A
PROVIDÊNCIA
França. Primavera de 1945. A prioridade nacional,
política e financeira é, obviamente, a reconstrução. E não é brincadeira
nenhuma. Trata-se de reedificar a quase totalidade do equipamento urbano de um
grande país.
Havia ainda que reerguer pontes, 10.000 pontes
estradais e fluviais; e túneis, e viadutos, e passagens ferroviárias. E por
falar nisso, havia 20.000
quilómetros de vias férreas para repôr e um sem número
de estações para reparar. Não falando em toda a rede viária. E não esquecer dos
500.000 hectares de solo francês ainda minados.
Aos 5 milhões de sem abrigo de qualidade nenhuma
havia que somar o número incalculável dos mal abrigados, problema francês da
habitação que já transitava do período de entre-guerras.
Um estado nacional de emergência seria
declarado. Requeria-se a organização e o pleno funcionamento tão cedo quanto o
pudesse ser de um Estado que coagisse os seus cidadãos não sinistrados, e
usufruindo em pleno de habitação, a acolher pelo menos uma família sem abrigo.
Uma directiva, que, como seria de esperar, nem sempre foi bem aceite.
Recenseado o parque nacional dos alojamentos
disponíveis, o Estado encorajou a ocupação legal das habitações devolutas e
regularizou as ocupações ilícitas entretanto feitas. Por lei, autorizou-se a
requisição das habitações fechadas para acolher os sem abrigo.
Preparavam-se para nascer as cidades dormitório
nos arredores das grandes metrópoles.
Em Março de 45 um primeiro orçamento cativa 7
milhares de milhões de francos para a reconstrução do país. Uma fatia dos 217
milhares de milhões orçamentados para a despesa pública.
Em Junho de 45 procede-se à troca de notas de
banco. Pretende-se uma avaliação das fortunas de cada um. Define-se o castigo
dos açambarcadores e estabelecem-se as taxas a cobrar sobre os capitais.
Outro ponto nevrálgico das mudanças morais, ou,
por assim dizer, políticas, acontecidas, ou mais intensamente desenvolvidas em
1945, tem directamente a ver com este tema. É a concepção – e activação - do
chamado Estado providência.
Os economistas, e outros analistas, deitavam as
culpas da crise dos anos 30 e do subsequente estado de guerra para cima do
liberalismo económico. O falhanço do sistema liberal teria arranjado aquele
bonito serviço do qual se acabava de sair e pelos tempos mais próximos ninguém
quereria ouvir falar de soluções liberais para a economia nacional. Antes
da II Guerra, pelo que disse H.G. Wells,
só alguns espíritos de excepção admitiam a possibilidade de uma ordem
generalizada e feliz. Depois de II Guerra essa possibilidade viria a tornar-se
uma grande esperança.
A II Guerra teve a virtude de demonstrar ao
mundo a necessidade de um novo reordenamento na vida. Nunca antes tal havia
sido concebido. Nem pelos defensores de Estado mundial.
O Estado. O período do imediato pós-guerra é
caracterizado por profundas reformas sociais. Tinha que ser. O welfare state britânico traduzido para o
francês como l’État providence. E pode
dizer-se que a criação - ou o desenvolvimento maximalizado - da segurança
social é a primeira grande conquista da libertação.
O Estado passava a intervir directa e fortemente
na política económica, e por extensão nas políticas sociais. Desde 44 que na
Inglaterra, na França, na Bélgica, vêm a ser organizados os sistemas de
segurança social, tão malsinados nas circunstâncias sócio-económicas de hoje –
em que, no caso português, estamos e estaremos por muito tempo ainda a viver
uma situação social como que decorrente de uma verdadeira guerra, em que só
faltaram os bombardeamentos, mas que, invisíveis se vistas do ar mas bastante
reais se vistas de terra, deixará as suas ruínas.
E em França e na Bélgica, de par com uma série
de outras reformas, incluindo as da segurança social, vêm as nacionalizações. A
concentração dos investimentos nos sectores mais rentáveis que marcara
economicamente os anos 30 teria levado a uma sobreprodução geradora de
desemprego, subalternizando as necessidades mais elementares. Da América viria
a tentativa de antídoto para esse mal generalizado. O New Deal , de Roosevelt, a favor de uma maior intervenção
governamental na economia. O mundo esperava os resultados concretos desse
dirigismo económico. Esperava da intervenção estatal aquilo que a economia
liberalmente orientada não teria conseguido dar-lhe.
