AS RALAÇÕES QUE A
HISTÓRIA ME DÁ
O governo não fez nada. Posso garantir que o 1º
ministro esteve sempre perfeitamente informado. Só que não enfrentou nem deixou
de enfrentar a situação. E manteve essa posição até à tarde do 25 de Abril de
74, recusando-se inclusivamente a sair do quartel do Carmo quando os carros que
o haviam de levar estavam estacionados junto do elevador de Santa Justa. Um dos
inspectores que o acompanhariam entrou calmamente no quartel e
responsabilizou-se pela sua saída com total segurança. O 1º ministro limitou-se
a um breve agradecimento e a dizer-lhe que já combinara tudo com o general
Spínola. - transcrição
de declarações do ex-inspector da PIDE Abílio Pires.
Bom,
pessoalmente, só me posso exprobar pela figura de parvo que estive a fazer ao
fim da tarde de 25 de Abril de 74 no Largo do Carmo, a espera da rendição dos
gnr’s, da rendição do tirano acabado de depor, indignado com o fascismo, a ver
o desassombro e o destemor da acção dos novos heróis capitães.
Realmente,
não percebíamos nada de política. E continuamos a não perceber. De política, de
História. Ou até da vida. Não sei.
Do
que eu gostaria de ser capaz era de reflectir (se pudesse e soubesse) acerca
das partidas que a História nos prega e das ralações cívicas que a História dá
a um honesto e crédulo homem da rua que nunca teve, nem nunca terá, acesso a
informação classificada ou privilegiada.
Ainda quando
se trata de História da outra, universal, com letras grandes, já poucos
problemas aparecem aos simples como eu. Podendo embora muitas das coisas, tal
como ficaram historiadas, não passar de fragmentos da verdade ou mesmo de
fingimentos da verdade. Ou mais longe ainda, de rotundas mentiras bem
arranjadas para a posteridade. De qualquer das formas, o pessoal simplório
acredita com facilidade no que aprendeu nos bancos da escola, ou no que lhe contam
os eruditos, esses de quem não se espera outra coisa a não ser poderem mexer em
primeira mão nos papeis autênticos e serem
capazes de os lerem.
Quando a
História é contemporânea, tem testemunhas vivas e presentes, não sei se já é
História ou se ainda não é História e ainda é jornalismo, ou menos ainda que
jornalismo: comunicação social que dá para tudo – ou não será o compêndio de
História um momento de comunicação social?
É isso:
quando a História é o conto do que se passou faz agora 20, 30 ou 40 anos,
quando muitos de nós estiveram vivos e presentes e de boa saúde física e mental
aos acontecimentos, quando julgamos ter visto uma coisa que afinal não era
exactamente o que vimos, aí sim, começam as ralações…
A minha
ralação básica com a História é ensinarem-me que o acontecimento que presenciei,
que se deu quase na minha frente, na minha cidade ou na minha aldeia, não foi
afinal um acontecimento; ou que foi um acontecimento mas eu não o presenciei.
Então digam-me ao certo o que foi que eu presenciei. Um sonho?
O que se
passou nos nossos tempos e que nós vimos com os próprios olhos foram
evidentemente acontecimentos, acontecimentos que para nós faziam um sentido.
Mas quando, muitos anos depois, nos vêm dizer que os acontecimentos a que
assistimos ou de que fomos contemporâneos não tinham o sentido que lhes demos,
que os jornais do próprio dia lhe deram, que toda a gente lhes deu, esses
acontecimentos é como se deixassem de ter acontecido. O que eu vi, vivi, senti,
naquele fim de tarde entroviscado no Largo do Carmo, lado a lado com milhares
de cidadãos meus companheiros de anti-fascismo básico e primário, aconteceu.
Mas afinal
não aconteceu.
Ou não
aconteceu como eu o vi, vivi e senti.
Aquelas
cenas de chaimites, salgueiros maias, apelos de democratas inflamados,
ultimatos, megafones, rajadas para as paredes do quartel, guardavam um sentido
oculto. E todas as personagens importantes que nos anos que se seguiram
celebraram publicamente esse momento da queda da ditadura com o mesmo sentido
que eu lhe dei na própria da hora, mentiram. Sabiam de tudo, mas mantinham uma
versão de lenda. Tudo foi combinado. Não houve verdadeiro suspense, nunca nada
nem ninguém esteve em risco. Tudo combinado em bastidores. Chiquè. Como no boxe.
