QUEM SE LEMBRA DO ANO DE 2004?
Na vertígem e no aperto em que estamos a viver estes nossos dias
é natural o esvaír das memórias com mais
facilidade e rapidez do que nunca, mas ainda me lembro de que 2004 foi
mesmo um grande ano para Portugal. Foi um ano de odisseias, e muitas delas,
a maior parte, de tipo moral.
Primeiro, a crise orçamental. Que em 2004 já vinha de trás –
porque tudo o que de negativo se passa em Portugal vem sempre de trás. As
falências, os despedimentos maciços, a baixa do poder de compra, o aumento do
custo de vida, o crédito mal parado, o desemprego que estava a aumentar. Tanta
coisa para que nos viessem dizer, a meio do ano, que, bem feitas as contas, e bem
consumados os sacrifícios, a melhoria orçamental, a retoma, ainda não era nada
que se visse.
Odisseia moral de haver um partido no governo, seja ele qual
for, que me permite ter um emprego, para daí a um ano ou dois (ou três ou
quatro) vir outro partido para o governo e dizer à boca cheia que eu sou um
chupista e um inútil, que tudo o que foi feito estava mal, que o meu lugar, o
meu vencimento e as minhas regalias eram um erro crasso, e que, portanto, o
passo a seguir seria extinguirem o meu posto de trabalho, porem-me na rua, atirarem
comigo para o desemprego, e deixarem-me na expectativa de poder vir outro
governo, de outro partido que me permita arranjar outro emprego e recuperar a
qualidade de vida que perdi. E tudo isso até ao dia em que o próximo partido do
próximo governo vier outra vez dizer que afinal tudo estava mal, eu, inútil e
chupista do orçamento, não tinha nada
que ter emprego outra vez, e me extingue outra vez o posto de trabalho, e me
atira de novo para o desemprego, deixando-me à espera de… de quê? Da morte? Não
sei. Não sei qual é o plano dos governos para a vida dos governados. Mas o que
sei é que é assim o jogo. O jogo das alternâncias democráticas, económicas,
financeiras, orçamentais, mesmo quando
não há empregos que cheguem para todos…
Uma das nossas primeiras odisseias morais – nossas, quero eu
dizer, do homem comum - é ter de pagar, a prazo, as políticas dos senhores
governantes, tanto quando elas são despesistas como quando eles são unhas de
fome.
A quantas crises e a quantas retomas não assistimos já desde o
fim da ditadura? Mais crises do que retomas, é verdade. Muito mais…
Por falar em
retomas, estou a lembrar-me de uma retoma dos anos cavaquistas. Começavam a
chegar os fundos europeus e compravam-se casas à beira mar e com piscina, e lamborghinis, e inventavam-se empresas,
e punham-se belas raparigas por conta, e faziam-se férias de sonho nas
Caraíbas.
Mas a base da boa vida era o crédito bancário.
A fisionomia do consumo de cada retoma anuncia logo a sua crise,
quer-me parecer.
E quando veio a crise a seguir à retoma cavaquista, o crédito
andou – e ainda andava em 2004 – muito mal parado.
A nossa vida
são ciclos, é verdade. E em geral, ao homem da rua, as retomas não compensam os
estragos das crises.
Pagar, pagar,pagar. Sacrificar, sacrificar. Estamos a sofrer
isso mesmo em 2013…
Mas já em 2004 o número de acções de falência aumentava 40% em
relação a 2003.
2044 foi o Euro e foi o Rock in Rio.
E tudo correu bem – como
sempre em Portugal tudo corre bem, salvo o que corre mal - , embora, segundo ouvi
dizer, com o Rock in Rio abaixo das expectativas em afluência.
Na sequência de mais um daqueles scores históricos de abstenção eleitoral, que indicam a quem tiver
olhos para ver que o povo eleitor não tem causas, não acredita em nada nem em
ninguém, e muito menos em si próprio, e está no grau mais baixo da sua
auto-estima – já era assim em 1004 -, eis senão quando toda a gente se mobiliza
pela selecção nacional de futebol. E quem precisamente dá largos passos para a galvanização
e mobilização de um país descrente é um estrangeiro, um brasileiro, o
seleccionador nacional.
