terça-feira, 2 de abril de 2013




        AS RALAÇÕES QUE A HISTÓRIA ME DÁ


O governo não fez nada. Posso garantir que o 1º ministro esteve sempre perfeitamente informado. Só que não enfrentou nem deixou de enfrentar a situação. E manteve essa posição até à tarde do 25 de Abril de 74, recusando-se inclusivamente a sair do quartel do Carmo quando os carros que o haviam de levar estavam estacionados junto do elevador de Santa Justa. Um dos inspectores que o acompanhariam entrou calmamente no quartel e responsabilizou-se pela sua saída com total segurança. O 1º ministro limitou-se a um breve agradecimento e a dizer-lhe que já combinara tudo com o general Spínola. -  transcrição de declarações do ex-inspector da PIDE Abílio Pires.
Bom, pessoalmente, só me posso exprobar pela figura de parvo que estive a fazer ao fim da tarde de 25 de Abril de 74 no Largo do Carmo, a espera da rendição dos gnr’s, da rendição do tirano acabado de depor, indignado com o fascismo, a ver o desassombro e o destemor da acção dos novos heróis capitães.
Realmente, não percebíamos nada de política. E continuamos a não perceber. De política, de História. Ou até da vida. Não sei.


       Do que eu gostaria de ser capaz era de reflectir (se pudesse e soubesse) acerca das partidas que a História nos prega e das ralações cívicas que a História dá a um honesto e crédulo homem da rua que nunca teve, nem nunca terá, acesso a informação classificada ou privilegiada.
Ainda quando se trata de História da outra, universal, com letras grandes, já poucos problemas aparecem aos simples como eu. Podendo embora muitas das coisas, tal como ficaram historiadas, não passar de fragmentos da verdade ou mesmo de fingimentos da verdade. Ou mais longe ainda, de rotundas mentiras bem arranjadas para a posteridade. De qualquer das formas, o pessoal simplório acredita com facilidade no que aprendeu nos bancos da escola, ou no que lhe contam os eruditos, esses de quem não se espera outra coisa a não ser poderem mexer em primeira mão nos papeis autênticos e serem  capazes de os lerem.
Quando a História é contemporânea, tem testemunhas vivas e presentes, não sei se já é História ou se ainda não é História e ainda é jornalismo, ou menos ainda que jornalismo: comunicação social que dá para tudo – ou não será o compêndio de História um momento de comunicação social?
É isso: quando a História é o conto do que se passou faz agora 20, 30 ou 40 anos, quando muitos de nós estiveram vivos e presentes e de boa saúde física e mental aos acontecimentos, quando julgamos ter visto uma coisa que afinal não era exactamente o que vimos, aí sim, começam as ralações…



A minha ralação básica com a História é ensinarem-me que o acontecimento que presenciei, que se deu quase na minha frente, na minha cidade ou na minha aldeia, não foi afinal um acontecimento; ou que foi um acontecimento mas eu não o presenciei. Então digam-me ao certo o que foi que eu presenciei. Um sonho?
O que se passou nos nossos tempos e que nós vimos com os próprios olhos foram evidentemente acontecimentos, acontecimentos que para nós faziam um sentido. Mas quando, muitos anos depois, nos vêm dizer que os acontecimentos a que assistimos ou de que fomos contemporâneos não tinham o sentido que lhes demos, que os jornais do próprio dia lhe deram, que toda a gente lhes deu, esses acontecimentos é como se deixassem de ter acontecido. O que eu vi, vivi, senti, naquele fim de tarde entroviscado no Largo do Carmo, lado a lado com milhares de cidadãos meus companheiros de anti-fascismo básico e primário, aconteceu.
Mas afinal não aconteceu.


Ou não aconteceu como eu o vi, vivi e senti.


Aquelas cenas de chaimites, salgueiros maias, apelos de democratas inflamados, ultimatos, megafones, rajadas para as paredes do quartel, guardavam um sentido oculto. E todas as personagens importantes que nos anos que se seguiram celebraram publicamente esse momento da queda da ditadura com o mesmo sentido que eu lhe dei na própria da hora, mentiram. Sabiam de tudo, mas mantinham uma versão de lenda. Tudo foi combinado. Não houve verdadeiro suspense, nunca nada nem ninguém esteve em risco. Tudo combinado em bastidores. Chiquè. Como no boxe.


