A
MORAL DE BAYREUTH
– A REALIDADE
Wagner foi o que foi preciso ser.
Wagner foi o deus dos deuses, Wotan. Wagner foi o safado Alberich. Wagner foi o
luminoso Loge e foi a terrena Erda. Wagner foi Siegfried, o herói. Foi gigante,
foi anão, foi profeta, foi mágico, foi incendiário. Wagner foi o que foi
preciso ser a cada momento. Assim as circunstâncias se lhe apresentassem, assim
ele intimamente se metamorfoseava num demiurgo realizador dos prodígios ou num
anão sórdido, desprezível e interesseiro.
Quando assombrado pelo gigantismo do
seu ideal, Wagner tomava a lança do deus, e depois admitia que lhe faltava um
templo, porque um deus precisa de um tempo para ser incensado. Um templo que
comemora um ideal, mas que é, em si, uma realidade material, prática,
dispendiosa. E quando posto perante tal realidade, Wagner não hesita, arroja de
si a lança e todos os artefactos da divindade, diminui a sua estatura moral
natural e aparece como Alberich. E parte em demanda do ouro redentor. Mas uma
coisa era certa: para que um deus tenha um templo e funde uma religião cabe
mais aos seus fiéis juntar o necessário para erigir esse templo do que ao
fundador da sua própria religião.
Wagner não conhecia Bayreuth. Mas
sabia-a uma pequena e provinciana cidade que tinha todo o interesse em
ajudá-lo, quer dizer, ajudar-se a si mesma ajudando-o a desenvolver nas suas
colinas verdes e saturadas de energia mística uma indústria cultural, por forma
a atrair forasteiros e a fazer crescer a pacata economia do burgo. Uma
indústria cultural cuja sede deveria ser entendida e frequentada como um
santuário.
Ficava longe de Munique o bastante para
se considerar independente, mas não tão longe que impedisse a Wagner uma visita
ao seu régio protector, Ludwig, quando, e se, fosse caso disso.
Quando, em tempos idos, Wagner dissera que
para cumprir em cheio a obra da sua vida precisava da protecção de um soberano,
tomara os poderes de Erda, a deusa da terra, e fora profeta: dois anos volvidos
sobre essa declaração e eis que sobe ao trono da Baviera quem pode, e quer,
acorrer ao financiamento das visões wagnerianas, o príncipe Ludwig, feito rei
por morte de seu tio Maximiliano II.
Mas era de capital importância seduzir
a pequena Bayreuth e as suas forças vivas e os seus comerciantes, e revelar
áqueles provincianos uma faceta simples e bonacheirona do grande génio da
música alemã. Havia que fazer visitas extenuantes, interesseiras e
protocolares. Havia que suportar com estoicismo a conversa emoliente dos
pequenos burgueses.
O banqueiro
Feustel já apoiara o projecto. Bom seria agora varrer da memória dos
bayreuthianos a suspeição de imoralidade, oportunismo, revolucionarismo e
trapaça que maculava a aura do génio da música alemã.
Fixar residência a cidade e viver sossegadamente, e
fazer-lhes ver que o que corria pelas bocas do mundo a se respeito nada mais
eram do que boatos postos a circular pelos seus inimigos.
E que tal endereçar uma carta ao pobre chefe da banda local
tratando-o de “ilustre colega”?
Em Berlim, Wagner foi recebido principescamente,
criando-se logo na capital do império um círculo wagneriano disposto a
providenciar uma orquestra de cem músicos. Aliás, círculos wagnerianos que
alastrariam por esse mundo, em França, na Rússia, na Holanda, na Bélgica, na
Suécia, em Inglaterra, no Egipto e nos Estados Unidos. E arranjou-se logo um
arquitecto para riscar o projecto do teatro. A mulher do ministro real da
Prússia encarrega-se pessoalmente da tarefa de recolher fundos. Havia muito
dinheiro para arrancar aos wagnerianos de toda a Europa. Mas também era verdade
que o dinheirinho sonante tardava a chegar.
Viagens. Würzburg, Frankfurt, Darmstadt, Strasburg,
Colónia, Dusseldorf, Hannover, Bremen, Magdeburg, Leipzig. E banquetes,
reuniões, recepções, galas, concertos, homenagens. Discursos.
Musico algum na velha Alemanha fora até então alvo de tão
públicas e luzidas celebrações, tirante o caso, talvez, de Meyerbeer, ou de
Mendelssohn. Para arranjar dinheiro, o mestre até compõe uma marcha festiva
para a Exposição Universal de Filadélfia. E além de dinheiro precisa de novos
artistas. E continua a caminhar sobre a realidade de olhos postos no ideal. Qual deus Wotan, Wagner vê-se na necessidade de sujar as mãos no vil metal e traficar com
os nibelungos e os anões se quer levantar para a sua arte uma residência
condigna – ou uma fortaleza inexpugnável; ou uma casa de culto; ou o seu
pessoal Walhalla…
- O quê? Edificar o meu teatro onde alguém teve o arrojo
de se opor à minha vontade? Nunca!
