DESOBEDIÊNCIA
Lembro-me de há anos, já um rôr deles, ao ser questionado sobre o
seu passado de militância num partido da extrema esquerda revolucionária, o
Dr. Durão Barroso, actualmente empregado numa empresa de Bruxelas, replicou aos
jornalistas (e cito de memória) que quem não era revolucionário aos 18 anos
dificilmente seria um bom social-democrata aos 40 – uma resposta que já não era
nenhuma originalidade, posto que copiava um dito do chanceler alemão Willy
Brandt.
Quererá então isso dizer que um
homem nunca será zeloso guardião das
instituições e do normal funcionamento delas se, no devido tempo da sua vida,
não praticou com igual zêlo os seus actos de transgressão e desobediência às
mesmas instituições e à ordem vigente?
Quererá isso dizer que dificilmente
se será um bom e disciplinador pai se não se tiver cultivado enquanto filho
alguma desobediência, alguma contestação à autoridade paterna?
Quererá isso dizer, ainda, que a
experiência do Mal que se encerra numa desobediência pode ser um rito
indispensável de passagem para a condição de defensor dos bons valores?

Mas o exemplo de Felipe II parece
desmentir tudo isto. Felipe II, que não foi dos mais assanhados revolucionários
que a História tivesse conhecido, antes de, em idade adulta, dominar metade do
mundo com mão de fogo, teria sido, por volta dos seus 4 aninhos de idade, um
estafermo de um puto desobediente,
sujeito a vergastadas e a castigos corporais de vária ordem, e mais que
muitos, aplicados com uma barbaridade que punha em alvoroço o coração das
mulheres da corte quando viam açoitar tão desapiedadamente aquela doce
criaturinha – que, pelos vistos, aos 4 anos já devia ser uma boa prenda…
Mas agora, ainda no balanço de um
ano de Wagner, ocupo-me de deuses. Aliás, deuses, semi-deuses e estranhas
criaturas chamadas valquírias, cavaleiras da obediência absoluta às vontades
paternas e divinas – o que era a mesma coisa, pois eram filhas de Wotan, o
deus.
Siegmund pereceu no combate com
Hunding, só porque Wotan, respeitador dos pactos feitos coma mulher, Fricka,
fez despedaçar a espada mágica (Nothung), deixando Siegmund, o eleito do seu
coração, desamado, à mercê do sanguinário Hunding. E na hora de agir em campo
de batalha segundo os ditames do deus seu pai, a posição de Brünhilde era
delicada, para não dizer insustentável. Sabia o quanto representava para Wotan
e para a estirpe dos deuses o ser que a amante e irmã gémea de Siegmund,
Sieglinde, tinha no ventre – Siegfried. E como sabia isso decidiu protegê-la
após a derrota e morte de Siegmund, o pai da criança que haveria de nascer, não
ignorando por certo que iria cair sob a terrível alçada disciplinar do pai.
Brünhilde encaminha Sieglinde para
a floresta densa e perigosa, e que por ser densa e perigosa pode ser o lugar
que oferece melhor protecção. E depois Brünhilde corre o campo de batalha a
recolher os pedaços dispersos da espada mágica. Mete-os no bornal de Sieglinde
e anuncia-lhe que aquele filho que ela traz no ventre terá de nascer dê lá por
onde der, e ainda que nas condições mais adversas. Anuncia ainda a Sieglinde
que aquela espada agora destroçada haverá de ser reconstituída, e que com ela o
filho que Sieglinde dará à luz, e que se chamará Siegfried, virá a ser o herói independente
que Wotan sonhava para continuar a obra dos deuses. Sieglinde exprime a sua
gratidão à valquíria e interna-se na floresta.