            Perante os sentidos da História o homem da rua é um parolo que só vê passar carros eléctricos.
A História do nosso passado pode ser contada e escrita em função dos interesses em jogo no tempo presente, no presente da sua escrita. Donde é capaz de resultar ser a História do passado uma retro-projecção dos acidentes políticos do presente.


Disse um certo erudito chamado Prokovski que, no presente, uma História do passado se escreve tendo em conta os objectivos que o presente aponta para o futuro. E sendo óbvio que, como acontece com o passado, a nossa visão do próprio futuro decorre da qualidade da nossa visão e vivência do presente.


Eu estive no Lago do Carmo ao cair da tarde de 25 de Abril de 74, quando a chuvinha molha-tolos começou a cair. Pensei que estava a ver acontecer uma história heróica e abnegada. E eu, orgulhosamente, estava a ser testemunha dela. Mas não estava coisíssima nenhuma.
Interiorizei (e idealizei) o momento, o lugar e o gesto de uma mística e de uma verdade que nunca existiram. Então para que foi aquela fita encenada pelos militares a favor e contra fosse do que fosse ali no Largo do Carmo? Foi uma encenação para a parcela de compreensão mais fácil e imediata da História – que também será preciso contar.
Mas o sentimento que agora me assalta de ter vivido uma comédia de mau gosto ao longo de todo o pomposamente dito processo histórico e vivencial que se chamou 25 de Abril reforça-se: o governo de Marcelo Caetano teve conhecimento da existência e dos propósitos do Movimento das Forças Armadas desde Setembro de 1973. A PIDE estava por dentro de reuniões de oficiais cujo objectivo era derrubar o governo, o regime.
                                                                       
Cinco Meses que Mudaram Portugal: livro de Otelo Saraiva de Carvalho – o governo não suspeitava apenas, o governo sabia, diz ele. Sabia de quê? Da existência e dos propósitos do MFA. O então major Aventino Teixeira, homem do 25 de Abril, chegou mesmo a dizer: o golpe de Estado militar teve a conivência da PIDE e de Caetano.


Não havia então inimigos naquela tarde húmida de Abril no Largo do Carmo? Aquilo foi espectáculo, foi comunicação social para os incautos, para os simples?
Vou citar: Por altura do almoço, o major Silva Pais recebe um telefonema de António de Spínola. Nessa altura já havíamos tomado a decisão de resgatar Marcelo Caetano do quartel do Carmo. Conduzi-lo-íamos para o Forte de S. Julião da Barra ou para Espanha, onde poderia formar um governo no exílio. Quem o disse foi o ex-inspector da PIDE Óscar Cardoso.
                                                                                 
                                                                                         
Disse mais: planeámos assim: Abílio Pires, com Agostinho Tienza e Silvio Mortágua estacionavam na Rua do Carmo, junto ao elevador de Santa Justa. Eu entraria no quartel do Carmo por uma porta lateral. Discretamente, conduziria Marcelo Caetano por uma outra porta até ao tabuleiro superior do elevador. Alcançaríamos depois a Rua do Carmo e o carro que nos transportaria. O primeiro carro era um Mercedes e o segundo era um FIAT que, sendo necessário, transportaria Marcelo Caetano, porque o Mercedes podia dar nas vistas. Por volta das quatro da tarde, já com o Largo do Carmo com alguma gente, lá fomos. Entrei, mas o Prof. Marcelo Caetano não quis sair. Disse-me que estava tudo tratado com o general Spínola. E que fossemos às nossas vidas.

                                                

E cá estamos. Afinal, quem foi a individualidade que, mesmo a contra-gosto, restituiu a democracia ao povo português? Os heróicos capitães? Ou o próprio Marcelo Caetano combinado com a surpreendentemente inerte PIDE-DGS?
E não era só a PIDE que sabia do que se estava a passar e que ficaria para uma primeira leitura histórica como a maravilhosa revolução dos cravos, como a heróica acção dos bravos militares de Abril que restituíram a liberdade ao povo português. Os serviços secretos de vários países sabiam há muito do que se passava. E dois ou três dos mais influentes torcionários da instituição zarparam para o estrangeiro na hora H. Havia membros do governo de Marcelo Caetano cientes do que estaria para se passar e, segundo se lê, deixaram-se convencer não só de que Marcelo continuaria à frente do governo, como de que eles próprios seriam inamovíveis dos seus lugares ministeriais. Só Américo Thomaz seria a vítima. Só ele seria arredado dos seus poderes presidenciais para dar o lugar a Spínola.

