DEPOIS
DE UMA LEITURA (RÁPIDA) DE
BERGSON
Falar, escrever; a rádio, o blog…
E depois de uma tangente leitura de
Bergson.
A socialização do discurso, dizia ele,
Bergson, porque no tempo dele não se falava na ordem do politicamente correcto.
A socialização de um discurso humano, para ser
efectiva, implicaria uma impersonalidade (uma impersonalização), a coisa bem
feitinha para a maior parte dos gostos públicos, eventualmente com alguma moral
para comunicar, quer dizer, ensinar, mas que se não tiver serventías na vida
prática e corrente se desvaloriza acto contínuo por intransmissível.
Fórmulas há, muitas, que se retêm, por terem a
qualidade de serem supostamente aceites por uma maioria. Fórmulas postas em
vigor (contra o Passos Coelho, contra o Sócrates, contra o Relvas, contra o
Vítor Gaspar, contra a troika, contra o Santos Pereira, contra o Ulrich, contra
o Cavaco, contra o governo constituído por uma quadrilha de ladrões, contra a
pedofilia, contra a violência doméstica, contra as gorduras, contra o sal e o
açúcar, contra a carne de cavalo, a favor das greves e manifestações
absolutamente necessárias na construção de conjunturas que farão eclodir a
História e que farão cair o governo, o presidente, as instituições…), fórmulas
postas em vigor, abençoadas pela maioria de nós, cultivadas na, e pela,
televisão; discursos fadados para o sucesso, para a compreensão geral e para a
mais alargada aceitação.
Quando um discurso atinge o âmago de uma formulação
consabida, absorvida, é um discurso válido, percuciente, não é preciso
reflecti-lo, esmoê-lo, pode aplicar-se já no imediato, na próxima convocatória
da CGTP (se for contra o status) ou na inauguração de uma próxima dieta (se for
contra o sal, as gorduras, o açúcar). Mas não é um discurso pessoal, ou com uma
marca pessoal. Alinha no previsível imediato, fácil de digerir. No correcto –
mesmo que esteja correcto.
Mente desenxovalhada, espírito aberto, inteligência
clara, sim, se a comunicação reverter para o conjunto de ideias aceite pelas
maiorias sem discussão. Mente perversa, espírito retorcido, inteligência
intermitente, sim, se a comunicação traduz uma concepção um pouco mais
personalizada da vida e do assunto sobre o qual se comunica.
O criativo desprestigiou-se. A superioridade
intelectual passou a residir na falta de um espírito inventivo.
Não é correcto submeter os destinatários da
comunicação a um pensamento próprio, e
menos ainda pretender levá-los a elaborar e emitir o seu próprio e pessoal
pensamento. Não é correcto pretender que os destinatários da comunicação
escapem, no plano intelectual (e mesmo moral), ao que foi previamente
construído por outros para eles pensarem, para o consumo intelectual de todos.
Não é correcto querer suscitar nos outros a criatividade que têm em si quando o
acervo das ideias aceites pela maior parte estão aí, quentinhas (ou
requentadas), mesmo à mão.
Falar. Escrever.Escrever. Falar.
É mais eficaz a comunicação verbal do que
a comunicação escrita. Será por isso que há políticos que (para a mensagem que
querem passar) se exprimem razoavelmente pela oratória e que tão mal escrevem.
Sim, eu sei, acabou de sair uma nova
obra-prima do habitante de Belém. Não li, não sei se está bem ou mal escrita –
pouco relevante, em todo o caso, porque o mais certo foi a obra ter sido
escrita por um assessor, ou dois, e só com uns retoques finais do detentor do
título. Seja como for, também este político não constitui modelo nem de uma
coisa nem de outra, do bem escrever ou do bem falar. Porque falar não fala
quando todos o querem ouvir, ou sobre os temas que todos querem ouvir; e
escrever, enfim, escreve um livro que essencialmente serve para explicar porque
forte razão não fala do que todos gostariam de ouvir…
Está tudo muito bem, mas os sábios
estipularam com razão que a comunicação pela palavra imediata, falada, por
menos nobre e reflectida que seja, é mais fácil de compreender (e de convencer
os outros) do que a palavra laboriosamente escrita. A palavra falada (o timbre
da voz, o ritmo da frase, a inflexão) vai direita aos sentimentos de quem a
ouve. Aí é que está. Misterioso, mas verdadeiro. Sentimentos. A palavra dita é
carnal, estabelece conexões, estende fios, inaugura uma relação de simpatia ou
antipatia mesmo com alguém que não se conhece.
Ouça-se o discurso de um bom orador, e
leia-se depois o texto escrito desse mesmo discurso. O que soou claro e humano
e luminoso e racional e correcto na palavra, surge intrincado, evasivo,
controverso, discutível, obscuro no texto escrito em papel. Surge, ou pode
surgir.
Mas nesta vida é natural que as funções
se distribuam pelos talentos. E o melhor é cada um não forçar os seus talentos
até às regiões inóspitas. Têm de existir os que trabalham para uma minoria de
cidadãos maduros e meditativos, e os que gostam de impressionar as maiorias com
a variação repetida e irrelevante do discurso que eles imemorialmente conhecem,
o discurso de todos.
Pode ser que a decadência do génio (como já Bergson
notava) se deva a este desdém do grande público pela visão pessoal, mais ou
menos original; ou a esta preferência do grande público pela comunicação
formatada do que ele já de sobejo conhece e que foi consagrado como válido, e,
mais que válido, correcto. Porque era o espírito inventivo de cada um, a
capacidade criativa, sim, que deveria ser estimulada, e não a aprovação banal
dos consumidores de fórmulas pré-cozinhadas.
Pois
é, o que é preciso é fazer a nação andar para a frente…
(Façam um esforço, como eu, não riam.)
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