Mas a soberana e sublime vontade de
Wotan havia sido miseravelmente dobrada por sua esposa, Fricka. Visto isso,
Wotan nunca poderá perdoar a Brünhilde a desobediência. Wotan não perdoará Brünhilde
o ter querido ajudar Siegmund contra Hunding, o ter arranjado maneira de
proteger e encaminhar Sieglinde grávida pela floresta, ter-lhe metido no farnel
os pedaços da espada. Mas onde e que já chegámos? Wotan, o deus dos deuses,
quer ajustar contas com aquela filha tão predilecta e tão desobediente, e
então, iracundo, corre as montanhas bradando o nome da filha, até aparecer no
lugar onde estão reunidas as valquírias, as irmãs, que procuram esconder a
foragida da raiva do deus dos deuses.
- Onde é que está essa atrevida? –
grita Wotan- - E vocês… ousam escondê-la de mim? Tende tento, insolentes, e
afastai-vos da que foi rejeitada para sempre, tal como ela rejeitou a sua
honra.
Digamos então que Brünhilde, no
mesmo acto, obedeceu e desobedeceu simultaneamente. Desobedeceu à razão de
Estado que impunha ao pai, Wotan, a morte daquele que até então, e
desveladamente, tinha protegido, Siegmund. Desobedeceu á razão de Estado que
obrigava à morte daquela, Sieglinde, que trazia nas entranhas o frutos dos
amores incestuosos, fruto que uma vez nascido, e quando já espigadote, seria o
único com condições de salvar da perdição a estirpe dos deuses.
Mas Brünhilde também no mesmo gesto
obedeceu. Obedeceu à razão humana e à mais íntima das vontades do pai, que era
a de salvar Siegmund e Sieglinde, uma vontade que a guardiã da decência, dos
bons costumes e da moral conjugal, Fricka, a mulher dele, conseguira anular.
O capricho e a instabilidade de
pareceres e de vontades pode ser atributo dos deuses, assim como, não sei,
alguma irracionalidade. Um capricho ou
uma irracionalidade capazes de acometer de vez em quando quem tenha nas mãos o
mando, um mando qualquer, a vontade absoluta, o poder absoluto sobre alguém.
Já em novo, para assegurar a posse
de Fricka como esposa, Wotan fora obrigado a privar-se acidentalmente de um
olho. E há quem interprete esse simples detalhe como significativo de uma
quebra de lucidez por parte do deus dos deuses, uma limitação da capacidade de
apreender o mundo que criara, o dos outros e o seu, uma limitação, enfim, da sua
capacidade e da sua vontade de poder.
- Foi ela que nos procurou –
justificam-se as valquírias.- Foi ela que buscou a nossa protecção. Pai, acalma
a tua ira. Ouve as razões dela.
Wotan considera-as no fim de contas
umas cobardolas, ao vê-las condoídas pela sorte da irmã.
- E eduquei-vos eu na bravura e no
combate. E dei-vos eu corações duros e impiedosos! Nunca esperei que se pusessem a choramingar quando na minha justa cólera decido castigar uma
infiel.
E o deus dá-se a maçada de explicar
às suas filhas guerreiras o sentido da malfeitoria de Brünhilde:
- Ela conhecia como ninguém os meus
desejos mais profundos. Conhecia a própria nascente da minha vontade. O meu
desejo era nela que se encarnava. Mas ela rompeu a nossa aliança sagrada.
Rebelou-se contra a minha vontade. Escarneceu das minhas leis soberanas.
Voltou contra mim a arma que lhe confiei…
Não me digam que na desobediência
familiar não está integrado um forte sentido de sacrilégio, quando os actos
fundamentais da vida de família, nascimento, casamento (fidelidade ou
adultério), morte, comportaram em todos os tempos, e ainda hoje, um carácter
social e ritual; e quando os laços estabelecidos e os estados que desses laços
decorrem determinam uma consagração a poderes superiores. É aí que toda a
desobediência no quadro da família representa um atentado contra esses poderes
superiores.