                                                                        

Um 25 de Abril? Não. Vários. Ou quase nenhum?
Com Salazar o 25 de Abril nunca teria acontecido, opina o ex-inspector da PIDE Abílio Pires. Como de facto nunca aconteceu.


Mas não esqueçamos: nas vésperas do 25 de Abril, por ocasião de um Sporting-Benfica, Marcelo Caetano foi aclamado no Estádio José de Alvalade. Um ano antes do 25 de Abril, Marcelo Caetano não só era aclamado fosse onde fosse como era levado em ombros pelas populações. Que raio de inquietante coisa é a política? Em que fraudes autorizadas e universais pode beber a História?
Por conhecermos de ouvido a lenda de uma instituição pensamo-la homogénea, muito coesa, com grande espírito de corpo, em especial quando se trata de um órgão de repressão do Estado. Mas pode não ser assim. Na PIDE, pelo menos naquelas horas de iminência do golpe ou do não-golpe, do golpe dado por estes ou por aqueles, as estruturas dirigentes cindiram-se.


Um dos grupos de influência dentro da PIDE era constituído pelos salazaristas puros e duros até à última, os mais antigos, ou mais tradicionais dos inspectores. O outro grupo integrava inspectores e agentes com experiência continuada nos teatros operacionais de Angola, Guiné e Moçambique, tinha contactado estreitamente com oficiais, inclusivé milicianos, no quente das operações da guerra colonial, e quiçá também eles teriam sido tocados pelas doutrinas espúrias da esquerda estudantil, marxismos e leninismos, ou, vamos lá, pelas aragens de um viver democrático moderno e alinhado pelo Ocidente.
Na verdade, a Junta de Salvação Nacional, horas depois do eclodir do 25 de Abril, nomeia director da PIDE um inspector superior chamado Coelho Dias, antigo colega de Spínola no Colégio Militar e homem próximo do general.
A PIDE conhecia a existência e actividades do Movimento dos Capitães, oh, se conhecia!, e de ginjeira, e desde Setembro de 1973. Mas nunca recebera ordens superiores para actuar adequadamente. Julgavam que o reviralho rebentaria talvez no dia 1 de Maio de 74.
        A 24 de Abril de 74, o sub-director Barbieri Cardoso, acompanhado por um ou dois inspectores, abalou para Bruxelas para uma reunião da NATO. Ignoro se sabia a data do golpe e se por isso se quis pôr ao fresco. O certo é que nem ele nem os que o acompanharam regressaram a Portugal.

                                                                                               

Os intrépidos rapazes da António Maria Cardoso ficam de boca aberta de pasmo quando sabem que Marcelo Caetano se vai refugiar no quartel do Carmo, ali mesmo no centro da Baixa lisboeta, nas barbas do populacho que nesse dia, lá para o meio da manhã, sentindo já as costas quentes, se dera conta dos afogueamentos revolucionários que lhe subiam pelo corpo. Impressão benfazeja e redentora que durante 48 anos não haviam experimentado.


A ida de Marcelo Caetano para o Carmo baralhou o esquema dos homens da PIDE. A norma não era essa em caso de perigo. A norma era o presidente do Conselho refugiar-se em Monsanto, de onde seria muito mais fácil tirá-lo e po-lo a caminho de outro destino qualquer. Segundo o testemunho pessoal de um inspector da PIDE, Marcelo tinha a certeza de que iria cair, de que seria arredado do caminho ou pela esquerda ou pela direita. Tendenciosamente, o inspector refere que Marcelo resolveu cair para o lado dos comunistas. Dir-se-ia também que Marcelo Caetano avaliara mal a situação e tivera, mesmo no último minuto, algumas esperanças de que tudo viesse a ser diferente daquilo que foi.


Mas a facções no interior da PIDE discutiam. Os puros, ainda herdeiros das delícias do Tarrafal, contra os veteranos da guerra colonial, esses cristãos-novos da repressão política. Havia inspectores aparentemente feitos com Spínola. Barbieri Cardoso, pouco antes de embarcar para Bruxelas, terá dito ao inspector Abílio Pires: prefiro que você fique por cá, cheira-me que eles estão quase a sair da toca. As informações de que dispunham eram completas, exaustivas. Só lhes faltava saber o dia certo do levantamento. Espiavam intensamente um certo capitão. A 24 de Abril seguiram esse capitão até Cascais, até ao Centro de Instrução de Artilharia de Costa, Registaram que o nosso capitão saiu de Cascais ajoujado ao peso de uma quantidade de rádio-transmissores. E pensaram: é amanhã!