Perante
os sentidos da História o homem da rua é um parolo que só vê passar carros
eléctricos.
A História
do nosso passado pode ser contada e escrita em função dos interesses em jogo no
tempo presente, no presente da sua escrita. Donde é capaz de resultar ser a
História do passado uma retro-projecção dos acidentes políticos do presente.
Disse um
certo erudito chamado Prokovski que, no presente, uma História do passado se
escreve tendo em conta os objectivos que o presente aponta para o futuro. E
sendo óbvio que, como acontece com o passado, a nossa visão do próprio futuro
decorre da qualidade da nossa visão e vivência do presente.
Eu estive no
Lago do Carmo ao cair da tarde de 25 de Abril de 74, quando a chuvinha
molha-tolos começou a cair. Pensei que estava a ver acontecer uma história
heróica e abnegada. E eu, orgulhosamente, estava a ser testemunha dela. Mas não
estava coisíssima nenhuma.
Interiorizei
(e idealizei) o momento, o lugar e o gesto de uma mística e de uma verdade que
nunca existiram. Então para que foi aquela fita encenada pelos militares a
favor e contra fosse do que fosse ali no Largo do Carmo? Foi uma encenação para
a parcela de compreensão mais fácil e imediata da História – que também será
preciso contar.
Mas o
sentimento que agora me assalta de ter vivido uma comédia de mau gosto ao longo
de todo o pomposamente dito processo histórico e vivencial que se chamou 25 de
Abril reforça-se: o governo de Marcelo Caetano teve conhecimento da existência
e dos propósitos do Movimento das Forças Armadas desde Setembro de 1973. A PIDE estava por
dentro de reuniões de oficiais cujo objectivo era derrubar o governo, o regime.
Cinco Meses que Mudaram Portugal: livro de
Otelo Saraiva de Carvalho – o governo não suspeitava apenas, o governo sabia,
diz ele. Sabia de quê? Da existência e dos propósitos do MFA. O então major
Aventino Teixeira, homem do 25 de Abril, chegou mesmo a dizer: o golpe de Estado militar teve a conivência
da PIDE e de Caetano.
Não havia
então inimigos naquela tarde húmida de Abril no Largo do Carmo? Aquilo foi
espectáculo, foi comunicação social para os incautos, para os simples?
Vou citar: Por altura do almoço, o major Silva Pais
recebe um telefonema de António de Spínola. Nessa altura já havíamos tomado a
decisão de resgatar Marcelo Caetano do quartel do Carmo. Conduzi-lo-íamos para
o Forte de S. Julião da Barra ou para Espanha, onde poderia formar um governo
no exílio. Quem o disse foi o ex-inspector da PIDE Óscar Cardoso.
Disse mais: planeámos assim: Abílio Pires, com Agostinho
Tienza e Silvio Mortágua estacionavam na Rua do Carmo, junto ao elevador de
Santa Justa. Eu entraria no quartel do Carmo por uma porta lateral.
Discretamente, conduziria Marcelo Caetano por uma outra porta até ao tabuleiro
superior do elevador. Alcançaríamos depois a Rua do Carmo e o carro que nos
transportaria. O primeiro carro era um Mercedes e o segundo era um FIAT que,
sendo necessário, transportaria Marcelo Caetano, porque o Mercedes podia dar
nas vistas. Por volta das quatro da tarde, já com o Largo do Carmo com alguma
gente, lá fomos. Entrei, mas o Prof. Marcelo Caetano não quis sair. Disse-me
que estava tudo tratado com o general Spínola. E que fossemos às nossas vidas.
E cá
estamos. Afinal, quem foi a individualidade que, mesmo a contra-gosto,
restituiu a democracia ao povo português? Os heróicos capitães? Ou o próprio
Marcelo Caetano combinado com a surpreendentemente inerte PIDE-DGS?
E não era só
a PIDE que sabia do que se estava a passar e que ficaria para uma primeira
leitura histórica como a maravilhosa revolução dos cravos, como a heróica acção
dos bravos militares de Abril que restituíram a liberdade ao povo português. Os
serviços secretos de vários países sabiam há muito do que se passava. E dois ou
três dos mais influentes torcionários da instituição zarparam para o
estrangeiro na hora H. Havia membros do governo de Marcelo Caetano cientes do
que estaria para se passar e, segundo se lê, deixaram-se convencer não só de
que Marcelo continuaria à frente do governo, como de que eles próprios seriam
inamovíveis dos seus lugares ministeriais. Só Américo Thomaz seria a vítima. Só
ele seria arredado dos seus poderes presidenciais para dar o lugar a Spínola.