O jogo com a Espanha é de vida ou de morte. O país acorda, crise?,
qual crise?, o país empenha-se, mobiliza-se, porque é o seleccionador nacional (que é brasileiro) a
dizer ao país para por bandeiras nacionais nas janelas e nos carros e o país
põe. E o país confia – no seleccionador nacional; que é brasileiro. Há quantos
anos, décadas, séculos, o português médio não confiava assim numa figura
pública como confiou em 2004?
Eleições? Eleições europeias? São poucos os que lhes ligam
alguma coisa, a elas, aos profissionais burocratas do ramo, à Europa…
Em 2004 o povo só queria regozijar-se com os seus futebolistas.
E Portugal vence a Espanha. E não só vence como joga bem, joga
como há muitíssimos anos não tinha jogado. Os governantes aparecem na televisão
a capitalizar a seu favor aquela vitória – como se fosse deles.
Estamos à míngua de quem nos mobilize para grandes coisas, mas
não com palheta de aldrabão de feira, e sim com motivos fortes e com resultados
concretos. Era o que estava a fazer a selecção. Em 2004.
Os nossos dirigentes máximos repreendiam-nos em 2004. Não devíamos
choramingar nem entrar em lamúrias. Em 2004. Como se não houvesse razão para
tal. A verdade é que os nossos governantes e dirigentes aos vários escalões não
nos deram em 2004 – e desde há muitíssimos anos para cá que não nos dão -
motivos para termos orgulho em nós mesmos. E neles ainda menos.
Em 2004 morre Maria de Lurdes Pintassilgo. Goste-se ou não, uma
das raras referências morais da política portuguesa pós-25 de Abril. E mais
pobres ficámos.
E Sousa Franco mete-se em escaramuças menores e com gente de baixa extracção e vai morrer tristemente à lota de Matosinhos no meio de uma rixa de bimbos e comadres camarárias.
As mortes desse ano. No ano de 2004 verificou-se um considerável
desgaste mitológico no mundo. Falo mais das artes e dos espectáculos, posto
que, noutras áreas, como a política, mitos e mitologias é coisa que deixou de
haver. Agora nas artes e espectáculos, onde cada vez também os há menos, se
começam a desaparecer assim tão rapidamente os que existem, onde iremos nós
parar?
Por quem eu em 2004 pus luto carregado foi por Marlon Brando e
pelo maestro Carlos Kleiber, como já no fim do outro ano tinha posto por Franco
Corelli. Mas também andei intimamente de preto por Carlos Paredes, por Nikolai
Ghiaurov, por Serge Reggiani.
O país continuou a envelhecer em 2004. A taxa de natalidade do
país continuou a baixar. Talvez algum proto-bébé populista e ainda mal formado
no ventre de sua mãe se perguntasse: mas
valerá mesmo a pena nascer em Portugal?
Mas se ainda
havia dúvidas, naquele ano odisseico de 2004 elas ficaram dissipadas: o futebol
é o fenómeno mais importante e sério que pode acontecer em Portugal. Apesar de
tudo o que a gente sabe. Para o melhor e para o pior. Exactamente.
Depois do primeiro jogo, da primeira descrença e da primeira
derrota contra a Grécia, como explicar um tão súbito nacionalismo, um tão
pronto orgulho de ser português em gente tão fatalista como nós?
Talvez não seja assim tão difícil de perceber. A equipa estava a
jogar muito bem, os jogadores estavam a esfalfar-se até ao sacrifício. O país
via nos seus futebolistas e treinadores gente muito competente e muito honesta
no seu trabalho e, o que é mais raro, a mostrar resultados. É raro, é, sim
senhor, acontecer uma coisa destas no nosso país. Resultados? Isso é que era
bom… palavras, palavras; cálculos financeiros, estimativas em alta. Que
sistematicamente falham.
Em 2004 parecia começar a haver razão para a auto-estima e para
o orgulho.
Contra a Inglaterra Portugal joga o jogo mais dramático de toda
a competição. Eusébio, que chorara copiosamente após a derrota diante dos
ingleses no Mundial de 66, voltava a chorar por uma vitória sobre os mesmos
ingleses e o país via-o em lágrimas a beijar a relva do Estádio da Luz.
Alfama ganhava o concurso das marchas. No dia seguinte ao jogo
com a Inglaterra, pelas ruas mais populares de Lisboa, voltava a ouvir-se a
Amália cantar nas telefonias. E três dias depois, juro-vos, ouvi da minha
janela um popular a assobiar o hino nacional.
