REGRESSO E RECOMEÇO
Noutro dia recordei os meses de Janeiro e
Fevereiro de 1970. Lisboa foi uma cidade
húmida, cinzenta, persistentemente chuvosa e de aragens cortantes nesses dois
meses. Chegara eu ao cais de Alcântara no meado de Dezembro, o pior tempo que
Lisboa teve para acolher aquele herói bronzeado e meio envergonhado que chegava
dos trópicos, que ainda duas semanas antes gozara a plena saison das praias da Ilha de Luanda e comera boas bacalhauzadas
debaixo dos coqueiros de outra ilha, a do Mussulo.
Era o tempo de regressar. Eram os prousteanos
passos a caminho do tempo reencontrado. Era o tempo de mudar de água de
colónia. Era tempo de chegar, rever pai e mãe, e reparar que se sobreviveu.
A desmobilização. A libertação para todo o
sempre dos vínculos bélicos. As despedidas finais dos companheiros, testemunhas
do meu medo e da minha insuspeitável coragem.
Regressar de vez a casa, ao torrão, à Baixa
de Lisboa iluminada para o Natal, ao Rossio, ao Chiado, à Brasileira, ao S.
Luís, ao S. Jorge, ao Tivoli, ao Império, ao Monte Carlo - à roupa civil, à
leveza de uns sapatos finos e macios, à cabeça descoberta. E tudo isso para
sempre. A parte até aí mais dramática da minha existência estava cumprida, as
minhas contas com a sociedade e com a pátria estavam reguladas. Para sempre. A
primeira noite dormida em casa depois de anos. Parece pouca coisa. Mas não é. E
no entanto, julgava poder ter sido mais feliz nesse momento do que realmente
fui.
O acordar na manhã de chuva, às seis e meia,
o sair para a rua, loucamente, sem destino, só para ver gente normal que não se
preocupava com emboscadas, que cumpria o fadário de uma outra vida real, menos
real, mas que na altura me pareceu ainda
mais real do que aquela que acabava de viver, urgências de emprego, ripanços de
fim de semana, horários, patrões, chefes, a Lisboa cinzentíssima, o Metro, o
autocarro, as horas, o guarda-chuva, o almoço, correr, parar, esperar. O
ordenado ao fim do mês. Tudo também magicamente visto e vivido (o Aleph,
de novo) nessa minha primeira manhã de chuva, depois da guerra.
Dentro em pouco, mais ou menos um mês, regressaria
à minha natural e triste condição de pequeno-burguês. Voltaria a essa realidade
sempre adiável de mexer eternamente nos
mesmos papeis, de celebrar todos os dias de toda a vida os mesmos rituais
profanos, de acordar todos os dias à mesma hora para cumprir as mesmas tarefas,
aborrecer-me todos os dias com os mesmos problemas, até ao fim da vida útil, e
casar e ter filhos, e daí a pouco ser avô, e viver a situação cheia de todos os
limites e pré-determinações, eu, arribado às velhas plagas destes reinos, e
vindo de uma vida sem muitos limites, ou onde todos os limites poderiam ser
ultrapassados e em que havia homens que tinham como soberano ideal de vida
matar-me: eu, numa situação que era em si própria um limite.
Não gostei nada dessa antevisão do meu futuro
feita numa nova manhã de chuva, a ver os
outros apanhar autocarros. Tinham-me obrigado a arriscar a vida para isto, e
por isto?
De maneira que me achei, no regresso e no
recomeço, pouco feliz. Regresso a onde e recomeço de quê?
Não, de facto: daí em diante ninguém me
queria matar. Mas não me animava a grande vontade de reiniciar uma existência;
de lançar bases estranhamente sólidas de vida, projectos pessoais, prazos,
opções, liberdades. Liberdades de quê e para quê? Viver? Como? Com todas as
horas marcadas, previamente destinadas e sem pinga de aventura, com todas as
promoções profissionais pré-definidas, com todo o formato dos dias
antecipadamente destinado até à hora de uma aposentação, sem companheirismo e sem
risco?
Ia fazer 27 anos.