Um 25 de Abril?
Não. Vários. Ou quase nenhum?
Com Salazar o 25 de Abril nunca teria acontecido, opina o
ex-inspector da PIDE Abílio Pires. Como de facto nunca aconteceu.
Mas não
esqueçamos: nas vésperas do 25 de Abril, por ocasião de um Sporting-Benfica,
Marcelo Caetano foi aclamado no Estádio José de Alvalade. Um ano antes do 25 de
Abril, Marcelo Caetano não só era aclamado fosse onde fosse como era levado em
ombros pelas populações. Que raio de inquietante coisa é a política? Em que
fraudes autorizadas e universais pode beber a História?
Por
conhecermos de ouvido a lenda de uma instituição pensamo-la homogénea, muito
coesa, com grande espírito de corpo, em especial quando se trata de um órgão de
repressão do Estado. Mas pode não ser assim. Na PIDE, pelo menos naquelas horas
de iminência do golpe ou do não-golpe, do golpe dado por estes ou por aqueles,
as estruturas dirigentes cindiram-se.
Um dos
grupos de influência dentro da PIDE era constituído pelos salazaristas puros e
duros até à última, os mais antigos, ou mais tradicionais dos inspectores. O
outro grupo integrava inspectores e agentes com experiência continuada nos
teatros operacionais de Angola, Guiné e Moçambique, tinha contactado
estreitamente com oficiais, inclusivé milicianos, no quente das operações da guerra
colonial, e quiçá também eles teriam sido tocados pelas doutrinas espúrias da
esquerda estudantil, marxismos e leninismos, ou, vamos lá, pelas aragens de um
viver democrático moderno e alinhado pelo Ocidente.
Na verdade,
a Junta de Salvação Nacional, horas depois do eclodir do 25 de Abril, nomeia
director da PIDE um inspector superior chamado Coelho Dias, antigo colega de
Spínola no Colégio Militar e homem próximo do general.
A PIDE
conhecia a existência e actividades do Movimento dos Capitães, oh, se
conhecia!, e de ginjeira, e desde Setembro de 1973. Mas nunca recebera ordens
superiores para actuar adequadamente. Julgavam que o reviralho rebentaria
talvez no dia 1 de Maio de 74.
A 24 de
Abril de 74, o sub-director Barbieri Cardoso, acompanhado por um ou dois
inspectores, abalou para Bruxelas para uma reunião da NATO. Ignoro se sabia a
data do golpe e se por isso se quis pôr ao fresco. O certo é que nem ele nem os
que o acompanharam regressaram a Portugal.
Os
intrépidos rapazes da António Maria Cardoso ficam de boca aberta de pasmo
quando sabem que Marcelo Caetano se vai
refugiar no quartel do Carmo, ali mesmo no centro da Baixa lisboeta, nas barbas
do populacho que nesse dia, lá para o meio da manhã, sentindo já as costas
quentes, se dera conta dos afogueamentos revolucionários que lhe subiam pelo
corpo. Impressão benfazeja e redentora que durante 48 anos não haviam
experimentado.
A ida de
Marcelo Caetano para o Carmo baralhou o esquema dos homens da PIDE. A norma não
era essa em caso de perigo. A norma era o presidente do Conselho refugiar-se em
Monsanto, de onde seria muito mais fácil tirá-lo e po-lo a caminho de outro
destino qualquer. Segundo o testemunho pessoal de um inspector da PIDE, Marcelo
tinha a certeza de que iria cair, de que seria arredado do caminho ou pela
esquerda ou pela direita. Tendenciosamente, o inspector refere que Marcelo
resolveu cair para o lado dos comunistas. Dir-se-ia também que Marcelo Caetano
avaliara mal a situação e tivera, mesmo no último minuto, algumas esperanças de
que tudo viesse a ser diferente daquilo que foi.
Mas a
facções no interior da PIDE discutiam. Os puros, ainda herdeiros das delícias
do Tarrafal, contra os veteranos da guerra colonial, esses cristãos-novos da
repressão política. Havia inspectores aparentemente feitos com Spínola.
Barbieri Cardoso, pouco antes de embarcar para Bruxelas, terá dito ao inspector
Abílio Pires: prefiro que você fique por
cá, cheira-me que eles estão quase a sair da toca. As informações de que
dispunham eram completas, exaustivas. Só lhes faltava saber o dia certo do
levantamento. Espiavam intensamente um certo capitão. A 24 de Abril seguiram
esse capitão até Cascais, até ao Centro de Instrução de Artilharia de Costa,
Registaram que o nosso capitão saiu de Cascais ajoujado ao peso de uma
quantidade de rádio-transmissores. E pensaram: é amanhã!