Para aquele desiderato, como seria de esperar,
concorreu a crescente influência da esquerda nas políticas nacionais. A
planificação económica tivera os seus sucessos pouco antes da guerra tanto na
França como na Bélgica como na Inglaterra. E de tal forma que os próprios
sectores conservadores basicamente concordavam na necessidade de agir
economicamente segundo novos parâmetros, segundo nova moral. E se isso
acontecia já pouco antes da guerra, reforçaram-se as convicções no imediato
pós-guerra, e em todos os domínios.
Aprovisionamento de matérias primas importadas,
distribuições de mão-de-obra e de produtos de primeira necessidade, e
assistência geral, eram algumas das áreas onde a participação pública, mais do
que esperada, seria decisiva.
Em França, acabada a guerra, sai o Estado à liça
a fixar preços e salários e a gerir os racionamentos. Tudo isso com vista a
evitar os mortos pela fome em significativos sectores da população. Além de
outras eventuais virtudes e tarefas, cabia ao Estado velar pelas igualdades no
sacrifício nacional.
No verão de 45 o sentimento dominante para
muitos milhares de cidadãos europeus era o da esperança na possibilidade de um
mundo melhor e mais justo – e quando é isto que se espera, inevitável se torna
pensar na entidade Estado; e quando noutras situações e contextos se pensa que
o mundo é assim porque é, e os homens são assim porque sim, porque são, e nem
vale a pena torná-los melhores e mais justos, e não se pensa no Estado, e só se
têm olhos para a iniciativa privada. Em 45, o homem comum sentia muito
dolorosamente a necessidade de protecção contra as previsíveis incógnitas de
uma vida que por demasiados anos fora vivida precisamente na incógnita e ao
sabor dos acasos bélicos do dia seguinte.
Esperança num mundo que reconhecesse e
preservasse a dignidade de produtor para o cidadão normal e se traduzisse em
renovadas práticas sociais protectoras. Esse estado de espírito esperançoso
vinha dos anos de guerra, evidentemente. E fora esse estado de esperança (num
mundo mais justo e num homem melhor e mais solidário) a incentivar as
capacidades de sacrifício e de intenso trabalho, e ao mesmo tempo a dar coragem
para suportar toda a sorte de restrições, e de reveses.
A ocupação levara a efeito a desindustrialização
da França, segundo as concepções e os planos hitlerianos para a Europa. Ao
passo que na Grã Bretanha,directamente empenhada nas operações militares, se
assistira a uma poderosa mobilização industrial, sempre fomentada pela máquina
de propaganda, que punha, por exemplo, a BBC a transmitir nas horas e nos
locais de trabalho, e experimentando novos métodos de gestão laboral em que se
associavam estreita e directamente à produção os comités de operários.
Em França, e sob a escravizante tirania nazi, a
gestão laboral nos anos de ocupação era obviamente concebida segundo regras de
violento autoritarismo e exploração máxima, com rebeliões de operários por aqui
e por ali. No plano político, a participação dos trabalhadores seria
prejudicada pelas características violentamente ditatoriais da situação e pelos
ditames do subserviente governo de Vichy. O debate público dos problemas era
impossível. A política era um espaço de divisões e a Resistência resguardara a
sua mais efectiva acção no mundo do trabalho para um pós-guerra e para um tempo
de libertação que chegariam não se sabia quando, mas seguramente chegariam.
Em Inglaterra, pelo contrário, o debate público
fora intensa e politicamente enquadrado durante todo o tempo de guerra. Os
trabalhistas elaboraram planos económicos e laborais e debateram-nos no
Parlamento - a despeito da recusa de Churchill em aplicar esses programas. Ele,
Churchill, e o partido dele, viriam a pagar essa atitude nas eleições que se
seguiriam à guerra. É verdade. Se Churchill ganhara brilhantemente a dificílima
guerra, perderia a paz, perderia as eleições, e talvez pela negligência
demonstrada no plano interno, e quanto aos problemas laborais concretos.
O Estado providência e respectivas reformas foi
amplamente discutido na Inglaterra. O programa dos trabalhistas compreendia
inevitáveis nacionalizações, o carvão, o gás, a electricidade, os transportes,
as siderurgias e o Banco de Inglaterra. Em França, os planos similares em apreço
previam o regresso à nação dos grandes meios de produção entretanto
monopolizados, fontes energéticas, recursos mineiros, seguros e banca.
