terça-feira, 14 de maio de 2013


                                 A PROVIDÊNCIA

  

França. Primavera de 1945. A prioridade nacional, política e financeira é, obviamente, a reconstrução. E não é brincadeira nenhuma. Trata-se de reedificar a quase totalidade do equipamento urbano de um grande país.

               

Havia ainda que reerguer pontes, 10.000 pontes estradais e fluviais; e túneis, e viadutos, e passagens ferroviárias. E por falar nisso, havia 20.000 quilómetros de vias férreas para repôr e um sem número de estações para reparar. Não falando em toda a rede viária. E não esquecer dos 500.000 hectares de solo francês ainda minados.
Aos 5 milhões de sem abrigo de qualidade nenhuma havia que somar o número incalculável dos mal abrigados, problema francês da habitação que já transitava do período de entre-guerras.
Um estado nacional de emergência seria declarado. Requeria-se a organização e o pleno funcionamento tão cedo quanto o pudesse ser de um Estado que coagisse os seus cidadãos não sinistrados, e usufruindo em pleno de habitação, a acolher pelo menos uma família sem abrigo. Uma directiva, que, como seria de esperar, nem sempre foi bem aceite.
Recenseado o parque nacional dos alojamentos disponíveis, o Estado encorajou a ocupação legal das habitações devolutas e regularizou as ocupações ilícitas entretanto feitas. Por lei, autorizou-se a requisição das habitações fechadas para acolher os sem abrigo.
Preparavam-se para nascer as cidades dormitório nos arredores das grandes metrópoles.
Em Março de 45 um primeiro orçamento cativa 7 milhares de milhões de francos para a reconstrução do país. Uma fatia dos 217 milhares de milhões orçamentados para a despesa pública.
Em Junho de 45 procede-se à troca de notas de banco. Pretende-se uma avaliação das fortunas de cada um. Define-se o castigo dos açambarcadores e estabelecem-se as taxas a cobrar sobre os capitais.
Outro ponto nevrálgico das mudanças morais, ou, por assim dizer, políticas, acontecidas, ou mais intensamente desenvolvidas em 1945, tem directamente a ver com este tema. É a concepção – e activação - do chamado Estado providência.



Os economistas, e outros analistas, deitavam as culpas da crise dos anos 30 e do subsequente estado de guerra para cima do liberalismo económico. O falhanço do sistema liberal teria arranjado aquele bonito serviço do qual se acabava de sair e pelos tempos mais próximos ninguém quereria ouvir falar de soluções liberais para a economia nacional. Antes da  II Guerra, pelo que disse H.G. Wells, só alguns espíritos de excepção admitiam a possibilidade de uma ordem generalizada e feliz. Depois de II Guerra essa possibilidade viria a tornar-se uma grande esperança.
A II Guerra teve a virtude de demonstrar ao mundo a necessidade de um novo reordenamento na vida. Nunca antes tal havia sido concebido. Nem pelos defensores de Estado mundial.
O Estado. O período do imediato pós-guerra é caracterizado por profundas reformas sociais. Tinha que ser. O welfare state britânico traduzido para o francês como l’État providence. E pode dizer-se que a criação - ou o desenvolvimento maximalizado - da segurança social é a primeira grande conquista da libertação.


O Estado passava a intervir directa e fortemente na política económica, e por extensão nas políticas sociais. Desde 44 que na Inglaterra, na França, na Bélgica, vêm a ser organizados os sistemas de segurança social, tão malsinados nas circunstâncias sócio-económicas de hoje – em que, no caso português, estamos e estaremos por muito tempo ainda a viver uma situação social como que decorrente de uma verdadeira guerra, em que só faltaram os bombardeamentos, mas que, invisíveis se vistas do ar mas bastante reais se vistas de terra, deixará as suas ruínas.