Princípios.
Mas a mulher, Cosima, encarrega-se da parte
diplomática. E obtém resultados.
Os contratempos da realidade económica, política,
pessoal, levantam-se aqui e ali. E aplanam-se acolá. De forma que em 1872 já é
possível pensar na cerimónia de lançamento da primeira pedra. Uma inauguração
muito simbólica. Seria a primeira pedra de um edifício destinado a ser marco
indispensável ao renascimento espiritual da Alemanha. Sim, não era um edifício
qualquer. E também marcava uma vitória sobre a tentativa de silenciar
economicamente um génio a pretexto daquilo a que se usa chamar de progresso
social. Já ia a caminho uma carta para o príncipe de Bismarck em petição de apoios
de toda a ordem.
Em nome do município, o próprio burgomestre acabara de
comprar um terreno. As más línguas espalhavam que não o fizera para
beneficio da cidade, que o fizera para
favorecer um negócio privado. E no dia do lançamento da primeira pedra a
agitação nas ruas da pequena Bayreutth era inusitada.
Chegaram orquestras de de Viena e de Budapeste, coristas
de Leipzig e de Magdeburg; e subscritores; e bastantes jornalistas. As pensões
e casas particulares esgotavam. A comida escasseava. Era o dia 22 de Maio, o
mestre completava nesse exacto dia cinquenta e nove anos. Caía uma chuva
diluviana.
Mas a celebração musical acontecera no dia anterior. Com
a tutelar, titânica e redentora Nona Sinfonia de Beethoven. Quatrocentos
artistas sob a batuta do próprio Wagner.
A 22, sob a chuva desmobilizadora Wagner pega num
martelo, aplica uma pancada, e ritualmente proclama, emocionado:
- Sê bendita, ó pedra! Sê durável e sê firme!
Há nomeado um conselho de administração, que reúne no dia
seguinte com os delegados dos círculos wagnerianos. Feustel, o riquíssimo
banqueiro, preside. Os outros são Adolph Gross, Theodor Mencker, Emil Heckel, Friedrich
Schoen. E o próprio Wagner. A realidade crua do projecto é discutida. É bom que
se proceda rapidamente, e por isso é decidido o início da construção. Até se
marca a estreia do grande festival. 1874. E estipula-se a quem futuramente
pertencerão os lugares. Aos protectores e aos subscritores, primeiramente. Mas
ainda sobravam quinhentos. Wagner considerava-se presente a uma reunião de
amigos e protectores, e em volta de uma ideia imaterial (vamos dizer assim),
nunca para discutir um qualquer negócio profano. Diz ele que o patrocínio nunca
por nunca se poderá fundamentar no espírito leonino de maximização
especulativa. O espírito original do projecto nunca por nunca poderá ser
desvirtuado.
- Portanto, meus senhores, é de minha vontade que esses
quinhentos lugares fiquem reservados para os artistas pobres.
Na imprensa vienense alguém levanta uma questão de moral
particularmente interessante. Wagner é mesmo um homem de sorte. Indispõe-se com
a realeza e surge um rei a oferecer-lhe o seu amor. Escreve virulências contra
os judeus e muitas das musicais intelectualidades hebraicas se contam entre os
subscritores do projecto. Esfalfa-se a dizer mal dos pátrios chefes de
orquestra e estes fundam círculos wagnerianos e angariam contingentes
instrumentais para tocar em Bayreuth. Cantores que sempre disse abominar,
lambem-lhe as botas. Acusava os conservatórios germânicos de serem uma vergonha
para o mundo e os alunos desses conservatórios quotizavam-se e ofereciam-lhe
dinheiro.
Quer dizer, Wagner e o seu ideal iam triunfando em toda a
linha sobre a crua realidade.
Mas essa realidade
não deixava de se encorpar sobre a cabeça de Wagner e sobre a integridade do
projecto. Os círculos wagnerianos davam magníficos jantares, mas, quanto a
dinheiro vivo, estavam todos conversados. O conselho de administração andava de
péssimo humor. Os artistas que o mestre via e ouvia por toda a Alemanha, e que
pretendia afeiçoar aos seus ideais interpretativos, não lhe serviam. As obras
estavam quase a parar por falta de fundos. Ninguém quer avançar no escuro. A
menos que Wagner se comprometa a dirigir alguns concertos em cidades mais ou
menos importantes. Ele não achava muita piada à ideia, mas não teria outro
remédio. A realidade gritava-lhe que, no fim das contas, deveria ser ele a prover
o mais do financiamento do seu ideal.