Lisboa era uma cidade com grande número de
filhos seus em armas, mas não era, lagarto, lagarto, lagarto, nenhuma Berlim
devastada. Ninguém gostava de trazer a lume as incidências da guerra de África.
À superfície, era como se nada estivesse a acontecer - como, de resto, já se
passava em Luanda. E os que tinham visto alguns horrores também, já se sabe,
não se alambazavam na conversa - talvez ninguém os acreditasse. O espectro de
uma guerra podia (quando muito) sentir-se, ouvir-se, nos cais de embarque,
Alcântara, Rocha do Conde de Óbidos; em Santa Apolónia, no Campo das Cebolas.
Estava presente na lágrima da mãe, na conformação da saudade da namorada. No
silêncio. Na carta. Na mensagem de Natal dos soldadinhos que a televisão passava,
as dedicatórias, e adeus-até-ao-meu-regresso.
Com 27 anos ainda estava a tempo de fazer da
vida o que quisesse. Um triunfo, uma derrota ou um empate. Como na guerra.
Mas as vontades fortes de fazer da vida
pessoal coisa bonita e que se visse, e que me tinham alimentado a alma por três
anos e onze meses, e me tinham feito ansiar pela hora incomensuravelmente feliz
do regresso... como que se haviam esfumado. Fim da tropa igual a fim dos sonhos
acalentados para a não-tropa. Desmobilização igual a embate com a outra
realidade, o emprego, o salário, a rotina.
E de súbito, à chuva da manhã nova dos
autocarros e dos assalariados felizes, deixara de me apetecer fazer, pensar.
Deixara de me apetecer sonhar .
Apetecia-me, sim, sem dúvida, um começo, ou
um recomeço. Apetecia-me reencontrar na cidade a minha sombra perdida, e daí
partir para onde ainda não tivera tempo de partir. E chegar, possivelmente.
Chegar onde? Muitas vezes, a tragédia mais íntima, ou o simples desconsolo,
estão no chegar. É bom, muitas vezes, partir. Nem sempre chegar é tão
compensador como quando se pensou ao partir. Há uma vaguíssima decepção de
chegar, mesmo aos lugares e aos estados mais sonhados. Estava de facto no tempo
de chegar a qualquer lado, de mim e dos outros, a qualquer estado. Mas deixara
de me apetecer.
E então, para, exactamente, não chegar, pus-me a vaguear.
Não parava em casa. Cinema todas as noites.
Cafés ao longo do dia - os belos e aconchegados cafés do inverno de Lisboa, que
ainda existiam e onde ainda vagamente se podia viver alguma coisa. Lá deveriam
ainda parar os amigos que há quatro anos lá tinha deixado. A Brasileira ao fim
das tardes.
O Gelo, às vezes. A Nacional. Uma caneca e um bife na Trindade. A
Ceuta, talvez, lá mais para a noite. O Império, geralmente ao sábado. O Monte
Carlo depois de jantar. Umas gambas no Ribadouro – maus hábitos a erradicar. O
Palladium depois de almoço, às vezes. Ou a Bijou, ou a Veneza, ou a Paulistana,
ou a Mourisca. E não encontrava ninguém, nenhuma vida, nenhum pensamento,
nenhum passado. Quando não se encontra um passado dificilmente se vislumbra um
futuro.
Nenhum dos amigos e companheiros da minha
pretérita vida civil comparecia nos cafés para a cavaqueira. Já duvidava se os
teria de facto conhecido antes das lides da tropa e da guerra. Lisboa era uma
cidade cheia de desconhecidos. Quatro anos é pouco tempo ou é tempo demasiado.
Sem Salazar, Lisboa quase parecia a mesma.
Quase. A PIDE chamava-se DGS. Quase...
Eis que estava subliminarmente convocada uma
manifestação contra a guerra colonial. Resolvi que devia aparecer. Resolvi que
tinha imensa autoridade para aparecer.
E apareci. Ainda estava fresco em mim o
frémito do risco. Apareci saudoso de certos primeiros de Maio de cassetetadas e
jactos de água azul no Rossio. Apareci e caminhei. Cartazes. Palavras.
Conversas daqui e conversas dali. A situação do país. Os preços. A vida. A guerra. A política não estava a
ganhar a guerra. Ninguém poderia restituir a ninguém o dom do tempo.