A mais espantosa qualidade de ser português veio ao de cima nos
dias do Euro 2004. Em Junho. A nossa empatia internacionalista, a
hospitalidade, a amabilidade e o interesse que sempre foi nosso para com os
forasteiros, mais a capacidade de nos momentos festivos nos irmanarmos seja com
quem for, gregos, troianos, croatas, búlgaros ou checos. E até com ingleses insolentes,
agressivos e atestados de cerveja.
Os ingleses? Pois alguns subsídios para a compreensão da
grandeza de uma nação foram acrescentados a quem os quis ver também no Euro
2004. Os ingleses: chegava a ser tocante a ternura da irracionalidade da fé que
tinham na sua selecção nacional, mesmo que jogasse mal, mesmo que não se lhes
visse a mínima hipótese de vencer.
A fé em si próprio, num povo como num homem, ou é irracional e
absoluta e destacada da realidade, ou não é. Não é fé nenhuma. Ou só o é quando
sustentada em grandes feitos anteriores, em imensas e profundas tradições
culturais próprias.
Quis o cruel destino que a final fosse disputada entre Portugal
e Grécia, dois países tradicionalmente colocados na cauda da Europa em termos
sociais, económicos e políticos.
E então, como
todos devem estar lembrados, perdemos.
E assim morremos na praia. Depois de termos eliminado os
adversários mais temíveis, baqueámos perante a banalidade futebolística dos
gregos. Cumpriu-se o fado.
Ganhámos à Espanha, à Inglaterra e à Holanda e no fim da cada um
desses jogos festejámos na rua como se tivessemos sido nós os campeões. A nossa
pequena e infundada vaidade falou mais alto do que a razão, do que o realismo e
do que o sentido das proporções, tão pouco habituados estavamos a ter êxito
nalguma coisa.
Felipão foi besta, foi bestial, e acabou besta outra vez. E nós
saímos ainda assim para a rua para festejar não sabíamos bem o quê.
E por vezes parece-me que continuamos a festejar, a
festejar não sei bem o quê, a cada mega
manifestação de protesto – ou do mais profundo desgosto de existir…
Talvez acabe por ser normal festejarmos todos os dias as nossas
frustrações e as vitórias realmente decisivas e importantes que nunca
conseguimos.
Mas pronto, acabámos por ganhar o Europeu. Só que foi como disse
na altura uma apresentadora de televisão, ganhámos à nossa maneira.
Há, sim senhor, uma maneira portuguesa de ganhar. Que é perder.
Perder e ficar conformado, ou quase contente, e festejar sempre. E continuar a festejar
aqueles que nos têm arruinado a vida. E a votar neles quando é caso disso.
E bruscamente… uma complicadissima crise governativa: até por aí passou a odisseia portuguesa de
2004. Ao presidente da República coube uma bem dura questão de moral.
Não sei se toda a gente
ainda se lembra do que se passou.
Passou-se que o 1º Ministro foi, disseram, convidado para
presidir à Comissão Europeia. Ele a ir daí a abaixo, e das duas uma: ou o
presidente lhe aceitava a demissão e empossava um novo 1º ministro indicado
pela maioria parlamentar saída das legislativas; ou dissolvia o parlamento e
convocava eleições antecipadas. Qualquer das soluções era permitida pela
Constituição e seria o momento azado para sabermos quem era e o que na verdade
valia politicamente o presidente da república.
Era política a questão. E sendo política podia muito bem
dizer-se que não era exclusivamente jurídica, também era moral.
A chatice do momento é que, entretanto, havia coisa de 15 dias,
o eleitorado tinha ido às urnas para o Parlamento Europeu e tinha dado um baile
à tal maioria parlamentar dois anos antes consagrada. Quer dizer: a expressão
manifesta a 13 de Junho nas urnas foi claramente maioritária contra as
políticas até então seguidas pelo governo. Tal poderia justificar a convocação
de eleições antecipadas. E, a meu ver, moralmente, justificaria mesmo. É a lei
que deve servir o Homem, é o povo a fonte de direitos e legitimidades numa
democracia, e não o Homem que cegamente terá de se submeter a uma abstracção
burocrática. Achei eu então – hoje, e vividas
as atribulações que se vivem, já não acho nada, já espero tudo.