Ele rege concertos, ele discursa às plateias burguesas e
às carteiras mais recheadas, ele vai a Berlim ver o marechal Moltke, ele vai ao
encontro de professores universitários, ele avista-se com financeiros, ele beija
a mão a príncipes de sangue. Assim
angaria mais mais dias ou três dezenas de subscritores de peso.
Mas os concertos que dirige não dão resultados
financeiros satisfatórios. Em todo o caso, Nietzsche anda por aí a dizer que
Wagner está na moda e que finalmente lhe é reconhecida importância. E na
verdade Wagner não hesita um segundo em explorar o snobismo dos notáveis,
contanto que lhe dêem dinheiro, porque se não houver dinheiro em abundância é
escusado pensar mais em arte e em ideal. E o dinheiro sempre fora a mais
calamitosa obsessão dele.
Mais dez subscritores em Colónia. Vem um certo interesse
de Viena. E de Londres. Tudo isso é muito bonito, mas a necessidade aperta.
Pode ser que lá mais para o verão de 1873 a cobertura do teatro esteja pronta.
Pau de fileira em Agosto de 1873. Discursos. Música.
Operários a recitar versos escritos pelo próprio Wagner. Banda militar que toca
uma marcha de acção de graças. Mas se não há dinheiro, rapazes, não há
palhaços, e as obras podem parar em Outubro.
No dia 31 de Outubro de 1873 Wagner convoca os círculos
wagnerianos. Eram duzentos. Só quinze compareceram à chamada do mestre.
Um apelo ao povo alemão. Todo o bom alemão tinha o
estricto dever de contribuir. Mesmo os mais pobres deveriam comprometer-se com
alguma coisita para a ajuda. Era um apelo-proclamação. Foi distribuído. Todos
os livreiros alemães o receberam. Nem um respondeu. A subscrição nacional em
prol do grande templo da arte alemã rendeu seis taleres.
O círculo wagneriano de Manheim apela: todos os teatros
alemães dariam uma récita, uma, de beneficência, a favor da obra de Bayreuth.
Oitenta circulares enviadas. Respostas? Três. Negativas.
A realidade continuava a estender o seu manto cinzento
sobre o ideal de Bayreuth.
E dívidas. Claro, dívidas. Wagner era um mestre nessa
matéria.
Não havia alternativa às dívidas se quisesse realizar
capital. O endividamento teria de ser a base operacional para a impossível
questão de moral que Bayreuth constituía para Wagner. Bayreuth teria de
financiar Bayreuth se nenhum poder régio interviesse, e depressa.
E pagar as dívidas? É a parte chata até para os estados soberanos
metidos a iniciativas de duvidosa utilidade no retorno dos investimentos (como
a saúde, a educação, a cultura, a segurança social), quanto mais para particulares,
ainda por cima artistas…
Vendiam-se quotas de mecenato. Pois era, e garantias a
dar a um conselho de administração formado por banqueiros, e burocratas de
moral mais restritiva, muito mais, do que a do mestre? Garantia podia ser o rei
Ludwig…
Oh, Wagner, o criador, confundia-se com as suas
criaturas.
Tanto era Wotan na nobreza dos perfumes de um ideal elevado, como
não se ralava nada de ser o seboso anão Alberich e ir buscar o dinheiro onde
quer que ele estivesse, ou entre os seios das filhas do Reno, ou nos cofres da
coroa da Baviera.
Mas às finanças bávaras também não lhes soprava vento de
feição.
- Não, não e não – diz o rei.
E Wagner resmunga:
- Dava a ideia disso, não dava? Mas não, na verdade ele
nunca compreendeu a minha arte.
E ordena que se tapem com tabiques todas as aberturas de
estrutura já construida do teatro. Não era por nada, era só para que as corujas
não fossem lá fazer os ninhos.
O recurso seria Berlim. Oferecer o empreendimento a
Berlim. E Berlim responde politicamente: as coisas de Wagner são assunto
bávaro. Nem pensar em cometer a mais pequena ingerência nos negócios do Estado
da Baviera.
E como num passe de
mágica. Ludwig adiante o dinheiro em falta, com as contrapartidas já
sabidas.
Inauguração marcada para o ano de 1876.