Tomo conhecimento da prisão de alguns vultos
da vida portuguesa. António Maria
Cardoso. Caxias. Não me tinha esquecido.
Os desconhecidos companheiros da
caminhada protestatária vaticinavam o iminente aparecimento do capitão Maltez e
seus cães. Naquela esquina ali. Não, na outra. Ou só lá mais abaixo. E apareceu
- deve ter aparecido, nunca conheci o senhor. Ele ou alguém por ele. Ladridos. Rua
do Ouro, esquina com a Rua de S. Nicolau. Carga de polícia de choque. Embates
metálicos. Correrias. Recuos. Na aflição, acoitei-me numa loja de ferragens que
estava a acabar de correr os taipais. Tinha-me saltado o chumbo recém colocado
num dente.
Passado um tempo voltei atrás. Aquele braço
da manifestação tinha-se dispersado. Rossio. A massa dos manifestantes, afinal,
reforçara-se na rectaguarda. Uma mole compacta de gente caminhava adiante de
mim, mas ao dobrar a esquina do Rossio, de repente, vi avançar um grupo jeitoso
de polícias, uma frente deles, chanfalho desembainhado. Alguém me tinha deixado
na vanguarda da manifestação. Confusão. Corpos. Sons de choque. Uma chinfalhada
que me assenta em cheio nos costados e me faz perder o equilíbrio e o fôlego.
Não era a dor. Era a desonra. Que raio de herói de guerra era eu?
Apareço no Martim Moniz. Fazia parte da minha
moral de ex-combatente protestar contra a situação de combatente. Redimia-me da
minha eventual responsabilidade na guerra.
No Martim Moniz encontro um ex-camarada de
quartel. Conhecia-o mal. Não lhe sabia da qualidade dos amigos. Apresentou-me uns
cavalheiros. E nessa roda, olhando para as correrias que vinham da Praça da
Figueira, desato a língua e ponho-me a falar mal do regime, já não salazarista,
já marcelista. Escoado um quarto de hora de faladura, reparo que os ditos
cavalheiros, bem mais velhos do que eu, me tinham deixado falar, só ouviam o
meu testemunho de ex-combatente enquanto me fitavam. Numa qualquer distracção,
esse meu ex-camarada da tropa puxa-me o braço…
- Tu não me abras mais essa puta dessa boca,
estes homens são todos da situação e um deles até é amigo pessoal do Barbieri
Cardoso…
- Mas então... ouve lá… para que andam aqui
no meio da maralha?
- Podem andar, caralho... observam, só...
observam…
Voltei para casa. À noite, no telejornal, nem
a mais leve referência à manifestação.
Até que, semanas depois, finalmente, encontro
nos Restauradores um amigo da noite
antiga dos pequenos poetas e pensadores de café (coisa que hoje já nem deve existir), uma referência,
enfim, do meu passado civil.
Tinha-se formado em Filosofia: um
acontecimento. Era professor de liceu: segundo acontecimento. Tinha
casado:terceiro acontecimento. Era pai de um pimpolho: outro acontecimento. Uma
vida cheia de acontecimentos. Era natural o ter deixado de aparecer à malta.
Crescera, fizera-se um homem. E eu não. Actualmente a malta até já nem existia,
a vida de café era uma esterilidade completa, nada se resolvia no café. Mostrava as dentolas, de desdém. E reparei
que era ruivo.
- Então e tu, homem... lá estiveste nas
áfricas... que tal é aquilo, chato, não? Pois é... se relermos o Marx com
atenção ainda acabamos por concluir que esta guerra tem mesmo que se fazer, pá.
Deve vir desse encontro a minha aversão aos
académicos capazes de provar uma coisa e o seu contrário na pequena frase de um
certo pensador, os que tudo governam de cátedra e de compêndio sem nada saberem
das vidas. Vidas.
- Então e que é feito de fulano e de sicrano,
tenho andado por aí e não tenho visto ninguém.
Ele também não sabia. Fizera-se homem. Casara.