Mas se o presidente pensasse em convocar eleições, o convite ao então
1º ministro – tão honroso para Portugal,
segundo disseram - para ser mais um burocrata em Bruxelas, poderia ser deixado
caír, e nessas condições, quando o então 1º ministro aceita o convite de
Bruxelas podia-se jurar pelas alminhas que tinha do presidente as garantias
todas de que não convocaria eleições antecipadas e procuraria a solução
governativa na maioria em vigor, já com dois anos de desgaste político.
Vivia-se um drama, precisamente político. As televisões
agarravam nos seus trastes e punham os pés a caminho da rua, a saber as
opiniões do populacho.
O país está ao rubro com as vitórias da selecção. O país acredita
que Portugal vai ser mesmo campeão Europeu de futebol. O país acredita que
Portugal pode estar em vias de ser uma potência relevante no concerto das
nações…
E que diz o povo miúdo das ruas à crise governativa?
“Olhe, amigo, primeiro está a selecção. Os políticos que se
arranjem”, opina um sujeito.
“Os governantes? Nenhum deles me diz nada. Preocupa-me é a
selecção”, diz uma senhora.
“O governo? Isso não me interessa. O que me interessa é
Portugal. O que me interessa é a selecção”, diz outra senhora.
“Olhe, minha senhora, sabia que o 1º ministro vai sair do
governo?” “Não, não ando a par dessas coisas. O que me interessa é a selecção.”
Anos e anos, horas e horas de debates políticos na televisão, de
opiniões de jornalistas, de especialistas,de constitucionalistas, subtilezas
de comentadores abalizados, dão nisto – “não ando a par dessas coisas, o que me
interessa é a selecção”.
É certo que eles, políticos e comentadores, se divertem muito
entre si, mas será que tudo isso fizera menos (oh, muito menos!) pelo país,
pela cidadania e pela democracia do que a selecção de futebol?
E por aqui se vê a classe de políticos e comentadores que tínhamos
em 2004. Tudo o que afinal eles tinham, até 2004, criado no pagode fora uma
crescente indiferença pelo fenómeno político. Mas se calhar era mesmo essa a
ideia deles. Para melhor sobreviverem. Em 2004.
E por acaso até se poderia dizer que aquela súbita crise
governativa para gáudio de políticos, legisladores e jornalistas só veio foi
estragar a festa mais importante que era a festa do futebol e da selecção. E
outra coisa não seria de esperar dos nossos políticos de 2004, que não podiam
com o protagonismo de outros, não podiam ver uma camisa lavada a um pobre, nem
ver ninguém feliz nem que fosse só por causa da bola.
Os nossos políticos de 2004 eram uns desmancha-prazeres, isso é
certo, mas dos nossos prazeres, nunca dos prazeres deles, e tinham que arranjar
sempre uma estrangeirinha qualquer para se porem em bicos de pés quando a
opinião pública não os queria ver nem pintados.
Por esse drama político, em 2004, se percebia o quanto na
democracia portuguesa – tão original que parecia terceiro-mundista – pouco
contava a vontade do eleitorado, em comparação com os interesses instalados e a
medíocre burocracia jurídico-constitucional.
Posto perante o dilema
incómodo, inoportuno, o presidente ouvia meio mundo institucional, não queria
arriscar-se e empossar um novo governo apoiado pela maioria parlamentar saída
das legislativas de há dois anos e que a consulta eleitoral realizada um mês
antes, e mais todas as sondagens, diziam já não fazer muito sentido enquanto
maioria governante.
E vai daí, o presidente de 2004 levanta da mão e empossa um novo
1º ministro e um novo governo com a obrigatoriedade – dizia ele - de seguir a mesma política do
que o anterior, e contra a qual política, não só o eleitorado se tinha
manifestado expressivamente, como o próprio presidente já a havia directa ou
indirectamente criticado.
Estava tudo doido? Esteve tudo doido naquele verão quente de
2004? E quem estará, nos dias de 2013, doido varrido?
E quem poderá nos dias de 2013 manter ainda os tais cinco
alqueires bem medidos?
Grande desilusão para os incondicionais do presidente de 2004,
os ingénuos que tinham votado duas vezes seguidas nesse presidente (dito) de
esquerda que acabava por oferecer ao país uma bandeja de respostas de direita.