Na solidão
do seu incerto poder, sabendo-se na iminência de ser apeado, em que estaria
Marcelo Caetano a pensar? Na morte? Nas condições de um exílio? Nos enxovalhos
a que o povo o poderia sujeitar? Nos hipotéticos estratagemas para se manter no
poder.
O Secretário
de Estado do Exército era um coronel chamado Viana de Lemos, que por sua vez
era cunhado do coronel comandante do Regimento de Cavalaria 7, ali da Ajuda.
Viana de Lemos tinha excelentes relações pessoais com o inspector que sempre me
pareceu mais intelectual e civilizado da PIDE, Álvaro Pereira de Carvalho. O
inspector alertou o membro do governo, olhe
que a situação não está para brincadeiras, ouviu. Foram jantar. Ao Gambrinus.
Claro,
segundo o inspector, era absolutamente preciso que se tomassem medidas
militares para travar a saída para a rua dos revoltosos. O Secretário de
Estado, surpreendentemente, não pareceu muito apoquentado com o caso. Deixe-os vir, amigo, deixe-os sair que o meu
cunhado comandante de Cavalaria 7 lhes dará tamanho arraial de porrada que eles
nem sabem de que terra são…
É previsível
que na madrugada de 24 para 25 de Abril de 74, o ambiente na sede da PIDE na
Rua António Maria Cardoso fosse de cortar à faca. Que diabo! A missão daqueles
homens era defender o regime se fosse preciso à custa da própria vida. Aqueles
homens tinham toda a informação sobre o que se iria passar dentro de umas
horas. Aqueles homens não havia meio de receberem instruções para actuar. Aqueles
homens tinham ouvido dizer, como todo o cidadão interessado tinha, que quando
as coisas dessem uma volta os candeeiros de Lisboa seriam poucos para pendurar
os servidores da ditadura fascista. Aqueles homens viviam naquela madrugada a
tensão da impotência. É humano, que diabo! Coitados! E para se entreterem e
aquecerem as mãos iam queimando papeis…
Entretanto,
o inspector nomeado por Spínola já se assenhoreara da situação no interior da
PIDE, já começara a dar ordens.
Muitos do
homens de serviço na António Maria Cardoso na noite de 24 para 25 de Abril,
depois de queimarem os papeis mais secretos e comprometedores, podiam ter
optado por fugir. Tinham meios para isso. Aliás, já podiam ter fugido há dias,
sabendo eles o que sabiam. Mas não fugiram. Porquê? Porque tinham a sua fézada
no general Spínola, no grande cabo de guerra, no militar de cavalaria, no
oficial prussiano tradicional de monóculo no olho. Um oficial prussiano de
monóculo no olho, bolas!, não mentia. Não só não mentia como dava garantias.
(A
propósito, onde estávamos nos dias 24 e 25 de Abril? A fazer o quê? Com quem? A
pensar em quê? A pensar o quê de quê?)
Entretanto,
nasce o dia. No Terreiro do Paço e na Rua do Arsenal as tropas sublevadas
encontram-se frente a frente com os tanques de Cavalaria 7 comandados pelo tal
cunhado do Secretário de Estado do Exército, o tal que iria dar aos revoltosos
um arraial de porrada que eles nem saberiam de que terra eram.
Pois bem,
quando chegou a hora do arraial de porrada, quando chegou o momento da verdade,
o momento de abrir fogo sobre os insurrectos, à ordem de fogo dada pelo
comandante, os soldados viraram-lhe as costas, abandonaram-no,
desobedeceram-lhe. E desataram aos beijos e aos abraços aos seus camaradas
inimigos. A chamada revolução portuguesa iria mais tarde, no Ralis, por
exemplo, conhecer outros tocantes momentos de ternura entre militares que todos
julgavamos inimigos.
Spínola, o
prussiano, o do monóculo, dera garantias. Os homens da PIDE não mexeram uma
palha nem para impedir o golpe nem para darem à sola. Caíram que nem uns
patinhos nas inércias que a História também tem. Ah não, não se chateiem,
rapazes, isto é tudo fogo de vista. O que vai haver são umas alteraçõezitas nas
cúpulas do Estado, mas ninguém vos vai incomodar, vocês vão continuar a ser
precisos para aplicarem as técnicas da estátua e da tortura do sono e um
chapadão ou outro nos mais relapsos, era o que faltava… com os comunistas agora
à solta, sim, sim, deixem-se estar…
Nasce
soalheira a manhã do dia 25 de Abril.