Concomitantemente, lançava-se um plano alargado de segurança social. Mas eram projectos
que o grande público mal conhecia, que requeriam tempo. Tudo passaria a
depender da evolução política.
Uma nova moral económica em paralelo com uma
nova moral política, reclamara-se na Europa de 1945…
Ou uma
moral que era nova e exaltante nessa época e que hoje nos soa a velho e
bafiento e imprestável.
Em boa parte, tudo depende de uma questão de
propaganda. A moral pública não passa sem uma propaganda de conveniência e
também, até nisso, como a História, é subsidiária do factor tempo.
Perante o quadro social de 1945 não é de
estranhar que os problemas em França, antes da economia, passassem por
circunstancialismos de tipo político-social extremamente ingratos. Punha-se por
exemplo em causa o poder dentro da empresa, que logo se ligava com a questão
das depurações. Muitos administradores eram afastados e presos por colaboração
com o ocupante. A guerra criara ressentimentos inultrapassáveis no tecido
laboral e isso repercutia-se na produção. Já se confundiam os inimigos de classe;
já se misturavam os directores incompetentes com os traidores à pátria. Ninguém
estava disposto a trabalhar muito sob as ordens de uns e de outros. E pouco
antes do fim da guerra, nas zonas de maior influência da Resistência, eram
nomeados administradores provisórios, rodeados por militantes sindicais da
federação CGT, incluindo-se neles alguns homens da própria Resistência. Em
Marselha eram requisitadas empresas inteiras. E depois em Lyon, em Béziers, em
Toulouse.
Na Renault a situação era muito confusa depois
da prisão de Louis Renault por colaboracionismo, e não se verificavam muitas
discordâncias quanto à necessidade de nacionalizar sectores chave da economia.
E elas, as nacionalizações, arrancaram logo a seguir à libertação. Arrancaram
em 45 e duraram sem contestações de maior até aos anos 80. E duraram porque sem
dúvida alguma coisa corresponderam aos anseios nacionais através das diferentes
conjunturas políticas. E em consonância com a vaga de nacionalizações vem a
urgência de uma planificação económica. Há um comissariado geral do Plano
criado em Dezembro de 45.
E todavia, e muito ao contrário do que se possa
pensar, não era socialismo. Não era o
socialismo. Era um pragmatismo capitalista, vamos lá. Um plano que se
restringia a sectores prioritários da intervenção do Estado. A ideia estava
longe de ser a instauração de um qualquer embrião de socialismo. E ia até mais
longe. Ou mais perto, não sei. O que sei, ou julgo saber, é que ia no imperioso
sentido de equipar devidamente e devidamente modernizar um país em ruínas.
As nacionalizações e a planificação podiam até
ser consideradas por alguns especialistas o pontapé de saída para uma renovação
do capitalismo francês, dado que visavam os tais sectores que esperavam
investimentos tão consideráveis que estariam fora do alcance de quaisquer
privados.
Fazendo operar uma parte do capital produtivo à
margem das regras do lucro, as nacionalizações planeadas resultariam no aumento
das taxas de lucro de muitos outros sectores. E desde logo se pensa nos custos
da energia, cujo controle e redução beneficiariam a operacionalidade de
milhares de empresas.
Não foi o socialismo, de facto, o que foi posto
em marcha na França libertada de 1945. O objectivo foi a instauração de um
capitalismo moderno e dinâmico, e moderno e dinâmico porque temperado por
largas políticas sociais. Uma nova moral do trabalho e do dinheiro. Uma nova
moral que está nos nossos dias a ser ridicularizada quando se confronta com a
propaganda dos valores que presidiram às economias liberalíssimas do tempo de
entre-guerras. E que deu no que deu.
Quanto a segurança social, é preciso dizer que a
França não partia do zero. É verdade. Desde 1930 que os franceses dispunham de
um sistema de seguros sociais que cobriam a doença, os acidentes de trabalho e
a velhice.
E o engraçado é que, apesar de tantas
transformações, o sistema de segurança
social francês de 1930, sempre em progresso e atravessando toda a sorte de
vicissitudes, só viria a produzir todos os seus efeitos em 1960.
De acordo com o plano de capitalizações
adoptado, 30 anos de contributos eram necessários para o funcionamento pleno do
sistema de 1930.