O presidente de esquerda, e ultra-democrático, que ouvira todas
as notabilidades, mas que se esteve nas tintas para os eleitores e não os
ouviu. Decepção. Um presidente capaz de tanto 31 de boca na defesa da
cidadania, afinal de contas não teria dessa cidadania, senão uma visão
burocrática, o votozinho na urna de quatro em quatro anos e era um pau quanto a
cidadania… isto em 2004.
Estabilidade!, gritou-se. Mas que estabilidade? A estabilidade
de uma má política? Ou a estabilidade de uma boa política, mas feita a pensar
em clientelas em que eu não estou incluído?
Ou será que a estabilidade, numa democracia formatada como a
nossa, e muitas das vezes ilusória, é um valor absoluto ao qual tudo terá que
ser sacrificado, inclusivé a vontade dos eleitores?
Estabilidade de quê e a troco de quê?
Serão as maiorias absolutas situações tipicamente democráticas?
Claro que sim, teoricamente, tecnicamente. Mas é estranho que os partidos de
governo dêem mostras de já não saberem governar sem ser com maiorias absolutas,
quer dizer, numa espécie de ditaduras – só que da maioria – ou seja, ainda mais
perigosas. É estranho.
Isto em 2004. Onde é que esses problemas já vão…
E perante a decisão do presidente de não dissolver o parlamento
e convocar as consequentes eleições, é o líder da oposição que desiste. Também
ele. Desiste de se opor. Dá a ideia de que os nossos políticos olham para o
país, ponderam, pensam, e dizem como o outro: “penso, logo, desisto.” Da
maneira como às vezes se estão a ver as coisas, enfim, nem lhes levo a mal por
isso. Mas depois também não há cão nem gato nem dirigente de colectividade de
bairro ou de vão de escada que não passe o tempo a pedir que cada um assuma as
suas responsabilidades.
Foi de morrer a rir, o verão quente e repúblico-bananífero de 2004.
O 1º ministro em funções, depois da estrondosa derrota eleitoral
nas eleições europeias, disse ao país que tinha compreendido a mensagem e que
iria actuar em conformidade. E actuou:
pisgou-se logo que pôde e quando lhe acenaram com um empregozinho de futuro.
Estando no tempo de 2004, o pessoal ficava banzo com a facilidade com que os nossos dois últimos 1ºs.
ministros tinham saltado fora da carroça quando a coisa não lhes cheirou.
Parece que ninguém queria nada com a gente. Fugiam de nós, pagode miúdo, a sete
pés, ao mesmo tempo que clamavam que só nos queriam salvar dos outros… e
assumir as suas responsabilidades…
Eles é que lá sabiam no estado em que isto estava. Lá sabiam, em
2004, que isto nem deveria ter ponta por onde se lhe pegasse por volta de 2013.
Se o governo então nomeado pelo presidente carecia de credibilidade,
a decisão do líder da oposição de abandonar também não ajudou o povo a
acreditar nos seus maiores. Pois claro que era preferível, sem comparação
nenhuma, ter como líder o Felipão.
O Felipão conseguira mobilizar uma nação desmoralizada para um
desígnio nacional. E a primeira razão para o ter conseguido foi o não ser
político. E se calhar o não ser português.
Uma semana depois de empossado o novo governo, mais de metade de nós
não acreditava nele nem no novo 1º ministro nem pintados, e 48% de nós
discordávamos da decisão do presidente.
Mas as manifestações de regozijo com a
selecção nacional de futebol pareciam outro 25 de Abril.
Achei eu então que os portugueses tocavam os cumes da
vulgaridade e do grotesco quando ganhavam e iam de escantilhão empoleirar-se na
estátua do Marquês de Pombal. Porque nem toda a gente sabe ganhar. Na verdade,
só os superiores sabem ganhar. Os portugueses aprenderam desde há muito na sua
História (História seja do que for) a perder. Ainda não aprenderam a ganhar e a
ser belos quando ganham.
Também é verdade que o ganhar só traz chatices e
responsabilidades e a responsabilidade é coisa que muito nos enerva. E assim
como alguns de nós fazem tristes figuras de novos ricos, nós, como nação,
tivemos alguns momentos em que fizemos figura de novos vencedores. Sem o
sermos, ainda por cima.
E logo depois viemos a saber que a água das fontes do nosso cada
vez mais risonho Portugal, em 2004 não se podia beber por elas, estavam
inquinadas, conforme disseram as instituições de defesa do consumidor.