A organização social tradicional
alguma coisa repousou em dois vértices importantes: um, o parentesco; e outro,
os grupos de idade. Estabeleciam-se direitos, deveres, obrigações; normas
definidas, prescrições estreitas. Era bom acalentar dentro da família certos
sentimentos relativamente a certas personalidades integrantes do grupo. Por
assim dizer, uma normativização dos sentimentos que levasse ao respeito e à
deferência mais por uns do que por outros. E era preciso ajudar mais uns do que
outros, os de mais idade, ou os de superior posição social. A obediência é um
patamar cimeiro da boa ordem natural da família.
E Brünhilde
aparece.
- Aqui estou, pai.
Qual é o teu castigo?
Não. Wotan adianta
que nem será ele a punir a desobediente. Será ela a autora do seu próprio
castigo.
- Não existirias se
não fosse essa a minha vontade. E tu ergueste-te contra a minha vontade.
Brünhilde
alega: tinha-se limitado a executar as
ordens que recebera do pai; até ao dia
em que, movida por sentimentos ainda não arregimentados a vontades estanhas,
dera a si própria uma ordem que contrariava as prescrições paternas.
- Eras a minha
filha segundo o meu coração, e ergueste o teu coração contra mim…
Não me digam que desobedecer não é infringir
as altas vozes das instituições, dos poderes, os estatais, os familiares. Não
me digam que desobedecer não é muitas das vezes subalternizar, e desafiar, o apelo da tradição e da estirpe, e das
normas, e até do que se chama honra.
E quantas vezes desobedecer não é
também obedecer?
Obedecer a uma outra voz, muito
íntima, sibilina, a voz que nos chama ao cumprimento da nossa soberania
pessoal.
Por vezes cedo demais, é certo, e
destemperadamente, segundo a vontade e o parecer dos mais velhos, pelo menos,
dos outros, do mundo.
- Confiei-te o cuidado de decidires
a sorte dos combates, e tu decidiste um combate contra mim. Encarreguei-te de
encorajar os heróis, e tu agitaste um herói contra mim. O que tu eras outrora
disse-to eu mesmo. O que passarás a ser a partir de hoje serás tu a dizê-lo.
Mas por certo não serás mais o que ainda és agora. Não, não serás mais a
enviada de Wotan. Não mais levarás os vencidos ao meu palácio. No íntimo
banquete dos deuses não mais serás tu a estender-me afectuosamente a taça. Não,
não receberás mais de mim o beijo paternal. Foste expulsa do exército celeste.
Foste excluída da raça dos imortais. A nossa aliança quebrou-se…
Ser revolucionário é querer a
perdição das instituições aos 18 para ser um bom governante aos 40. Revolução é
para as almas novas. Governação é caso para cabeças avisadas.
Mas não será verdade que em todos
os tempos a vida humana se fundou sobre
a proibição? E não será verdade que a proibição é o que acrescenta aquele
sentido embriagante de liberdade que enche a boca a tribunos, a legisladores, a
panfletistas, a políticos?
Sim, a políticos, depois de
chegados aos 40, e depois de saberem por experiência o que significa a danação
dos 18.
Será por isso que as ditaduras
tenham sido bons alfobres de democratas do mais alto coturno (os que lhe
estiveram contra, claro), e o todo-poderoso e inflexível e infalível Estado
tenha sido então uma escola de libertários…
E se a vida humana assenta muito
numa cadeia de proibições, então é porque assenta também numa grande e naturalíssima vontade de
transgressão. E então a transgressão passa a ser o grande meio de salvação do
Homem, porque a capacidade de transgredir um destino formatado e inelutável
é que preside à transformação do primata
num homem…
Wotan decreta a expulsão de
Brünhilde do número das valquírias. A virginal flor que era seu atavio
fanar-se-á como por encanto. Um homem, um vulgar esposo, obterá dela os favores
de mulher, e a esse esposo ela passara ingloriamente a obedecer como a um
senhor, sentada diante da lareira a fiar a roca, a fazer os trabalhinhos
domésticos – a ver a novela, a lavar a loiça, a preparar o lanche para os
miúdos levarem para a escola – a sujeitar-se às zombarias que os homens usam
fazer abater sobre a condição feminina. As outras valquírias que fujam dela,
que desapareçam depressa daqueles lugares.