                                                                                               

Na solidão do seu incerto poder, sabendo-se na iminência de ser apeado, em que estaria Marcelo Caetano a pensar? Na morte? Nas condições de um exílio? Nos enxovalhos a que o povo o poderia sujeitar? Nos hipotéticos estratagemas para se manter no poder.

           


O Secretário de Estado do Exército era um coronel chamado Viana de Lemos, que por sua vez era cunhado do coronel comandante do Regimento de Cavalaria 7, ali da Ajuda. Viana de Lemos tinha excelentes relações pessoais com o inspector que sempre me pareceu mais intelectual e civilizado da PIDE, Álvaro Pereira de Carvalho. O inspector alertou o membro do governo, olhe que a situação não está para brincadeiras, ouviu. Foram jantar. Ao Gambrinus.
Claro, segundo o inspector, era absolutamente preciso que se tomassem medidas militares para travar a saída para a rua dos revoltosos. O Secretário de Estado, surpreendentemente, não pareceu muito apoquentado com o caso. Deixe-os vir, amigo, deixe-os sair que o meu cunhado comandante de Cavalaria 7 lhes dará tamanho arraial de porrada que eles nem sabem de que terra são…
É previsível que na madrugada de 24 para 25 de Abril de 74, o ambiente na sede da PIDE na Rua António Maria Cardoso fosse de cortar à faca. Que diabo! A missão daqueles homens era defender o regime se fosse preciso à custa da própria vida. Aqueles homens tinham toda a informação sobre o que se iria passar dentro de umas horas. Aqueles homens não havia meio de receberem instruções para actuar. Aqueles homens tinham ouvido dizer, como todo o cidadão interessado tinha, que quando as coisas dessem uma volta os candeeiros de Lisboa seriam poucos para pendurar os servidores da ditadura fascista. Aqueles homens viviam naquela madrugada a tensão da impotência. É humano, que diabo! Coitados! E para se entreterem e aquecerem as mãos iam queimando papeis…
Entretanto, o inspector nomeado por Spínola já se assenhoreara da situação no interior da PIDE, já começara a dar ordens.
Muitos do homens de serviço na António Maria Cardoso na noite de 24 para 25 de Abril, depois de queimarem os papeis mais secretos e comprometedores, podiam ter optado por fugir. Tinham meios para isso. Aliás, já podiam ter fugido há dias, sabendo eles o que sabiam. Mas não fugiram. Porquê? Porque tinham a sua fézada no general Spínola, no grande cabo de guerra, no militar de cavalaria, no oficial prussiano tradicional de monóculo no olho. Um oficial prussiano de monóculo no olho, bolas!, não mentia. Não só não mentia como dava garantias.


(A propósito, onde estávamos nos dias 24 e 25 de Abril? A fazer o quê? Com quem? A pensar em quê? A pensar o quê de quê?)
Entretanto, nasce o dia. No Terreiro do Paço e na Rua do Arsenal as tropas sublevadas encontram-se frente a frente com os tanques de Cavalaria 7 comandados pelo tal cunhado do Secretário de Estado do Exército, o tal que iria dar aos revoltosos um arraial de porrada que eles nem saberiam de que terra eram.
                                          
                                 
 

Pois bem, quando chegou a hora do arraial de porrada, quando chegou o momento da verdade, o momento de abrir fogo sobre os insurrectos, à ordem de fogo dada pelo comandante, os soldados viraram-lhe as costas, abandonaram-no, desobedeceram-lhe. E desataram aos beijos e aos abraços aos seus camaradas inimigos. A chamada revolução portuguesa iria mais tarde, no Ralis, por exemplo, conhecer outros tocantes momentos de ternura entre militares que todos julgavamos inimigos.
Spínola, o prussiano, o do monóculo, dera garantias. Os homens da PIDE não mexeram uma palha nem para impedir o golpe nem para darem à sola. Caíram que nem uns patinhos nas inércias que a História também tem. Ah não, não se chateiem, rapazes, isto é tudo fogo de vista. O que vai haver são umas alteraçõezitas nas cúpulas do Estado, mas ninguém vos vai incomodar, vocês vão continuar a ser precisos para aplicarem as técnicas da estátua e da tortura do sono e um chapadão ou outro nos mais relapsos, era o que faltava… com os comunistas agora à solta, sim, sim, deixem-se estar…
Nasce soalheira a manhã do dia 25 de Abril.
Por volta das 11 horas, recebe-se um telefonema na PIDE. Um oficial às ordens do Chefe do Estado Maior do Exército pergunta se é possível calar uma estação de rádio que se está a tornar impertinente, o Rádio Clube Português. A PIDE diz que sim, que vai tratar do assunto. E vai. Arranja alguns materiais e prepara-se para arrancar para o Porto Alto e rebentar com os emissores. Mas para rebentar com aquela gigajoga era preciso pelo menos um morteiro. Dirigiram-se ao comandante de fuzileiros. E ele que sim senhor, façam favor, o morteiro está no Arsenal à vossa disposição, rebentem-me depressa com esse estupor desse emissor. 


