país do mundo…
- Está bem, não contesto isso. Mas o que quero é chegar a
casa…
- Tem calma. A estreia afinal está para quando?
- Fins de Fevereiro…
- Oh, filho… só de pensar que no dia a seguir à estreia
todos os nossos baús estarão fechados e prontos a seguir viagem…
- Pois é. O pior é se em fins de Fevereiro o D. Carlos ainda não está em condições de
ir a cena…
- Tens um pressentimento?
- Não sei…
E não estava.
Sai Fevereiro, entra Março. Dia 9: ensaio geral. Dia 11:
estreia.
Grande solenidade. Presente o tout Paris, imperador, imperatriz, ministros, embaixadores, gente
da política, das artes, das letras e das ciências. Cantam a Sass, o Faure, o
Obin, o Morére e o David. Heinl, o chefe de orquestra, não tem temperamento
para aquelas vidas verdianas. Slancio,
é o que é. É o que ele não tem. É alemão. A orquestra também não é grande
espingarda, nem se recomenda pela precisão. A execução em geral é frouxa. A
banda interna é dirigida às três pancadas (e consideravelmente desafinada) por
Adolphe de Sax – o inventor do saxofone…
Tantos meses de esforço, tensões, irritações, que vão
desaguar num morigerado sucesso, um sucesso de circunstância. Inspiração grande
do autor, sim, sem dúvida, e grande nobreza de escrita, e no entanto muito
pouco calor.
Qual é o real valor deste D. Carlos se apreciado no dia seguinte ao da estreia? Pois está instaurada a polémica. As discussões,
públicas e privadas, sobem de tom. Critica-se a direcção da Opera, o primeiro
teatro lírico de França, e por uma razão magnificamente medíocre: já que se tinha
de encomendar um trabalho inédito para a grande Exposição Universal (a
inaugurar daí a dias), porquê escolher um estrangeiro?
- Que me dizes?
- Pouco me importam as opiniões, sabe-lo bem. O trabalho
está feito. O contrato está cumprido. Não teve o sucesso que eu próprio
esperava, mas não tenho tempo para pensar nisso.
– O que vale é que vamos já amanhã à noite para Génova…
- Ora é isso mesmo o que mais importa…
Cerca de dez anos antes. Saint Saëns, um decidido
anti-verdiano, já tinha escrito um artigo acerca das Vésperas Sicilianas aconselhando Verdi a compor óperas sobre as
batalhas de Pavia e Watterloo. E desta vez criticava os seus compatriotas com
responsabilidades na matéria por abandonarem os jovens compositores franceses e
aplaudirem um estrangeiro.
Críticas. O Moniteur:
Clarétie diz de Verdi que tem 80.000 libras de renda, que o seu nome é um dos
símbolos da liberdade da pátria, que foi um parlamentar respeitado, que é
costume ser levado em triunfo nos teatros, abraçado por todos, aclamado por
todos, louvado por todos, e pergunta-se que mais quererá ele da vida. Théophile
Gautier diz que a música de D. Carlos,
ainda que possa não ter agradado ao público, sem dúvida que o surpreendeu,
porque a força dominadora que lhe fundamentava o génio aparecia em toda sua
simplicidade, a mesma simplicidade que o havia tornado universal, mas agora
alicerçada num desenvolvimento maior dos meios harmónicos e de novas formas
melódicas.
Também houve quem dissesse que para o êxito muito mediano
de D. Carlos pesou o facto de a
imperatriz Eugénia ser uma declarada wagneriana e deveras hostil ao italianismo
musical, e sendo além disso mulher muito devota e muito pouco progressista.
Terá ido aos arames, a imperatriz, na cena
entre Filipe II e o Grande Inquisidor, e quando o rei brada tais toi, prêtre! E diz quem viu
claramente visto que nessa altura a imperatriz virou pudicamente as costas à
cena. A multidão irada invade o cárcere onde está o infante D. Carlos e a imperatriz fica fula...
Bom, mas nem por isso a imperatriz deixou de convidar
Verdi para o castelo de Compiégne, mostrando-lhe que era conhecedora do
trabalho dele, e até das obras que nunca tinham subido à cena parisiense.
Verdi partia para Génova mas deixava estipulados os cortes a fazer nas
subsequentes representações, o 2º acto, a ária do soprano, o dueto de barítono
e baixo, a cena da revolta depois da morte de Posa. Já iria a pensar no seu D. Carlos cantado em italiano.
Verdi partia para Génova, está bem,
mas antes bem tinha calcorreado os relojoeiros mais finos dos Grands Boulevards
e da Étoile, porque não se esquecia da sua Peppina Strepponi. Vá, tome lá para
si, sua tola, este relógio numa bracelete de ouro esmaltado com as suas
iniciais gravadas, que tal…
Chegada a Génova Dona Strepponi
parte para a tarefa de mobilar e decorar o novo apartamento.
Mas Verdi vai a Sant’Agata.
A revolução industrial
fazia-se sentir. Chegava a idade das máquinas. Inaugurava-se o mundo moderno. E
como Verdi era um músico invulgarmente curioso pelas verdades da vida, com a
civilização das máquinas sente-se no seu elemento, ainda que continuando a
plantar as suas árvores e a tratar dos seus jardins. O D. Carlos? Como? Não era nada com ele. Escreve a um amigo em
Londres. Manda vir livros de agricultura. Anda a cismar num modo novo de
irrigação artificial das suas propriedades e sabe que há em Inglaterra umas
máquinas catitas para isso, umas máquinas cujas chaminés medirão os seus bons
quinze metros de altura. Também precisa de uma máquina para extrair água da
ribeira que passa perto, e de uma conduta subterrânea que calcula terá uns seis
metros de profundidade e 25 metros de comprimento – não contando com o poço de
sete metros de fundo
- Ai rapazes… todo o meu santo dia é passado lá em baixo,
a estimular e a dirigir os operários. Se me disserem que o meu D. Carlo não
vale realmente um pataco… ai, amigos, sinceramente… não me aquece nem me
arrefece. O que não queria era que me contestassem a minha habilidade como
mestre de obras. Isso é que eu vos levaria mesmo a mal…
Precisava de passar uns dias sossegados e esquecer tudo o
que de desagradável se passara em Paris.
Teria Verdi chegado a folhear algum exemplar do
recentemente publicado O Capital?
Não se sabe.
similitudes..interessante esta perspectiva
ResponderEliminare, mais não sei dizer ...
ResponderEliminarExcelente, este contextualizar da criação artística e musical nas circunstâncias pessoais, históricas e políticas (morais...) do seu tempo!
ResponderEliminarParabéns.