- Mas, pai, será tão desgraçada e vergonhosa a minha
culpa para ser punida desse modo também tão vergonhoso?
- Ordenei-te que combatesses por
Siegmund…
- Pois foi…
- Mas depois não voltei atrás com a
ordem?
- Porque Fricka te influenciou! Só
por isso… só por isso, tu, pai, te tornaste inimigo de ti mesmo.
(Atenção: Fricka não era mãe de
Brünhilde; e assim se percebe que a valquíria meta veneno ao pai contra a
madrasta.)
- Não me compreendeste então. Foi o
desafio que me fizeste que castiguei. Porque me julgaste cobarde e estúpido e
incapaz de vingar a tua traição…
- Oh, pai, eu sabia que tu amavas
Siegmund, sabia o conflito que te minava o coração. O teu coração estava
dividido, amargamente dividido. Partilhar com Siegmund a vitória ou a morte: só
essa seria uma atitude digna de mim.
- Sabias tudo isso… e continuaste a
protegê-lo…
Quando, na proximidade da hora do
combate, Brünhilde falara com Siegmund e lhe anunciara a morte como vontade
suprema de Wotan, exactamente quando ele mais contava com a protecção divina, a
valquíria sentira vergonha pela vontade tão caprichosa de seu pai. Nesse
momento, Brünhilde deixara-se tocar por uma infinita compaixão, perante a
angústia e a confusa perplexidade do rapaz. O coração dela bateu então muito
forte, a sua visceral humanidade varreu-lhe da cabeça os deveres de obediência
cega, institucional.
Não sei se Brünhilde teria 18 anos.
Era capaz de não andar muito longe disso. Era ainda muito jovem, de qualquer
das maneiras. Ainda tinha a mania de acordar todas as manhãs muito cedo lá no
Walhalla, a residência dos deuses, e desatar aos gritos de guerra pelos
corredores, muito bem disposta. Jovem e generosa, Brünhilde seguira a voz da
sua compaixão. Esquecera os deveres de Estado.
Wotan ouve-lhe as humaníssimas
razões e vai aplacando a própria ira.
O conflito pessoal de Brünhilde,
ditado talvez pela sua juventude, situava-se nos limites da humanidade presente
na consciência da que fora treinada (uma SS?) para a inflexibilidade e para a
obediência. Pisara por isso o risco vermelho da insubmissão. Forçara as
fronteiras impiedosas e definidas pelas palavras sagradas do pai, a
instituição.
Brünhilde metera-se a interpretar
em actos a subjectividade sagrada do pensamento do pai quando este lhe ordenara
a morte do ser que ele próprio amava. Interpretando a subjectividade, Brünhilde
cumpre nesse acto uma objectividade. Tem de assumir por inteiro a objectividade
desse acto. E também por isso Brünhilde desobedece e obedece: obedece
objectivamente à sua soberania pessoal; desobedece às regras imprecisas do subjectivo.
Entra portanto em choque com a manifestação máxima do sagrado: a sua
subjectividade.
- Comprazias-te nas doçuras da pura
felicidade e vazavas a taça do amor, enquanto eu me mortificava na minha divina
angústia.
Wotan já não era criança nenhuma;
já estava um deus maduro. Mas mesmo quando se arma em durão lá bem no fundo não
pode deixar de compreender as razões da filha. O que faz é reflectir sobre a
sua própria impotência perante o contrato leonino que Fricka, a mulher, lhe
impusera. A Wotan só lhe apetece desaparecer entre as ruínas do universo que
criara.
- Não compreendes, pai, que só tive
como lema de vida amar aquilo que tu
amavas? Ouve, pai, não podes deixar cair na desonra aquela que eternamente é
parte de ti mesmo. Não podes desprezar a metade de ti próprio. Um deus não
esquece…
- Sucumbiste aos poderes do amor,
foi o que foi. Deixaste-te conduzir por um espírito leviano. Desligaste-te de
mim. E também eu me devo afastar de ti. Já não tenho o direito de partilhar
contigo os meus mais secretos desígnios.