Por volta das
11 horas, recebe-se um telefonema na PIDE. Um oficial às ordens do Chefe do
Estado Maior do Exército pergunta se é possível calar uma estação de rádio que
se está a tornar impertinente, o Rádio Clube Português. A PIDE diz que sim, que
vai tratar do assunto. E vai. Arranja alguns materiais e prepara-se para
arrancar para o Porto Alto e rebentar com os emissores. Mas para rebentar com
aquela gigajoga era preciso pelo menos um morteiro. Dirigiram-se ao comandante
de fuzileiros. E ele que sim senhor, façam favor, o morteiro está no Arsenal à
vossa disposição, rebentem-me depressa com esse estupor desse emissor.
Isto, como
disse, na manhã do próprio dia 25 de Abril.
Os homens da
PIDE, devidamente mandatados pelo comandante dos fuzileiros, vão ao Arsenal da
Marinha buscar o morteiro. Onde é que está o homem que tem a chave do armeiro?
Então, o
homem nunca mais aparece?
E o Rádio
Clube Português nas calmas, a transmitir.
Que horas já
são isto? Então onde e que pára o homem? Onde é que está a chave?
Isto, mesmo
nas revoluções e nas contra-revoluções, os portugueses são assim, sempre atados
de pés e mãos por questões ridículas, domésticas, digamos: um homem, uma chave;
que é do homem?, que é da chave?, nem homem nem chave, nem o pai morre nem a
gente almoça, está-se a fazer tarde e a revolução nem se faz nem deixa de se
fazer…
Últimas da
revolução: o homem da chave do armeiro onde estava o morteiro desapareceu como
o fumo. Vamos lá, então, quem é o fortalhaço valentão que é capaz de arrombar
esta porta? Eu! Zástráspás! Bum! Nada. Outra vez. Zástráspás! Bum! Nada. Experimenta tu. É para já. Zástráspás! Bum! Nada. (Depois de 48 anos de fascismo e por força das leis darwinistas da
evolução das espécies, ele até é capaz de haver portas anti-fascistas.) Tento
eu, tentas tu. Zástráspás! Bum! Nada. Só faltava ouvir-se uma gargalhada de escárneo vinda
do outro lado da malfadada porta. Mais tentativas. Nada.
Um homem que
desaparece. Uma chave que desaparece com o homem. Uma porta que ninguém
consegue deitar abaixo… é disto que se faz a História. Então? Ninguém é capaz
de arrombar o raio da porta? Não. Era impossível arrombar a porta. E ali
estavam uns quantos façanhudos agentes e inspectores da temível polícia
política que fazia suar frio a qualquer cidadão, armados em parvos diante de
uma porta fechada, com as horas a passarem-se e com o Rádio Clube a transmitir
calmamente palavras de ordem ao povo e mensagens cifradas aos rebeldes.
Cai a noite.
O emissor de Porto Alto do Rádio Clube Português não podia ser dinamitado por
causa da porta e da chave e do homem. Cai a noite com o Rádio Clube Português
do lado dos revoltosos.
Terá sido
exactamente assim? Não terá? Quem pode dizer que foi testemunha dos factos?
Cai a noite
(caíram várias noites naquele dia) e a emissão da RTP abre com um grupo de
circunspectos senhores sentados a uma mesa corrida. Entre eles está o
comandante de fuzileiros que prometera um morteiro para dar cabo do emissor do
Rádio Clube: o almirante Pinheiro de Azevedo.
Calcule-se a cara com que ficaram
os homens da PIDE ao vê-lo ali refastelado ao lado do prussiano do monóculo em
quem eles confiavam. Era aquele era, o almirante dos fuzileiros que horas antes
tinha sido tão prestável para cortar o pio aos sublevados indicando-lhes uma
porta intransponível, sem homem e sem chave. Cortar o pio aos sublevados, não
era? Sublevados que afinal o acabavam de sentar no poleiro.
E eu
continuo a cismar. Que papel estive eu também a fazer como cidadão crente e
democrata no Largo do Carmo ao fim da tarde chuviscante do dia 25 de Abril de
1974?