Era pai. Tomara juízo. Percebera que até o Marx se podia ler de modo a desresponsabilizar o ex-pessoal
intelectual dos cafés. Todos tinham desaparecido, pelo menos dos cafés e das
noites. Os próprios cafés iam desaparecer, estavam a desaparecer, tinham que
desaparecer. Lisboa teria um dia que se modernizar e tornar uma cidade
progressista.
- É pá, ouve, tens de compreender... isto
mudou muito... as pessoas têm a sua vida...
E nesse momento pensei muito depressa que
tinha de arranjar para mim uma vida.
E podia começar por arranjar uma namorada.
Outro encontro com um outro ex-camarada de
tropa. No falecido café Monte Carlo. Também este estava casado.
- Esta é a Cinita, a minha mulher. Tens que
lá ir a casa jantar um dia destes. Aqui a Cinita faz um bacalhau que é cá uma
coisa. Temos que combinar.
E fui. Eu ia onde fosse preciso. Estavam mais
uns amigos e amigas do casal. Mostrou-me as duas salas da casa que tinha
transformado em museu de temática africana e guerreira. Havia máscaras, lanças,
zagaias, peles, bengalas, granadas de mão, espoletas de granadas de morteiro,
boa quantidade de munições, muita escultura em madeira, utensílios agrícolas,
punhais, catanas, peças de fardamento muito gastas, galões de ouro esfarelado,
livros de etnografia e manuais de guerrilha e contra-guerrilha. Chama-me de
parte. Os olhos dele brilham de orgulho.
- Mandei embalsamar a cabeça de uma preta
velha, uma feiticeira que era informadora dos turras e que me foi dada por um
porreiraço da PIDE assim que a acabou de cortar.
E desse jantar saí pelo menos já com uma
namorada apalavrada.
(Não me lembro se já então se ouvia o Lisboa Menina e Moça. Ou o Homem na Cidade, do Carlos do Carmo, mas é um bom momento para os que me lêem ouvirem. Essas e outras.)
Chegar ao Rossio, subir o Chiado, Brasileira, descer o Chiado, passar pelos Restauradores, o Palladium, as ruas interiores, Portas de Santo Antão, Solmar, Avenida da Liberdade, a Veneza, o Lisboa, entrar, olhar, sair, esplanada do Parque. Procurava alguém. Quem? Não sabia ao certo. Fontes Pereira de Melo, a Mourisca, o Monumental, Saldanha, um café no Sequeira, lanchar na Colombo, descer, Alameda, um café no Império (oh, o império), descer Almirante Reis, Praça da Figueira, Rossio, nova vista de olhos pelo Nicola, subir o Chiado, Brasileira.
Um pequeno Sísifo.
O quadro do Almada Negreiros com o Fernando
Pessoa à mesa do café-restaurante Irmãos Unidos ia a leilão. Era arrematado por
uma figura do grande capital, não me lembro já se algum dos Mellos, se o
Vinhas, se o Jorge de Brito. Mil contos. Exorbitância. Quase escândalo.
"Estão a ver como este país continua sempre na mão dos mesmos? Isto tem
que virar!", vociferavam alguns, o populacho. Mil contos por um simples
quadro que nem representava muito competentemente a realidade tal como a
víamos? Um absurdo no contexto do acanhamento da nossa vidinha nacional. E um
sintoma, também, de que algo estava a mudar. Ou quem sabe se tudo não estaria a
mudar sem a gente perceber. Ou muito mais tarde perceberíamos que nada de
importante tinha mudado realmente.
Perceberiamos que quem muda somos nós…
Parecia-me, em todo o caso, que se respirava
uma atmosfera, ainda que muito rarefeita, de fim. Qualquer coisa se aproximava
do fim. Ou seria apenas uma ilusão segredada pelo nosso desejo de que qualquer
coisa mudasse para (como dizia o outro) ficar tudo na mesma e podermos
respirar.
Chegara à vida a tempo de ver a última
emissão (se não estou em erro) do Zip Zip,
o programa de televisão que nos dizia que qualquer coisa de novo poderia ainda
acontecer no país.
O Festival Gulbenkian, que vinha maravilhando
os melómanos de Lisboa ia para uns poucos de anos, chegava também ao seu fim.