- Se preferiste o amor, então
sujeita-te áquele que te encontrar e ao qual terás de amar…
- Pai, tu deste orígem a uma nobre
estirpe. O mais valente dos heróis, sim, esse perpetuará a linhagem dos Wälse.
- Já não quero saber da linhagem
dos Wälse. Assim como me separei de ti também dela me afastei. A inveja acabará
por dar cabo dela…
- Mas pai, Sieglinde erra na
floresta. Tem no ventre o sagrado fruto da tua raça de deuses…
- Não procures mais junto de
mim protecção para essa mulher nem para
o fruto daquele amor incestuoso.
- É essa mulher que tem os restos
da espada encantada que ofereceste a Siegmund!
- Sim, mas que depois despedacei
com a minha lança!
Em presença daquela inflexível
vontade de pai e de deus, e na perspectiva da desonra que seria para uma
valquíria ficar magicamente adormecida à disposição do primeiro que passasse,
Brünhilde abraça-se aos joelhos de Wotan e implora-lhe uma última mercê.
- Prefiro, pai, que me destruas.
Prefiro morrer na ponta da tua lança do que sofrer o castigo que me destinaste
– pelo rosto da valquíria perpassa um fulgor de inspiração heróica. - Manda ao menos que um fogo alteroso se ateie
em redor da montanha. E que esse fogo consuma o cobarde temerário que tenha o
arrojo de se aproximar.
Ouvindo isto, uma funda comoção
assalta o deus dos deuses ao olhar a filha ajoelhada a seus pés.
- Adeus, soberba e
valente criança. Adeus. Se me vejo forçado a abandonar-te, se nunca mais
poderás cavalgar a meu lado, se nem no banquete dos deuses poderei voltar a
receber de ti a taça do hidromel… então que a chama de um fogo nupcial te
envolva como nenhum outro se acendeu para uma noiva… e que todo o cobarde fuja
do rochedo de Brünhilde, e que a noiva seja liberta por um ser mais livre do que
eu próprio, o deus…
Estava mesmo a
dizer: esse ser seria Siegfried.
Já se sabe que o
mais certo é o princípio da desobediência afirmar-se como um dos mais poderosos
e inconcebíveis motores da História, e será a perspectiva de uma desobediência
o fantasma mais temido de todo o poder, de toda a autoridade. E para que
precisávamos nós de autoridade se a desobediência não fosse um estado puro e
natural da condição humana?
Wotan continua a
despedir-se da filha:
- Esses olhos
brilhantes, que tantas vezes, sorrindo, eu beijei quando o estrondo da batalha te
valeu um beijo… quando, com voz de criança, os teus lábios pronunciavam o
louvor dos heróis… esses olhos que tantas vezes na tempestade brilharam para
mim… esses olhos… oh, que seja hoje a última vez que o meu coração com eles se
regozije…
E com um último
beijo, Wotan retira de Brünhilde a essência divina.
Wotan enfrentara
uma desobediência mais perigosa do que a simples rebeldia filial, uma
desobediência que lhe vinha de quem não era seu inimigo jurado, de quem não era
seu adversário declarado e natural. Wotan confrontara-se com a insubmissão de
alguém cujo sentido da vida e a consequente lógica de sopro divino residiam
exactamente na obediência ao deus e ao pai; alguém, aliás, cuja vida, ou cuja
essência divina não tinha qualquer sentido fora da obediência.
Uma língua de fogo
cresce nas silvas, aumenta, aumenta…
Com a lança, Wotan
desenha no espaço o círculo de fogo que haverá de rodear o sono de Brünhilde.
Em breve aquele lugar se tornará infrequentável para um simples mortal.
Depois, Wotan,
magnífico, cabelos iluminados pela labareda, exibe os restos do seu poder,
proclamando em terrível voz:
- Que aquele que temer a minha lança jamais possa
franquear este círculo de fogo!