Isto, como disse, na manhã do próprio dia 25 de Abril.


Os homens da PIDE, devidamente mandatados pelo comandante dos fuzileiros, vão ao Arsenal da Marinha buscar o morteiro. Onde é que está o homem que tem a chave do armeiro?
Então, o homem nunca mais aparece?
E o Rádio Clube Português nas calmas, a transmitir.
Que horas já são isto? Então onde e que pára o homem? Onde é que está a chave?
Isto, mesmo nas revoluções e nas contra-revoluções, os portugueses são assim, sempre atados de pés e mãos por questões ridículas, domésticas, digamos: um homem, uma chave; que é do homem?, que é da chave?, nem homem nem chave, nem o pai morre nem a gente almoça, está-se a fazer tarde e a revolução nem se faz nem deixa de se fazer…
Últimas da revolução: o homem da chave do armeiro onde estava o morteiro desapareceu como o fumo. Vamos lá, então, quem é o fortalhaço valentão que é capaz de arrombar esta porta? Eu! Zástráspás! Bum! Nada. Outra vez. Zástráspás! Bum! Nada. Experimenta tu. É para já. Zástráspás! Bum! Nada. (Depois de 48 anos de fascismo e por força das leis darwinistas da evolução das espécies, ele até é capaz de haver portas anti-fascistas.) Tento eu, tentas tu. Zástráspás! Bum! Nada. Só faltava ouvir-se uma gargalhada de escárneo vinda do outro lado da malfadada porta. Mais tentativas. Nada.
Um homem que desaparece. Uma chave que desaparece com o homem. Uma porta que ninguém consegue deitar abaixo… é disto que se faz a História. Então? Ninguém é capaz de arrombar o raio da porta? Não. Era impossível arrombar a porta. E ali estavam uns quantos façanhudos agentes e inspectores da temível polícia política que fazia suar frio a qualquer cidadão, armados em parvos diante de uma porta fechada, com as horas a passarem-se e com o Rádio Clube a transmitir calmamente palavras de ordem ao povo e mensagens cifradas aos rebeldes.
Cai a noite. O emissor de Porto Alto do Rádio Clube Português não podia ser dinamitado por causa da porta e da chave e do homem. Cai a noite com o Rádio Clube Português do lado dos revoltosos.


Terá sido exactamente assim? Não terá? Quem pode dizer que foi testemunha dos factos?
Cai a noite (caíram várias noites naquele dia) e a emissão da RTP abre com um grupo de circunspectos senhores sentados a uma mesa corrida. Entre eles está o comandante de fuzileiros que prometera um morteiro para dar cabo do emissor do Rádio Clube: o almirante Pinheiro de Azevedo. 


Calcule-se a cara com que ficaram os homens da PIDE ao vê-lo ali refastelado ao lado do prussiano do monóculo em quem eles confiavam. Era aquele era, o almirante dos fuzileiros que horas antes tinha sido tão prestável para cortar o pio aos sublevados indicando-lhes uma porta intransponível, sem homem e sem chave. Cortar o pio aos sublevados, não era? Sublevados que afinal o acabavam de sentar no poleiro.
E eu continuo a cismar. Que papel estive eu também a fazer como cidadão crente e democrata no Largo do Carmo ao fim da tarde chuviscante do dia 25 de Abril de 1974?