As coisas
começaram a ficar feias. Houve tiros, houve mortos, quatro, e feridos, na
própria António Maria Cardoso, como se sabe – ainda que muitos já o tenham
esquecido. Os pides dispararam sobre o ululante povo. E no dia 26, faltava um
quarto para dez da manhã, um destacamento de tropas revoltosas entrou na sede
da PIDE. Disse-se que lá dentro estariam 400 ou 500 agentes – é facto, ou é
lenda? Agentes ou funcionários? Ou telefonistas? Ou motoristas?
Mas antes,
os militares revoltosos enviaram ao interior do edifício dois ou três agentes
da PIDE que previamente haviam detido. A missão deles era convencer os colegas
a entregarem-se incondicionalmente. Demorou coisa de dez minutos. Mas talvez
nem se tenha passado nada disto e isto tenha sido apenas uma versão para a
História…
Nas
imediações do Chiado, por esses dias, foi um fartote de correrias loucas e de
perseguições. Qualquer tipo de má catadura era apontado como torcionário da
PIDE pelos revolucionários e anti-fascistas, os ches guevaras que de repente
apareceram, saídos da Brasileira.
Agarravam no tipo mais mal encarado, empurravam-no contra uma parede, punham-no em
cuecas, e depois não sei, mandavam vir as Forças Armadas para lhe examinar as
cuecas e eventualmente para o prender. Uns seriam pides. Outros não seriam. Uns
traziam pistolas Walther disfarçadas
nas cuecas. Outros esconderiam nas cuecas outras coisas menos perigosas - ou
mais, já não sei. E outros, é verdade, não traziam nada nas cuecas…
Dizia eu
então que acabava de assistir à História colhida no momento, ao vivo, idiota
chapado que sou. Não assisti a nada. Assisti a correrias. Assisti ao facto
histórico de se juntarem centenas ou milhares de populares, eu incluído, no
Largo do Carmo. Assisti, quando caía a noite e chovia miudinho, à saída de umas
chaimites em que, numa delas, era suposto ir Marcelo Caetano. Foi um facto a
saída das chaimites, isso foi. Mas iria mesmo lá dentro o Marcelo Caetano? Não
sei. Ou sei. Vim a saber anos mais tarde. Não ia. Marcelo Caetano foi noutra,
que passou quando o povaréu debandava, e debandava porque já tinha apupado a viatura onde lhe disseram
que ele ia e ele não ia.
Passados 30
ou 40 anos sobre os factos sei lá o que era verdade, o que foi a verdade. Sei
lá se aquele facto era, ou estava para ser, um facto histórico. O que é um
facto? Quer dizer, o que é um facto histórico?
Facto
histórico foi o cruel, jurássico, despótico e sanguinário regime facista ter
sido apanhado de surpresa e tão flagrantemente por uma revolução a que nem
reagiu, a que nem teve forças para oferecer resistência?
Facto
histórico era já estar tudo combinado ao mais alto nível e há muito tempo, e só
faltar quem encenasse os factos para parecerem históricos e neles fizesse o
papel de herói protagonista para a
fotografia à la minute da História?
Facto
histórico era o pagode reunido no Carmo estar convencido de que estava a fazer
História, julgando estar a pressioná-la, a fazê-la acontecer?
Facto
histórico era Marcelo Caetano estar refugiado no quartel do Carmo à guarda da
GNR e os revoltosos quererem à viva força lá entrar, ou fazer de lá sair, à
força, o deposto chefe do governo?
Ou facto
histórico era os revolucionários que estavam no Carmo saberem perfeitamente que
as coisas se estavam a passar e a ser conversadas entre os altos dignitários e
as altas chefias militares, com a possibilidade em aberto de a PIDE resgatar
Marcelo Caetano pelo elevador de Santa Justa e dar-lhe sumiço, e estarem esses
revolucionários a representar o seu papel para o pagode, tal como o pagode
repentinamente revolucionário estava a representar o seu enfurecido e
impaciente papel para eles, a querer ver com os seus olhos Marcelo Caetano a
ser humilhado e derrubado do poder?
É inevitável
que os factos da História não sejam a imagem exacta dos mesmos factos tal como
eles aconteceram: mudam de figura no pensamento do historiador, moldam-se aos
seus interesses, tomam a cor dos seus preconceitos – disse Jean Jacques
Rousseau. E é verdade. O povo que se juntou no Carmo queria ser o historiador
daquele momento segundo os seus interesses, a queda espectacular de Marcelo e
do regime.