O acto de
insubmissão de Brünhilde à vontade do pai foi a marca de uma razão natural a
perturbar o curso do determinismo e do arbítrio dos poderosos deuses. Foi a
liberdade de um gesto humano a transgredir os descricionários códigos do
poderio. O crepúsculo dos deuses avizinhava-se. Nem o salvamento do herói
Siegfried poderia evitá-lo.

Mas quando soar a
última nota da última das óperas da tetralogia, o Crepúsculo dos Deuses, justamente, é como se Wagner, a alma gémea
de Wotan, o demiurgo, o mistagogo, tivesse deixado em aberto a escrita do resto
da História da Humanidade.


(Só foi pena eu, ao
falar de deuses, semi-deuses, demiurgos, ter apontado logo no princípio para a
medíocre figura de D. Barroso. Poderia ter encontrado melhor do que um
acinzentado funcionário, do que um burocrata obediente e carreirista.)
Nas teias complexas e confusas dos significados das profundezas mais perenes e inacessíveis da alma humana e do coração das sociedades de humanos, eu vivi com quinze anos os tempos em que D. Barroso supostamente exerceu a sua rebeldia dos dezoito, desconfio muito fundadamente desse sua rebeldia e até da sua crença intrínseca nessa atitude juvenil.
ResponderEliminarQuem viveu o "verão quente" de 75, mais tarde sarcásticamente rebaptizado, pela narrativa social dominante - retornado-revanchista -, por "PREC", sabe muito bem que o espalhafatoso e serôdio "esquerdismo" maoísta desses tempos, muito mais de que relevar de uma atitude de contestação face à Sociedade capitalista em que se manifestava, traduzia uma indisfarçãvel postura de demarcação face ao anti-fascismo dominante, como uma espécie de caução para se poder ser visceralmente anti-comunista sem se correr o risco de se ser conotado com a "reacção" e o Fascismo.
D. Barroso, como tantos outros jovens universitários elitistas e de origem social abastada e privilegiada, mais do que revoltados com a Sociedade capitalista em que viviam, estavam era enraivecidos com o sucesso do 25 de Abril, com o que isso representava de incómodo para a geração dos seus papás e de "empecilho" ao prosseguimento triunfal das suas boas vidas e perspectivas de carreira, que já anteviam viçosas para além dos arroubos temporalmente limitados das suas crises de crescimento intelectual e físico.
O MRPP e outras invenções da juventude snob e imatura que então sorvia pelas Universidades os restos ressequidos das verdadeiras lutas estudantis e anti-fascistas dos anos 60 e inícios de 70, constituiram o refúgio das consciências - e por vezes também dos coiros - perante o consumar da emancipação política dos jovens operários e camponeses, suburbanos e provincianos, face às prerrogativas e às aspirações da média e alta burguesia urbana, súbitamente postas em causa por essa realíssima maçada do 25 de Abril, da Democracia, da Igualdade e da Socialização dos meios de produção.
Uma seca, pá!
Por isso dizer que D. Barroso foi "revolucionário" aos dezoito anos é tão rigoroso e significativo, como dizer que Hitler e Mussolini começaram por ser "socialistas".
Mas a História é como as marés: enquanto não se percebe se estão a encher ou a vazar, é o ponto em que a onda alcança que separa o que é água, do que é terra. Marca efémera, contudo, e que o passar do Tempo reduzirá à sua merecida insignificância...
Aliás, basta ver o percurso dos principais "maoístas" desse longínquo verão quente de 75 - e onde hoje quase todos se encontram... -, para perceber o "logro" em que labora a narrativa social dominante sobre o significado desses tempos, numa fase da História recente de Portugal cada vez mais desconhecida e (mal) mitificada pelo imaginário popular e o subconsciente colectivo nacional.
Daqui por uns cinquenta anos, talvez a maré da História fixe, finalmente, as balizas verdadeiras do que foi, realmente, o 25 de Abril, a Libertação, a Democratização, a Descolonização e o Progresso, oh, o "progresso", deste ex-jardinzinho à beira-mar prantado.