As coisas começaram a ficar feias. Houve tiros, houve mortos, quatro, e feridos, na própria António Maria Cardoso, como se sabe – ainda que muitos já o tenham esquecido. Os pides dispararam sobre o ululante povo. E no dia 26, faltava um quarto para dez da manhã, um destacamento de tropas revoltosas entrou na sede da PIDE. Disse-se que lá dentro estariam 400 ou 500 agentes – é facto, ou é lenda? Agentes ou funcionários? Ou telefonistas? Ou motoristas?
Mas antes, os militares revoltosos enviaram ao interior do edifício dois ou três agentes da PIDE que previamente haviam detido. A missão deles era convencer os colegas a entregarem-se incondicionalmente. Demorou coisa de dez minutos. Mas talvez nem se tenha passado nada disto e isto tenha sido apenas uma versão para a História…
Nas imediações do Chiado, por esses dias, foi um fartote de correrias loucas e de perseguições. Qualquer tipo de má catadura era apontado como torcionário da PIDE pelos revolucionários e anti-fascistas, os ches guevaras que de repente apareceram, saídos da Brasileira. Agarravam no tipo mais mal encarado, empurravam-no contra uma parede, punham-no em cuecas, e depois não sei, mandavam vir as Forças Armadas para lhe examinar as cuecas e eventualmente para o prender. Uns seriam pides. Outros não seriam. Uns traziam pistolas Walther disfarçadas nas cuecas. Outros esconderiam nas cuecas outras coisas menos perigosas - ou mais, já não sei. E outros, é verdade, não traziam nada nas cuecas…
                                        
                                 
                                          
Dizia eu então que acabava de assistir à História colhida no momento, ao vivo, idiota chapado que sou. Não assisti a nada. Assisti a correrias. Assisti ao facto histórico de se juntarem centenas ou milhares de populares, eu incluído, no Largo do Carmo. Assisti, quando caía a noite e chovia miudinho, à saída de umas chaimites em que, numa delas, era suposto ir Marcelo Caetano. Foi um facto a saída das chaimites, isso foi. Mas iria mesmo lá dentro o Marcelo Caetano? Não sei. Ou sei. Vim a saber anos mais tarde. Não ia. Marcelo Caetano foi noutra, que passou quando o povaréu debandava, e debandava porque  já tinha apupado a viatura onde lhe disseram que ele ia e ele não ia.
Passados 30 ou 40 anos sobre os factos sei lá o que era verdade, o que foi a verdade. Sei lá se aquele facto era, ou estava para ser, um facto histórico. O que é um facto? Quer dizer, o que é um facto histórico?
Facto histórico foi o cruel, jurássico, despótico e sanguinário regime facista ter sido apanhado de surpresa e tão flagrantemente por uma revolução a que nem reagiu, a que nem teve forças para oferecer resistência?
Facto histórico era já estar tudo combinado ao mais alto nível e há muito tempo, e só faltar quem encenasse os factos para parecerem históricos e neles fizesse o papel de  herói protagonista para a fotografia à la minute da História?
Facto histórico era o pagode reunido no Carmo estar convencido de que estava a fazer História, julgando estar a pressioná-la, a faz­ê-la acontecer?
Facto histórico era Marcelo Caetano estar refugiado no quartel do Carmo à guarda da GNR e os revoltosos quererem à viva força lá entrar, ou fazer de lá sair, à força, o deposto chefe do governo?


Ou facto histórico era os revolucionários que estavam no Carmo saberem perfeitamente que as coisas se estavam a passar e a ser conversadas entre os altos dignitários e as altas chefias militares, com a possibilidade em aberto de a PIDE resgatar Marcelo Caetano pelo elevador de Santa Justa e dar-lhe sumiço, e estarem esses revolucionários a representar o seu papel para o pagode, tal como o pagode repentinamente revolucionário estava a representar o seu enfurecido e impaciente papel para eles, a querer ver com os seus olhos Marcelo Caetano a ser humilhado e derrubado do poder?
É inevitável que os factos da História não sejam a imagem exacta dos mesmos factos tal como eles aconteceram: mudam de figura no pensamento do historiador, moldam-se aos seus interesses, tomam a cor dos seus preconceitos – disse Jean Jacques Rousseau. E é verdade. O povo que se juntou no Carmo queria ser o historiador daquele momento segundo os seus interesses, a queda espectacular de Marcelo e do regime.


Marcelo Caetano quis escrever o seu protagonismo naquele instante da História usando de dilacção, o poder a cair na rua e outras balelas, falando com Spínola, inclusivamente fazendo crer que estava a ser a vítima dos acontecimentos e da violência política.