Mas os riscos de desemprego não estavam cobertos
por esse plano.
O ponto de partida moral para as esperanças
francesas quanto a segurança social eram na época, e em boa parte, inspirados
por Inglaterra. O fundamento moral da segurança social era a garantia oferecida
a cada um de que em todas as circunstâncias da vida ele e a família poderiam
dispor dos meios indispensáveis à subsistência em condições decentes.
O escopo final do plano passava pela cobertura
do conjunto da população contra os factores de insegurança. Mais um quesito
moral novo em 45 e desusado ou negligenciado hoje em dia na risonha segurança
da insegurança na tendencial americanização do mundo do trabalho, aumentado
pelas consequências do estado de guerra imposto às nossas finanças públicas.
A criação de uma organização protectora do
cidadão a nível nacional constituiria um dever da comunidade em face do seu
direito de cidadania. Outra base moral. Ou, a bem dizer, política, o que pode
ir dar no mesmo. Depois, seriam os desenvolvimentos e os aperfeiçoamentos
posteriores, mais ou menos vagarosos, mas sempre com a firme consciência de que
o que quer que se fizesse neste campo estaria sempre incompleto e seria sempre
possível de melhoramento.
Além de tudo o mais, naqueles anos duríssimos do
pós-guerra o plano de segurança social nacional tentaria sanar as tensões
vivíssimas que a modernização provocaria, procurando manter a coesão social no
quadro de vertiginosas transformações de toda a ordem e em função do objectivo
crucial e muito problemático que era o pleno emprego.
70% dos franceses esteve de acordo com a
nacionalização da banca. 65% queria o mesmo para os seguros e 62% para a
extracção mineira. A Air France é nacionalizada.
A 22 de Fevereiro de 45 são oficialmente
instituídos os comités de empresa para as empresas com mais de 100
assalariados.
Segurança social obrigatória para todos os
assalariados franceses em Outubro de 45.
E, já próximo do fim desse ano electrizante de 1945, a França nacionaliza
a maior parte dos seus bancos. Cria-se um comissariado geral para a
planificação da economia.
Entre as coordenadas da nova moral que
despontava em 1945 entrava uma outra e nada desprezível ordenança: o aumento da
população mundial, ou o chamado baby boom.
Os oriundos desse baby boom, hoje respeitáveis senhoras e senhores a iniciar a sua
carreira de decrépitos anciãos inúteis – e ao número dos quais eu pertenço -,
foram os beneficiários tanto dos progressos como das contradições que se
seguiram na vida ao ano de 1945.
E seriam esses babyboomers, nos anos 60, a contestar a vida e as instituições
herdeiras do pós-guerra e do tempo do seu nascimento; e seriam eles a
reformular tecnológica, política e moralmente o mundo e a criar, no tempo da
sua mais matura vivência, uma outra e nova idade com outros princípios, nem
todos extraordinariamente recomendáveis, a meu ver. Viria a ser o mundo novo
dos anos 70 e 80. (Na minha insignificante opinião, e de uma maneira geral,
podemos limpar as mãos à parede por isso.)
A taxa de natalidade que se segue ao fim da
guerra é formidável nos países desenvolvidos. O exemplo da França: 3 crianças
por cada mulher em 47, e mais 2 milhões de almas a aparecer neste mundo entre
1946 e 1951.
Talvez por terem nascido na época em que
nasceram e dela absorvendo a inerente cultura -
e apesar de toda a contestação que na juventude lhe fizeram - talvez por isso, estejam os mais comuns indivíduos
resultantes do baby boom – os actuais
e/ou futuros reformados e pensionistas – a ver a sua vida andar para trás e entre
os mais saudosos do dito Estado providência.
As imagens são de morte... e o texto não lhe fica atrás. que seremos nós (babyboomers e seguintes)sem a Providência? Resta-nos as "providências cautelares"...
ResponderEliminarMuito vou ter que ler ao chegar a casa... estou a gozar talvez, as últimas férias sem subsídio, não dará para outras, nem com todas as providências modestas que fui tomando na vida. A sociedade não é nada se não cuidar dos indívíduos que a compõe e a FAZEM viver. Ponham os senhores a cavar a terra, a cultivar alfaces, a limpar casas, a pagar 100 euros por uma consulta particular ... aí veríamos como "gostariam da providência" e da "previdência".
ResponderEliminarAbç da bettips