Bayreuth, em termos práticos é um edifício de planta
rectangular, em tijolo vermelho e sem muitas pretensões arquitectónicas. Entre
1344 e 1500 lugares, em anfiteatro. Excelente visibilidade. Acústica que num
primeiro momento terá defraudado as melhores expectativas. Nove camarotes de
fundo de sala, atrás da plateia, chamados dos príncipes e reservados às cabeças
coroadas e ouras individualidades convidadas por Wagner. Orquestra invisível e
praticamente coberta, organizada em degraus que descem dos violinos (os mais
elevados) às tubas, tímpanos e trombones, seis degraus abaixo, e no sentido
contrário ao habitual das salas de concerto – o “golfo místico”, como foi
chamado, ou “abismo místico”. Nada de
foyers para o grosso do público.
Foyers só para os notáveis. Mas então… onde se passam os intervalos?
Passam-se ao ar livre e campestre. Omessa! E se chove? Se chove passam-se nos
restaurantes e cafés que se estabeleceram nas redondezas logo em 1876.
Wagner estava quase a caminhar sobre o arco-íris a
caminho da moradia divina, do seu Walhalla. Wagner como o deus Wotan que
criara, estava quase a poder declarar urbi
et orbi:
- Resplandece, morada gloriosa, resplandece ao
crepúsculo, tanto quanto exposta aos dardos do sol e à claridade da manhã.
Daqui te saúdo, salva de todos os horrores.
Wagner, de ponto em branco vestido, está na estação e
espera o rei Ludwig. É o rei o convidado especial para o ensaio geral do ciclo do
Anel do Nibelungo. Já deu a uma da madrugada e o comboio real não há meio
de chegar.
Mas o rei sempre aparece. Agitado, doente. Não parece
excessivamente entusiasmado com um evento que outrora também seria para ele um
ideal.
Ao evento acorrem nomes ilustres da Europa cultural. Num
só dia quinhentas pessoas deixaram cartões na salva colocada no vestíbulo de
Wahnfried. Elogia-se a tenacidade de um homem. Reis e príncipes e sábios
reunidos para homenagear um só homem? Caso nunca visto. E, mais difícil ainda,
para homenagear um artista. Onde e que já se tinha visto? Nunca.
No último momento todos pareciam ter compreendido que não
estava ali um simples artista. No último momento, finalmente, compreendia-se
que a homenagem era prestada mesmo ao templo sagrado da arte alemã.
(Entre a principesca chusma encontra-se um wagneriano de
longa data, D. Pedro, imperador do Brasil.)
O pior vai ser o déficit de exploração do grandioso
templo da arte alemã, que monta a mais de 120 mil marcos, e com o qual Wagner
não está em condições de se haver. O Estado bávaro? Mais uma vez Wagner é
avisado de que a régia tesouraria, por via de diversas obras públicas (entre
elas alguns castelos inúteis), não está em boa condição. Anunciar o festival do
ano seguinte? É uma ideia. Mas alguém terá de o pagar. Quem?
Feustel, o presidente do conselho de administração,
comunica-lhe:
- Mestre, compete-lhe
solver todos os défices da empresa. De toda a maneira, o empreendimento
é seu, o teatro é seu, a honra é toda sua…
- Ai é a mim que compete?
- Certamente, mestre. Os príncipes, os subscritores e os
protectores de Bayreuth não estão dispostos a deixar pingar dos reais bolsos
nem mais um cêntimo…
- Ah ele é isso? Pois meus amigos, se esse débito não for
regularizado sem mim, acabo por passar o teatro a um desses empresários que
praí andam e ele que se avenha, que eu, doente como ando, não estou para me
incomodar com mais nada.
- E os lucros que a propaganda do ciclo do Anel estão a
ajudar a conseguir por esse mundo?
- Calma aí. Antes de tudo, a cobertura do défice é
obrigação de Munique. Ou de Berlim. Tanto se me dá uma como outra. O que posso
fazer é repetir o ciclo do Anel à minha custa. Ou então… olhe, Feustel, ou
então entrego o teatro inteiro à corte de Munique. É isso. E na corte ele
ficará até que a divida para com o rei seja liquidada. Se assim não puder ser,
é como lhe digo, pisarei a pés todos os meus ideais, sim, e entrego-o a um
empresário.
É a realidade que pode levar um idealista, nem que ele se
chame Richard Wagner, a essa coisa tão feia que se chama prostituição.
Que a Tetralogia, na mão de um vulgar empresário de
teatros, se prostituísse por esse mundo fora já ele dava de barato. Era a
evidência da sua renúncia. Bayreuth era um paradigma moral e assim teria de ser
defendido, nem que fosse à custa de imorais concessões.
Wagner já estava noutra.
Qual outra? O Parsifal.
E esse ninguém teria coragem de o roubar ao teatro de Bayreuth fosse a que
preço fosse. Dizia ele.
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