E em França e na Bélgica, de par com uma série de outras reformas, incluindo as da segurança social, vêm as nacionalizações. A concentração dos investimentos nos sectores mais rentáveis que marcara economicamente os anos 30 teria levado a uma sobreprodução geradora de desemprego, subalternizando as necessidades mais elementares. Da América viria a tentativa de antídoto para esse mal generalizado. O New Deal , de Roosevelt, a favor de uma maior intervenção governamental na economia. O mundo esperava os resultados concretos desse dirigismo económico. Esperava da intervenção estatal aquilo que a economia liberalmente orientada não teria conseguido dar-lhe.
Para aquele desiderato, como seria de esperar, concorreu a crescente influência da esquerda nas políticas nacionais. A planificação económica tivera os seus sucessos pouco antes da guerra tanto na França como na Bélgica como na Inglaterra. E de tal forma que os próprios sectores conservadores basicamente concordavam na necessidade de agir economicamente segundo novos parâmetros, segundo nova moral. E se isso acontecia já pouco antes da guerra, reforçaram-se as convicções no imediato pós-guerra, e em todos os domínios.
Aprovisionamento de matérias primas importadas, distribuições de mão-de-obra e de produtos de primeira necessidade, e assistência geral, eram algumas das áreas onde a participação pública, mais do que esperada, seria decisiva.

                 
                                                  



Em França, acabada a guerra, sai o Estado à liça a fixar preços e salários e a gerir os racionamentos. Tudo isso com vista a evitar os mortos pela fome em significativos sectores da população. Além de outras eventuais virtudes e tarefas, cabia ao Estado velar pelas igualdades no sacrifício nacional.


No verão de 45 o sentimento dominante para muitos milhares de cidadãos europeus era o da esperança na possibilidade de um mundo melhor e mais justo – e quando é isto que se espera, inevitável se torna pensar na entidade Estado; e quando noutras situações e contextos se pensa que o mundo é assim porque é, e os homens são assim porque sim, porque são, e nem vale a pena torná-los melhores e mais justos, e não se pensa no Estado, e só se têm olhos para a iniciativa privada. Em 45, o homem comum sentia muito dolorosamente a necessidade de protecção contra as previsíveis incógnitas de uma vida que por demasiados anos fora vivida precisamente na incógnita e ao sabor dos acasos bélicos do dia seguinte.
Esperança num mundo que reconhecesse e preservasse a dignidade de produtor para o cidadão normal e se traduzisse em renovadas práticas sociais protectoras. Esse estado de espírito esperançoso vinha dos anos de guerra, evidentemente. E fora esse estado de esperança (num mundo mais justo e num homem melhor e mais solidário) a incentivar as capacidades de sacrifício e de intenso trabalho, e ao mesmo tempo a dar coragem para suportar toda a sorte de restrições, e de reveses. 


A ocupação levara a efeito a desindustrialização da França, segundo as concepções e os planos hitlerianos para a Europa. Ao passo que na Grã Bretanha,directamente empenhada nas operações militares, se assistira a uma poderosa mobilização industrial, sempre fomentada pela máquina de propaganda, que punha, por exemplo, a BBC a transmitir nas horas e nos locais de trabalho, e experimentando novos métodos de gestão laboral em que se associavam estreita e directamente à produção os comités de operários.
        Em França, e sob a escravizante tirania nazi, a gestão laboral nos anos de ocupação era obviamente concebida segundo regras de violento autoritarismo e exploração máxima, com rebeliões de operários por aqui e por ali. No plano político, a participação dos trabalhadores seria prejudicada pelas características violentamente ditatoriais da situação e pelos ditames do subserviente governo de Vichy. O debate público dos problemas era impossível. A política era um espaço de divisões e a Resistência resguardara a sua mais efectiva acção no mundo do trabalho para um pós-guerra e para um tempo de libertação que chegariam não se sabia quando, mas seguramente chegariam.

Em Inglaterra, pelo contrário, o debate público fora intensa e politicamente enquadrado durante todo o tempo de guerra. Os trabalhistas elaboraram planos económicos e laborais e debateram-nos no Parlamento - a despeito da recusa de Churchill em aplicar esses programas. Ele, Churchill, e o partido dele, viriam a pagar essa atitude nas eleições que se seguiriam à guerra. É verdade. Se Churchill ganhara brilhantemente a dificílima guerra, perderia a paz, perderia as eleições, e talvez pela negligência demonstrada no plano interno, e quanto aos problemas laborais concretos.
O Estado providência e respectivas reformas foi amplamente discutido na Inglaterra. O programa dos trabalhistas compreendia inevitáveis nacionalizações, o carvão, o gás, a electricidade, os transportes, as siderurgias e o Banco de Inglaterra. Em França, os planos similares em apreço previam o regresso à nação dos grandes meios de produção entretanto monopolizados, fontes energéticas, recursos mineiros, seguros e banca. Concomitantemente, lançava-se um plano alargado de segurança social. Mas eram projectos que o grande público mal conhecia, que requeriam tempo. Tudo passaria a depender da evolução política.