Marcelo
Caetano quis escrever o seu protagonismo naquele instante da História usando de
dilacção, o poder a cair na rua e outras balelas, falando com Spínola,
inclusivamente fazendo crer que estava a ser a vítima dos acontecimentos e da
violência política.
Spínola
também queria escrever a História a seu modo, fazendo depender de uma heróica
atitude sua o desenlace da cena que estava montada no Largo do Carmo.
E a PIDE, 30
e muitos anos depois de deixar de existir, através de depoimentos de alguns dos
seus agentes, vai querer rever a História de acordo com os interesses da sua
imagem corporativa: tudo aconteceu porque a corporação deixou que acontecesse.
Não há
factos históricos.
E esta?
Um outro
pensador teorizou que cada historiador obtém o tipo de factos que quiser
encontrar. Talvez seja verdade. E se assim for, vejam lá bem o tipo de ralações
que a História nos dá.
Outro
intelectual, Adam Schaff, propõe que o facto histórico seja um pequeno cubo que
conserva sempre a mesma forma, é igual, para todos, e com um maior número
desses cubos se podem construir os mosaicos que se quiser. E a forma e o estilo
e a cor desses mosaicos dependerá da colocação dos cubos.
Poderemos
construir da vida das comunidades a História que quisermos. Tudo dependerá de
como colocamos os factos.
Quando os
positivistas e os lógicos e os prosaicos falam de factos dão-me vontade de rir.
A mim só me interessam os factos; não quero saber de blá-blá nem de conversa
fiada, eu quero é factos; apresentem-me factos, não me dêem opiniões… ora, mas
e se o facto já for, já contiver em si mesmo uma opinião? Serão os factos tão
sólidos como a matéria física, cheia de substância, definida, perfeitinha, de
contornos nítidos e indiscutíveis como tijolos?
É complicado
e equívoco falar-se em facto histórico. É como falar da liberdade. Ou mesmo de
democracia. Ou, em suma, falar seja no que for.
O que dá
conta da nossa cabeça e da nossa consciência cheia de opiniões e teorias são os
contextos. Alguns dizem que um facto histórico não existe por si mesmo,
independentemente dos seus contextos; um facto só seria histórico se construído
pela opinião pública. Pois é a opinião pública que neste momento de
revisionismo histórico está a ser provocada para consagrar factos diferentes
dos consagrados até agora; é a opinião pública que se quer influenciar para
alterar a História conhecida, ou operar a recontextualização dos factos a que
assistimos, como eu no Largo do Carmo, no dia 25 de Abril, e sendo que, às
tantas, passados estes anos todos, já não sei o que lá estive a ver, o que lá
estive a fazer ou a ajudar a fazer (já nem sei ao certo se lá estive), e em que
espectáculo/contexto fui figurante, e quem eram nesse momento os artistas
principais do filme - e de que filme…
Os
principais e mais escaldantes ficheiros da PIDE desapareceram. Foram roubados.
Por quem? Não interessa. E para quê? Ora para quê, para que os factos
constantes desses ficheiros deixem de uma vez por todas de ser factos. E,
naturalmente, de ser históricos.
Ficheiros
outros foram forjados para arranjar o curriculum democrático ou revolucionário
a certas individualidades que os não tinham. Ficheiros novos para criar novos
factos históricos. Não importa já muito se reais ou irreais. Porque na crónica histórica começa a germinar a
dúvida quanto aos factos. Sim, quanto à própria realidade.
Delgado foge
para o Brasil.
Galvão evade-se da embaixada da Argentina onde estava em regime
de asilado político.
Cunhal foge de Peniche.
Coisas que acontecem quase em
simultâneo. Depois, quer fazer-se crer terá sido do grupo de Argel a
responsabilidade da morte de Delgado. E por aí adiante. Alguém está a querer
construir factos para outra História, para a pós-pós-modernidade,
recontextualizando da História as estórias?
Só ralações
para o cidadão honesto e bem intencionado, enfim.
O homem da
rua, para acreditar nalguma coisa gostaria de saber o que é aceitável e o que é
recusável em cada momento como facto histórico. E dizem-me os teóricos que o
mais difícil é escrever a História do imediato vivido, visível, presente,
contemporâneo. Quem o fizer há-de estar comprometido com os factos e as fontes
do que está a acontecer. Mas as mais fiáveis e bem elaboradas das fontes, e os
mais formosos dos factos só mais tarde virão a aparecer. Porque é difícil
interpretar o sentido dos factos quando só se têm gestos para apreciar.