Falta de médicos. Em 2004. Excesso de advogados. (Claro!) Défice
de realidade, privilégio à conversa…
Em 2004 previram-se para o Portugal futuro alterações climáticas
dantescas, aquecimentos desmesurados. 60/70 dias por ano com temperaturas à
volta dos 35º. Erosão acelerada das zonas costeiras. Diminuição da
pluviosidade. Pois, é o que faz o tabaco…
Pelas estatísticas, os portugueses ainda vivos em 2004
desunharam-se a consumir ansiolíticos, soníferos, anti-depressivos, e recorreram
em grande a iogas, xiatsus, reikis, aromoterapias, thalassoterapias,
cromoterapias, musicoterapias, gatoterapias. O stress. O stress foi a causa
principal do número de baixas médicas no mundo do trabalho português. Em 2004.
O Tribunal de Contas saiu-se então com os números da Porto 2001
Capital da Cultura. De tombar. Milhões gastos a mais e sem benefícios
relevantes para a cidade. Quem é que responde por isto? Eu? O leitor? Ninguém?
Ninguém respondeu. Em 2004. Mas quem pagou e pagará tudo? Ah,
isso sim, eu, o leitor… e depois não querem que sejamos populistas… eu, o
leitor… em 2013…
E Portugal tem coisas assim: a organização do Europeu de Futebol
foi reconhecidamente impecável. Nem grandes desacatos hooliganescos nem
atentados à bomba. E nem grandes aparatos visíveis de segurança, Os críticos
mais pirrónicos poderiam, em 2004, ter perguntado: mas qual foi ao certo a
participação estrictamente portuguesa nos aspectos de planeamento e organização
de uma prova da UEFA? Como alguns perguntarão ainda qual a parte estrictamente
portuguesa na organização e planeamento dos Descobrimentos. Será que foram
mesmo portugueses que estiveram à frente dos aspectos logísticos do Euro?
Chegamos a duvidar. Mas se calhar foram mesmo. E se foram, isso confirma que os
portugueses são mesmo assim: capazes de tudo.
Tiraram-se milhões de imperiais durante os dias quentíssimos de
Junho de 2004.
O excelso herói do big
brother, o célebre Zé Maria, que dava sinais de perturbação mental, quis à viva
força atirar-se da ponte e saíu nu para a rua…
Na Justiça tratava-se do caso Universidade Moderna. Todos
absolvidos, menos um – mas mesmo esse com pena reduzida. Todos os notáveis de
todos os processos em prisão preventiva foram libertados.
O pessoal da pedofilia – tirando o Bibi - todo cá fora. Podia até haver carradas
de razão jurídica para ser assim, mas como eram todos gente importante, o
pessoal mais miúdo desconfiou, já se vê.
No verão de 2004 o lamacento caso Casa Pia, com cassetes
propaladamente roubadas e depois transcritas e depois publicadas num jornal,
aprofundou seriamente a crise já de si grave do regime democrático português –
crise tão intensa e profunda que quase dava para perguntar se o regime em que
vivíamos ainda se poderia chamar com propriedade de democrático só porque umas
quantas formalidades se iam cumprindo sob o crescente desinteresse do pagode.
Houve juízes de turno que mandaram pessoas para a cadeia num
dia, para que no dia seguinte outro juíz de turno despachasse que essas mesmas
pessoas deviam continuar em liberdade…
O governo admitiu a falta de meios humanos e materiais para
fazer face à vaga de incêndios. Portugal não tinha meios para acorrer
eficazmente a incêndios florestais. Portugal não tinha meios para isto,
Portugal não tinha meios para aquilo. Qualquer dia não muito distante Portugal
não teria meios para ser Portugal.
Pois bem… é triste dizê-lo, mas depois da sétima visita/avaliação da
troika, hoje, 2013, parece que esse dia chegou.
Obrigado pelos seus post's... são de um cidadão atento em relação a tudo o que o rodeia.
ResponderEliminarBem haja
Em Democracia não há desculpas. Todos têm uns patacos para comprar nem que seja um livro do Saramago. Se não aprenderam nada nem sequer com ele, que falou sempre para todos, agora batatas...
ResponderEliminarQue círculo vicioso, é o viver neste nosso Portugal...Tudo se repete, tudo se perde, nada se transforma. Muito interessante este texto.
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