                                                                           

Uma nova moral económica em paralelo com uma nova moral política, reclamara-se na Europa de 1945…
 Ou uma moral que era nova e exaltante nessa época e que hoje nos soa a velho e bafiento e imprestável.
Em boa parte, tudo depende de uma questão de propaganda. A moral pública não passa sem uma propaganda de conveniência e também, até nisso, como a História, é subsidiária do factor tempo.
Perante o quadro social de 1945 não é de estranhar que os problemas em França, antes da economia, passassem por circunstancialismos de tipo político-social extremamente ingratos. Punha-se por exemplo em causa o poder dentro da empresa, que logo se ligava com a questão das depurações. Muitos administradores eram afastados e presos por colaboração com o ocupante. A guerra criara ressentimentos inultrapassáveis no tecido laboral e isso repercutia-se na produção. Já se confundiam os inimigos de classe; já se misturavam os directores incompetentes com os traidores à pátria. Ninguém estava disposto a trabalhar muito sob as ordens de uns e de outros. E pouco antes do fim da guerra, nas zonas de maior influência da Resistência, eram nomeados administradores provisórios, rodeados por militantes sindicais da federação CGT, incluindo-se neles alguns homens da própria Resistência. Em Marselha eram requisitadas empresas inteiras. E depois em Lyon, em Béziers, em Toulouse.

Na Renault a situação era muito confusa depois da prisão de Louis Renault por colaboracionismo, e não se verificavam muitas discordâncias quanto à necessidade de nacionalizar sectores chave da economia. E elas, as nacionalizações, arrancaram logo a seguir à libertação. Arrancaram em 45 e duraram sem contestações de maior até aos anos 80. E duraram porque sem dúvida alguma coisa corresponderam aos anseios nacionais através das diferentes conjunturas políticas. E em consonância com a vaga de nacionalizações vem a urgência de uma planificação económica. Há um comissariado geral do Plano criado em Dezembro de 45. 
E todavia, e muito ao contrário do que se possa pensar, não era  socialismo. Não era o socialismo. Era um pragmatismo capitalista, vamos lá. Um plano que se restringia a sectores prioritários da intervenção do Estado. A ideia estava longe de ser a instauração de um qualquer embrião de socialismo. E ia até mais longe. Ou mais perto, não sei. O que sei, ou julgo saber, é que ia no imperioso sentido de equipar devidamente e devidamente modernizar um país em ruínas.

     



As nacionalizações e a planificação podiam até ser consideradas por alguns especialistas o pontapé de saída para uma renovação do capitalismo francês, dado que visavam os tais sectores que esperavam investimentos tão consideráveis que estariam fora do alcance de quaisquer privados.