                                                                  

Spínola também queria escrever a História a seu modo, fazendo depender de uma heróica atitude sua o desenlace da cena que estava montada no Largo do Carmo.
E a PIDE, 30 e muitos anos depois de deixar de existir, através de depoimentos de alguns dos seus agentes, vai querer rever a História de acordo com os interesses da sua imagem corporativa: tudo aconteceu porque a corporação deixou que acontecesse.


Não há factos históricos. 
E esta?
Um outro pensador teorizou que cada historiador obtém o tipo de factos que quiser encontrar. Talvez seja verdade. E se assim for, vejam lá bem o tipo de ralações que a História nos dá.
Outro intelectual, Adam Schaff, propõe que o facto histórico seja um pequeno cubo que conserva sempre a mesma forma, é igual, para todos, e com um maior número desses cubos se podem construir os mosaicos que se quiser. E a forma e o estilo e a cor desses mosaicos dependerá da colocação dos cubos.
Poderemos construir da vida das comunidades a História que quisermos. Tudo dependerá de como colocamos os factos.
Quando os positivistas e os lógicos e os prosaicos falam de factos dão-me vontade de rir. A mim só me interessam os factos; não quero saber de blá-blá nem de conversa fiada, eu quero é factos; apresentem-me factos, não me dêem opiniões… ora, mas e se o facto já for, já contiver em si mesmo uma opinião? Serão os factos tão sólidos como a matéria física, cheia de substância, definida, perfeitinha, de contornos nítidos e indiscutíveis como tijolos?
É complicado e equívoco falar-se em facto histórico. É como falar da liberdade. Ou mesmo de democracia. Ou, em suma, falar seja no que for.
O que dá conta da nossa cabeça e da nossa consciência cheia de opiniões e teorias são os contextos. Alguns dizem que um facto histórico não existe por si mesmo, independentemente dos seus contextos; um facto só seria histórico se construído pela opinião pública. Pois é a opinião pública que neste momento de revisionismo histórico está a ser provocada para consagrar factos diferentes dos consagrados até agora; é a opinião pública que se quer influenciar para alterar a História conhecida, ou operar a recontextualização dos factos a que assistimos, como eu no Largo do Carmo, no dia 25 de Abril, e sendo que, às tantas, passados estes anos todos, já não sei o que lá estive a ver, o que lá estive a fazer ou a ajudar a fazer (já nem sei ao certo se lá estive), e em que espectáculo/contexto fui figurante, e quem eram nesse momento os artistas principais do filme - e de que filme…


Os principais e mais escaldantes ficheiros da PIDE desapareceram. Foram roubados. Por quem? Não interessa. E para quê? Ora para quê, para que os factos constantes desses ficheiros deixem de uma vez por todas de ser factos. E, naturalmente, de ser históricos.

                                                       
Ficheiros outros foram forjados para arranjar o curriculum democrático ou revolucionário a certas individualidades que os não tinham. Ficheiros novos para criar novos factos históricos. Não importa já muito se reais ou irreais. Porque  na crónica histórica começa a germinar a dúvida quanto aos factos. Sim, quanto à própria realidade. 


Delgado foge para o Brasil. 

                                                                                                

Galvão evade-se da embaixada da Argentina onde estava em regime de asilado político. 


Cunhal foge de Peniche. 
                                                                                     
                                                                                                                                                                                                                  
Coisas que acontecem quase em simultâneo. Depois, quer fazer-se crer terá sido do grupo de Argel a responsabilidade da morte de Delgado. E por aí adiante. Alguém está a querer construir factos para outra História, para a pós-pós-modernidade, recontextualizando da História as estórias?
Só ralações para o cidadão honesto e bem intencionado, enfim.
O homem da rua, para acreditar nalguma coisa gostaria de saber o que é aceitável e o que é recusável em cada momento como facto histórico. E dizem-me os teóricos que o mais difícil é escrever a História do imediato vivido, visível, presente, contemporâneo. Quem o fizer há-de estar comprometido com os factos e as fontes do que está a acontecer. Mas as mais fiáveis e bem elaboradas das fontes, e os mais formosos dos factos só mais tarde virão a aparecer. Porque é difícil interpretar o sentido dos factos quando só se têm gestos para apreciar.