O tempo do marcelismo transmitia-me uma
sensação de fim. Embora não fosse tão evidente para mim essa outra e
complementar sensação de surgimento de
um novo tempo. A charneira. Apercebia em mim uma sensação de banalidade. Na
minha vida pessoal também um tempo acabara e nenhuma outra etapa me apetecia
recomeçar, nenhuma ideia nova, nenhum trabalho velho.
Já ia para dois meses o meu tempo de inactividade
e vagabundagem. Mais hoje mais amanhã teria de regressar ao trabalho civil e
recomeçar a vidinha de entrar às nove, saír ao meio dia, entrar às duas e sair
às seis. E talvez casar. E ter filhos. E ter netos. Liberdade.
Liberdade? Para quê? Para aplicar em quê?
Não se punha o caso de procurar emprego
porque emprego já eu tinha. Era só apresentar-me. Era só convocar em mim a
vontade de fazer alguma coisa de inútil - fora a guerra inútil, seguir-se-ia
dentro de momentos o trabalhinho inútil da subsistência e do escritório, bom
dia chefe, até amanhâ, meus senhores, se Deus quiser, chefe, já posso marcar as
minhas férias?, é que lá a patroa já marcou as dela.
E mudei de marca de água de colónia, sim,
alguma coisa de importante eu teria de fazer na vida. Comecei a pôr uma que já
não deve existir e que era boa e se chamava Yardley.
Mas como para tudo na vida deve haver uma transição, depois do Old Spice militaríssimo ainda tinha
chegado a salpicar-me de Sir e de Atkinsons.
Convidaram-me para fazer parte de um grupo de
teatro amador e comecei a ir aos ensaios, à noite.
Mudei mais duas vezes de namorada - ou
acumulei mais duas namoradas, não sei bem. Olhei algumas vezes para o Diário de Notícias. Oferta de emprego.
Boa. Possibilidades de mudança. Boas. Vendedor. A oferta de trabalho de
vendedor era considerável.
Subir o Chiado: Brasileira. Descer o Chiado.
Rossio: Suiça. Praça da Figueira: Confeitaria Nacional. Subir a Avenida:
matinée no S. Jorge. Alexandre Herculano: a Paraíso, a Coimbra. Segunda matinée
no Mundial. Saldanha: Monte Carlo. Praça de Londres: a Mexicana, a Capri.
Avenida dos Estados Unidos: o Luanda. Jantar: casa. À noite: ensaio no grupo de
teatro.
Ai aquele mês de Março e 1970! Sete horas de uma manhã de chuva. Levantar
depressa. Barba, banho. Pequeno almoço. Vestir, depressa. Pôr: uma gravata.
Autocarro. Gente. Caras grisalhas. Corpos automáticos. Gestos mecânicos. Vinte
e cinco minutos de viagem. O escritório.
Brusca sensação. Como se nada me tivesse
acontecido. Como se tivesse regressado ao mesmo lugar de onde saíra às seis da
tarde do dia anterior. Caras e olhares. Conhecidos/desconhecidos, mas como se
os conhecesse intima e diariamente ia para vinte anos.
Nada tinha acontecido comigo? Nem tiros, nem
fomes, nem farturas, nem mortos, nem feridos, nem sangue, nem cheiros, nem
lágrimas, nem paisagens, nem inimigos, nem amigos, nem oceanos, nem bebedeiras,
nem distâncias?
Não. Pois não. As leis implacáveis do
quotidiano. Tinha caído todo junto no meu real destino. A minha vida afinal
verdadeira explodia em circunspecções de amanuense.
Destinaram-me como adereço de vida uma
secretária, uma máquina de calcular e, em volta, três, quatro, cinco máscaras
mudas e semi-cerradas, fingidamente sérias, de fato e gravata, e que já não se
chamavam camaradas de armas ou companheiros de sorte, mas sim colegas,
testemunhas do meu futuro imperdoável. Afinal, eu nunca tinha sido um soldado, um combatente,
um herói (quanto mais não fosse por ter sobrevivido inteiro); afinal, eu nunca
tinha sentido medo, nunca na minha vida tinha tido coragem. Um burocrata: era
essa a escrita de Deus na folha de assentos da minha muito relativa eternidade.