Fazendo operar uma parte do capital produtivo à margem das regras do lucro, as nacionalizações planeadas resultariam no aumento das taxas de lucro de muitos outros sectores. E desde logo se pensa nos custos da energia, cujo controle e redução beneficiariam a operacionalidade de milhares de empresas.
Não foi o socialismo, de facto, o que foi posto em marcha na França libertada de 1945. O objectivo foi a instauração de um capitalismo moderno e dinâmico, e moderno e dinâmico porque temperado por largas políticas sociais. Uma nova moral do trabalho e do dinheiro. Uma nova moral que está nos nossos dias a ser ridicularizada quando se confronta com a propaganda dos valores que presidiram às economias liberalíssimas do tempo de entre-guerras. E que deu no que deu.
Quanto a segurança social, é preciso dizer que a França não partia do zero. É verdade. Desde 1930 que os franceses dispunham de um sistema de seguros sociais que cobriam a doença, os acidentes de trabalho e a velhice.
E o engraçado é que, apesar de tantas transformações, o sistema  de segurança social francês de 1930, sempre em progresso e atravessando toda a sorte de vicissitudes, só viria a produzir todos os seus efeitos em 1960.
De acordo com o plano de capitalizações adoptado, 30 anos de contributos eram necessários para o funcionamento pleno do sistema de 1930.
Mas os riscos de desemprego não estavam cobertos por esse plano.
O ponto de partida moral para as esperanças francesas quanto a segurança social eram na época, e em boa parte, inspirados por Inglaterra. O fundamento moral da segurança social era a garantia oferecida a cada um de que em todas as circunstâncias da vida ele e a família poderiam dispor dos meios indispensáveis à subsistência em condições decentes.
O escopo final do plano passava pela cobertura do conjunto da população contra os factores de insegurança. Mais um quesito moral novo em 45 e desusado ou negligenciado hoje em dia na risonha segurança da insegurança na tendencial americanização do mundo do trabalho, aumentado pelas consequências do estado de guerra imposto às nossas finanças públicas.
A criação de uma organização protectora do cidadão a nível nacional constituiria um dever da comunidade em face do seu direito de cidadania. Outra base moral. Ou, a bem dizer, política, o que pode ir dar no mesmo. Depois, seriam os desenvolvimentos e os aperfeiçoamentos posteriores, mais ou menos vagarosos, mas sempre com a firme consciência de que o que quer que se fizesse neste campo estaria sempre incompleto e seria sempre possível de melhoramento.
Além de tudo o mais, naqueles anos duríssimos do pós-guerra o plano de segurança social nacional tentaria sanar as tensões vivíssimas que a modernização provocaria, procurando manter a coesão social no quadro de vertiginosas transformações de toda a ordem e em função do objectivo crucial e muito problemático que era o pleno emprego.

70% dos franceses esteve de acordo com a nacionalização da banca. 65% queria o mesmo para os seguros e 62% para a extracção mineira. A Air France é nacionalizada.
A 22 de Fevereiro de 45 são oficialmente instituídos os comités de empresa para as empresas com mais de 100 assalariados.
Segurança social obrigatória para todos os assalariados franceses em Outubro de 45.
E, já próximo do fim desse ano electrizante de 1945, a França nacionaliza a maior parte dos seus bancos. Cria-se um comissariado geral para a planificação da economia.
Entre as coordenadas da nova moral que despontava em 1945 entrava uma outra e nada desprezível ordenança: o aumento da população mundial, ou o chamado baby boom.


Os oriundos desse baby boom, hoje respeitáveis senhoras e senhores a iniciar a sua carreira de decrépitos anciãos inúteis – e ao número dos quais eu pertenço -, foram os beneficiários tanto dos progressos como das contradições que se seguiram na vida ao ano de 1945.



E seriam esses babyboomers, nos anos 60, a contestar a vida e as instituições herdeiras do pós-guerra e do tempo do seu nascimento; e seriam eles a reformular tecnológica, política e moralmente o mundo e a criar, no tempo da sua mais matura vivência, uma outra e nova idade com outros princípios, nem todos extraordinariamente recomendáveis, a meu ver. Viria a ser o mundo novo dos anos 70 e 80. (Na minha insignificante opinião, e de uma maneira geral, podemos limpar as mãos à parede por isso.) 

                           
A taxa de natalidade que se segue ao fim da guerra é formidável nos países desenvolvidos. O exemplo da França: 3 crianças por cada mulher em 47, e mais 2 milhões de almas a aparecer neste mundo entre 1946 e 1951. 
Talvez por terem nascido na época em que nasceram e dela absorvendo a inerente cultura -  e apesar de toda a contestação que na juventude lhe fizeram -  talvez por isso, estejam os mais comuns indivíduos resultantes do baby boom – os actuais e/ou futuros reformados e pensionistas – a ver a sua vida andar para trás e entre os mais saudosos do dito Estado providência.

                 



          

2 comentários:

  1. As imagens são de morte... e o texto não lhe fica atrás. que seremos nós (babyboomers e seguintes)sem a Providência? Resta-nos as "providências cautelares"...

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  2. Muito vou ter que ler ao chegar a casa... estou a gozar talvez, as últimas férias sem subsídio, não dará para outras, nem com todas as providências modestas que fui tomando na vida. A sociedade não é nada se não cuidar dos indívíduos que a compõe e a FAZEM viver. Ponham os senhores a cavar a terra, a cultivar alfaces, a limpar casas, a pagar 100 euros por uma consulta particular ... aí veríamos como "gostariam da providência" e da "previdência".
    Abç da bettips

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