                           

4 comentários:

  1. Muito interessante, aliás como sempre.

    A História é uma narrativa que encadeia factos históricos. Mas os factos históricos são elementos compósitos, que incluem os acontecimentos factuais (reais, ou objectivos) mais o somatório quer da sua percepção (subjectiva), quer do seu significado (subjectivo e objectivo), os quais variam ainda de observador para observador (seja ele individual ou colectivo).

    É assim como olhar para a História como se olha para qualquer realidade física: um objecto tem um aspecto visto a um metro de distância, mas tem aspectos muito diferentes quando aproximamos ou afastamos o ponto de vista!

    Essa "distância" de observação, em História, é o Tempo, sendo o "ponto de vista" a mentalidade, o conhecimento, as crenças e os preconceitos do observador.

    Para o comum dos mortais vivos no nosso Portugal urbano e mediatizado do Século XXI, o 25 de Abril é uma data histórica incontornável, mas o mesmo não pode dizer-se (ainda) do 23 de Março (ou do 5 de Junho) de 2011, ou do dia em que Cavaco Silva discursou na sua segunda tomada de posse na A. R. como Presidente da República, ou até do dia de hoje, em que se vota qualquer coisa banal em S. Bento, porque nada disto tem perspectiva histórica.


    É como ver apenas umas nervuras lenhosas quaisquer, acastanhadas e húmidas, antes de subir num balão de ar quente e, voltando a olhar para elas, perceber enfim que se trata afinal do ramo mais alto de um imponente cedro, ou do ramo mais modesto de uma vetusta e retorcida azinheirinha...

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  2. «A propósito, onde estávamos nos dias 24 e 25 de Abril? A fazer o quê? Com quem? A pensar em quê? A pensar o quê de quê?»

    Já que pergunta (e se quer mesmo saber...), no dia 24 de Abril de 74, com 14 anos, fui às aulas ao Liceu, como habitualmente, levando como levava aquilo que para mim era "uma vida normal". Onde não entrava a Política, muito menos a PIDE, ou a iminência de tudo se alterar por completo! Entrava apenas o Marcello Caetano, muito discretamente e pela nossa recém-adquirida televisão, mas na forma amena de "conversas em família", sem cariz político, portanto...

    O único facto relevante que registo na memória, desse dia 24 de Abril de 74, é o entusiasmo com que assisti à meia-final da Taça das Taças, em directo de Magdeburgo (na então desportivamente pujante R. D. A.), com o meu querido "Sporting", que jogou muito bem e quase se qualificou para a Final!...

    Já o dia 25 de Abril foi passado inteiramente em casa, confinado como estava pelas disposições paternais (respeitando aliás o apelo do M. F. A.), mas acompanhado de perto pela Rádio, que me transportou súbitamente para um Mundo fascinante e inteiramente desconhecido para mim: o da Música do Zeca Afonso, do Sérgio Godinho, do Padre Fanhais e do José Mário Branco! Ainda sem pensar nada sobre nada, foi esta Poesia e as melodias que a envolviam, inesquecíveis, que me despertaram, nesse "dia inicial claro e limpo", para tudo aquilo que, a pouco e pouco, o 25 de Abril trouxe à minha vida. Mas que nesse próprio dia não poderia, nem de longe, imaginar...

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  3. Isto não é um comentário, por enquanto não há comentários.
    Isto é só uma manifestação de júbilo, de alegria esfuziante por poder encontrar aqui o Joel Costa.
    Muitas saudades da voz e do tom, na antena 2,... e este precioso texto do 25 de Abril é uma jóia que muito desejei ler para melhor saborear.
    Não temos por aqui a música que acompanhava a palavra, mas quem sabe futuramente... Mas temos a imagem! E que belas as imagens.
    Muitas vezes pensei em escrever-lhe... foi desta!
    Um grande abraço e Bem haja!

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  4. E tudo começou com o Decreto-Lei nº 353/73 que permitia aos oficiais milicianos passarem para o quadro de oficiais depois de curso intensivo de dois semestres!
    Como em todas as revoluções os objectivos são quase sempre ultrapassados com o rápido desenrolar dos acontecimentos e o 25 de Abril não foi excepção; felizmente que aos trabalhões, aos saltos e aos ziguezagues para a esquerda e para a direita a revolução acabou numa inocente democracia que está longe de agradar à esquerda, à direita, ao centro e aos inconformados.
    Mas houve os que ganharam a parada, os militares, isto é, os capitães e os oficiais que alinharam na aventura com excepção de alguns que a história se encarregará de desvendar dos porquês.

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