Ao meio dia não soube onde ir almoçar nem com
quem. Mais uma vez: todos tinham a sua vida e o seu formato pré-determinado. Às
duas horas voltei a sentar-me no destino que me fora reservado há muito pela
vida, pelo contexto social e de classe - e sem que eu o soubesse de ciência
muito certa. Calcular os custos industriais de uma marca conhecida de vinhos
ordinários. E por vezes, nessa tarefa, conseguia dormitar. Às seis, a liberdade
provisória. Umas horas que me eram concedidas para que eu inventasse os novos
heroísmos de vida de que fosse capaz. Ensaios no grupo de teatro à noite.
Fiquei a saber que a peça não poderia ir avante. A Censura não o permitiria.
Afinal, o Salazar tinha caído da cadeira para quê? O Salazar tinha caído da
cadeira para nada? Era inútil tudo o que de melhorzito podia ainda acontecer no
país? Era.
Dia seguinte. Nove horas. Escritório. Cálculos: tanto
disto, tanto daquilo, água, combustível, preço dos homens, aguardentes vínicas,
barros espanhóis, sangues de boi. Quanto deveria custar o litro daquela
zurrapa. E todos os dias, no recomeço do meu destino, depois do almoço, às
duas, comecei a ser acometido de uma mágica sonolência de Brunhilde que me
obrigava a ir à casa de banho pelo menos vinte minutos e passar pelas brasas.
Todos os dias. Nunca me acontecera. Nunca me voltaria a acontecer. O chefe já
começava a reparar. Mas devia ser da entrada da primavera.
A vida refloria das cinzas do inverno. Era
Abril.
O meu passado de heroísmos sossegados também não
merecia aquele presente. O meu sacrifício pela pátria não merecia o futuro que
aquele presente começava a tornar inevitável. O vencimento não era atraente - e
que fosse! Boa ou má, útil ou inútil, esmagadora ou insignificante, eu tinha
feito uma guerra, tinha passado três anos e onze meses em trabalhos de armas e
em dureza de vida, entre fomes e farturas, entre tragédias e algumas comédias.
E estava de corpo intacto. E o meu corpo intacto pedia-me outro destino, outro
recomeço. Tinha 27 anos. E agora já era Maio.
Outro recomeço. Ou uma incógnita que fosse
arriscada e estimulante. Do meu local de trabalho, com janelas rasgadas sobre o
Mar da Palha, podia ver o novo sol, a minha vista podia dar-se a correrias pela
paisagem e pela esperança. Tinha alguma vocação para viver e para não me deixar
morrer num sarcófago de papeis e de ridículos rituais. Eu às janelas da secção
e os outros a trabalhar.
- Está a gostar da paisagem? - era a voz do
chefe da contabilidade.
- Estou, sinceramente, estou – respondi: a
férrea disciplina de uns meses atrás, afinal, ensinara-me o prazer de uma
luminosa indisciplina.
- Mas ainda não me acabou aqueles cálculos
urgentes que lhe dei ontem de manhã…
- Nem vou acabar, senhor...
(Sei lá já o nome do homem.)
Ele levanta a cabeça, mas eu já ia a caminho
do departamento de pessoal. Que saudades eu tinha do risco, da aventura!
Que me fizessem as contas. Que me entregassem
uma carta a dizer que eu tinha saído de minha livre e única vontade. Era tudo.
- Quanto é que lhe dão lá no emprego para
onde vai?
- Nada.
- Como? - eu não ia para emprego nenhum. - Tenha cuidado com o que vai fazer, olhe bem
para o seu futuro.
Respaldado no dinheiro mal ganho, com dois
terços do vencimento de guerra acumulados no banco pela família, decidira
passar um ano sem trabalhar, sem dizer bom dia chefe, boa tarde patrão, até
amanhã, meus senhores. Nunca mais na minha vida voltaria a pôr os pés naquele
local de Lisboa onde ficava o escritório. Mais difícil ainda: nunca mais na
minha vida voltaria a ser empregado de escritório. Não sabia o que queria. Mas
sabia bem o que não queria. E quanto ao mais, ficaria à espera.