Muito interessante, aliás como sempre.
ResponderEliminarA História é uma narrativa que encadeia factos históricos. Mas os factos históricos são elementos compósitos, que incluem os acontecimentos factuais (reais, ou objectivos) mais o somatório quer da sua percepção (subjectiva), quer do seu significado (subjectivo e objectivo), os quais variam ainda de observador para observador (seja ele individual ou colectivo).
É assim como olhar para a História como se olha para qualquer realidade física: um objecto tem um aspecto visto a um metro de distância, mas tem aspectos muito diferentes quando aproximamos ou afastamos o ponto de vista!
Essa "distância" de observação, em História, é o Tempo, sendo o "ponto de vista" a mentalidade, o conhecimento, as crenças e os preconceitos do observador.
Para o comum dos mortais vivos no nosso Portugal urbano e mediatizado do Século XXI, o 25 de Abril é uma data histórica incontornável, mas o mesmo não pode dizer-se (ainda) do 23 de Março (ou do 5 de Junho) de 2011, ou do dia em que Cavaco Silva discursou na sua segunda tomada de posse na A. R. como Presidente da República, ou até do dia de hoje, em que se vota qualquer coisa banal em S. Bento, porque nada disto tem perspectiva histórica.
É como ver apenas umas nervuras lenhosas quaisquer, acastanhadas e húmidas, antes de subir num balão de ar quente e, voltando a olhar para elas, perceber enfim que se trata afinal do ramo mais alto de um imponente cedro, ou do ramo mais modesto de uma vetusta e retorcida azinheirinha...
«A propósito, onde estávamos nos dias 24 e 25 de Abril? A fazer o quê? Com quem? A pensar em quê? A pensar o quê de quê?»
ResponderEliminarJá que pergunta (e se quer mesmo saber...), no dia 24 de Abril de 74, com 14 anos, fui às aulas ao Liceu, como habitualmente, levando como levava aquilo que para mim era "uma vida normal". Onde não entrava a Política, muito menos a PIDE, ou a iminência de tudo se alterar por completo! Entrava apenas o Marcello Caetano, muito discretamente e pela nossa recém-adquirida televisão, mas na forma amena de "conversas em família", sem cariz político, portanto...
O único facto relevante que registo na memória, desse dia 24 de Abril de 74, é o entusiasmo com que assisti à meia-final da Taça das Taças, em directo de Magdeburgo (na então desportivamente pujante R. D. A.), com o meu querido "Sporting", que jogou muito bem e quase se qualificou para a Final!...
Já o dia 25 de Abril foi passado inteiramente em casa, confinado como estava pelas disposições paternais (respeitando aliás o apelo do M. F. A.), mas acompanhado de perto pela Rádio, que me transportou súbitamente para um Mundo fascinante e inteiramente desconhecido para mim: o da Música do Zeca Afonso, do Sérgio Godinho, do Padre Fanhais e do José Mário Branco! Ainda sem pensar nada sobre nada, foi esta Poesia e as melodias que a envolviam, inesquecíveis, que me despertaram, nesse "dia inicial claro e limpo", para tudo aquilo que, a pouco e pouco, o 25 de Abril trouxe à minha vida. Mas que nesse próprio dia não poderia, nem de longe, imaginar...
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ResponderEliminarIsto é só uma manifestação de júbilo, de alegria esfuziante por poder encontrar aqui o Joel Costa.
Muitas saudades da voz e do tom, na antena 2,... e este precioso texto do 25 de Abril é uma jóia que muito desejei ler para melhor saborear.
Não temos por aqui a música que acompanhava a palavra, mas quem sabe futuramente... Mas temos a imagem! E que belas as imagens.
Muitas vezes pensei em escrever-lhe... foi desta!
Um grande abraço e Bem haja!
E tudo começou com o Decreto-Lei nº 353/73 que permitia aos oficiais milicianos passarem para o quadro de oficiais depois de curso intensivo de dois semestres!
ResponderEliminarComo em todas as revoluções os objectivos são quase sempre ultrapassados com o rápido desenrolar dos acontecimentos e o 25 de Abril não foi excepção; felizmente que aos trabalhões, aos saltos e aos ziguezagues para a esquerda e para a direita a revolução acabou numa inocente democracia que está longe de agradar à esquerda, à direita, ao centro e aos inconformados.
Mas houve os que ganharam a parada, os militares, isto é, os capitães e os oficiais que alinharam na aventura com excepção de alguns que a história se encarregará de desvendar dos porquês.