Acabava de me convencer de que para a guerra colonial portuguesa eu não metera prego nem estopa, não tivera responsabilidade alguma. Hurra. Evoé. Nunca nenhum dos criminosos daquela guerra, a minha guerra, se os houvesse, seria alguma vez julgado. E muito menos condenado. Nunca nenhum criminoso político, quer dizer, moral, seria alguma vez julgado e condenado no país do benigno clima e dos costumes brandíssimos – viria a sabê-lo mais tarde. A minha vida ia de facto recomeçar. Era só esperar. Não sabia se pouco se muito. Esperar. Talvez houvesse no arco do tempo uma qualquer madrugada…
E até hoje, o diabo seja surdo, cego e mudo,
tenho conseguido respeitar as magnas decisões que tomei aos 27 anos. Abençoada
guerra no meu destino pessoal, posso dizer - outros infelizmente não poderão.
Fiquei à espera de qualquer coisa que mudasse realmente qualquer coisa. Era o
ano de 1970 e tudo parecia longe, muito longe…
Alguma coisa resultou dessa espera – e sempre
foi numa madrugada. Alguma coisa aconteceu. Alguma coisa. A princípio aconteceu
muito, demasiado. E depois pouco, pouco, cada vez menos. Nunca acontece tudo. É
o que vale, às vezes…
Não posso deixar de me comover e sorrir em simultâneo ... conseguiu dizer tanto no antes dos 27 anos como nos depois de Maio de 70.
ResponderEliminarNão sei se consigo "sentir" plenamente o que foi para si, o marcelismo, o (des)merito de combatente em nome da Patria, o quotidiano do q- tem de ser na programação de um ideário de vida estabelecido, contudo hoje sei que nesse Maio escolheu o que é hoje..Não regresse a essa decada...
Gostei imenso deste texto, agradecida por o tornar publico
Uma evocação magnífica dos cinzentos anos 70 (que também tão bem conheço, embora sem a experiência da guerra...). Um Portugal, ontem como hoje sempre suspenso e adiado...
ResponderEliminarA propósito, a Yardley já existe novamente.
Parabéns. Diz-se que "viver é fácil, o que custa é saber viver" e é bem certo.
ResponderEliminarHoje perde-se demasiado tempo a ensinar às crianças e aos jovens imensas banalidades, que se desactualizam pouco tempo depois, mas ninguém os ensina a saberem realmente viver as suas vidas! É triste, mesmo muito triste...
Acredito hoje que a única Catequese possível para a nossa Salvação, para além da conveniente formação ética e moral, é a Literatura, a Arte e, claro, a Música! Tudo aquilo a que, desgraçadamente, menos se presta atenção nos dias de hoje.
Não faço ideia quase nenhuma do que era essa Lisboa e esse Portugal do Março de 1970 de que nos fala. Vivia num lugar muito "longe", embora também com vista para o Mar da Palha (um 4º andar nos Olivais...), e o meu "tempo", esse então, era ainda muito mais distante do seu: iniciara apenas o meu Ciclo Preparatório nesse Ano Lectivo, tinha dez aninhos, de Lisboa conhecia apenas o pacato Bairro da Encarnação e o caminho entre os Olivais-Norte e o Pote de Água. Da vida apenas sabia que não era fácil, mas que eu era feliz...
Nesse mês de Março de 1970, já na era pós-«Zip-Zip», o meu pequeno mundo cultural restringia-se ainda ao Festival da Canção, que trouxe algumas melodias agradáveis, como o "Corre, Nina", do Paulo de Carvalho, e a "Canção de Madrugar", do Hugo Maia de Loureiro, mas haviam já livros, muitos livros no meu quarto, que eu lia sôfregamente, apesar da tenra idade, e que desde logo me ajudaram, sem que então o suspeitasse, a criar a paixão pelo Saber, que é das maiores e melhores paixões que um ser humano pode acalentar, seja em que idade for...
E hoje, os meus filhos crescem quase sem televisão. Mas com livros, cadernos, pincéis, tintas e muitas canções. E uma Avó octogenária. E espero bem que eles, um dia, possam também saber ser e saber viver...