AS DUAS MÃES DE
LEONARDO
Faço fé no que li de Siegmund Freud. Um
estudo sobre o divino renascentista incluído numa obra chamada Textos
Essenciais Sobre Literatura, Arte e Psicanálise.
Leonardo nasceu em Abril de 1462, exactamente
em Vinci, perto de Florença, como filho ilegítimo de Ser Piero da Vinci,
notário, homem de teres e haveres, e de Caterina, presumível rapariga do povo,
admissível pobre e indefesa rapariga do campo.
Deve ter-se dado o caso (relativamente
comum) de um homem de meios de fortuna e ares de grande senhor mais ou menos
nobre, ter abusado de uma rapariga de mais modesta extracção, exposta ao
prestígio social do seu sedutor. Não sabemos. Eu pelo menos não sei…
Ser Piero casar-se-ia mais do que uma
vez e estaria ausente da vida do filho nos primeiros anos da vida deste, o que
levaria Leonardo a passar sem o apoio do pai aquela complicada fase dos
primeiros anos da infância. E se Leonardo não contou, nos primeiros anos de
vida, com a presença do pai, também, visto de outra maneira, não se sujeitou à
intimidação autoritária que pode representar para a criança essa presença. O
que não quer dizer que Leonardo, na juventude, não viesse de algum modo a tomar
o pai como paradigma de conduta social, encontrando na protecção mecenática do
duque de Milão, Ludovico Sforza, uma espécie de substituto da figura paterna –
o que, por sinal, coincidiria com um período criativo bastante fecundo.
O pai, Ser Piero, viria entretanto a
casar com uma dama nobre. Mona Albiera (e ao que parece no próprio ano do
nascimento de Leonardo) não resultando filhos desse casamento. E talvez por
assim ter acontecido, Leonardo, aos cinco anos de idade, ingressa na casa do
pai, ou, mais propriamente, na do avô paterno, permanecendo sob a influência de
Mona Albiera, quer vem a ser a sua segunda mãe.
Leonardo sairá de casa de seu pai com
indeterminada idade, quando é a altura de entrar para a oficina de Andrea del
Verrochio, com o objectivo de aprender o duro ofício de génio da pintura.
Da primeira, e real, e legítima mãe,
Caterina, opinam alguns investigadores (Freud fala de um russo chamado
Mereschkovski), que terá mais tarde casado com outro homem, podendo não ter
voltado a aparecer na vida do grande artista seu filho; ou podendo tê-lo feito
em 1493, quando de uma visita a Milão, tinha Leonardo passado já dos quarenta
de idade. E ainda, e segundo opiniões abalizadas, em Milão pode Caterina ter
adoecido, ou pode ter mesmo morrido, levando um funeral de estadão
integralmente pago pelo seu legítimo e afamado filho.
Ficou para a posteridade um intrigante
apontamento redigido pelo punho do próprio Leonardo, e que reza assim: parece que já há muito esteve determinado
que me ocupasse de modo aprofundado dos abutres, pois me vem à recordação algo
acontecido muito cedo, quando ainda era
criança de berço: um abutre passou junto de mim, abriu-me a boca com a cauda e
roçou-a várias vezes contra os meus lábios.
E a este apontamento vai Freud prestar
grande atenção no seu estudo.
Acontece que nos escritos sagrados do
velho Egipto cabia ao abutre a representação da figura da mãe – venerava-se uma
deusa-mãe de cabeça de abutre, cujo nome seria mut.
Mas, quase com toda a certeza, Leonardo
desconhecia tal simbolismo, quanto mais não fosse porque esse simbolismo só
viria a ser estabelecido trezentos anos mais tarde por Champollion, depois de
estudada a significação dos hieróglifos, como toda a gente sabe.
Símbolo da maternidade era então o
abutre quando no antigo Egipto se entendia que os abutres só tinham um sexo, o
feminino, e não os havia machos. E o que corria nesse Egipto mítico, e se
transformaria em lenda, era que os abutres, todos eles fêmeas, se detinham por
uns momentos nas alturas do seu vôo,
suspendendo-o e colocando-se em postura propícia ao receber nos órgãos
reprodutores a carícia e a força e o espírito do vento que os fecundava.
O tópico da unissexualidade do abutre
seria evidentemente desmitificado, muito embora, e sempre segundo Freud, as
instâncias da igreja católica tenham podido apropriar-se do mito como sugestão
da probabilidade de uma fecundação natural, uma fecundação pro artes da
natureza bravía, conotando-a com o caso da própria Virgem Maria, a mulher que
como os abutres da idade provecta da Humanidade poderia ter sido fecundada sem o
contacto pecaminoso com o macho-homem, e apenas por meios tão naturais como o
vento.
E fosse por via do convívio com os
padres da igreja o caso é que Leonardo se sentiu tocado pela beleza poética do
mito do abutre egípcio, fantasiando a partir daí alguma ténue recordação que
lhe sobraria da primeiríssima infância.
A simbologia do abutre, porém, ia mais
longe. A deusa-mãe com cabeça de abutre representavam-na os egípcios muitas das
vezes como um falo: um corpo feminino, dotado de peitos femininos, mas também
dotado de um membro viril. Donde se segue a ambiguidade das pistas maternais e
simultaneamente masculinas e viris na fantasia concebida pelo privilegiado
espírito de Leonardo.
Leonardo era alto, bem feito de corpo,
com um belíssimo rosto, e fisicamente forte, bem falante, simpático, amante da
música e da boa companhia. Na sua maneira de ser, no entanto, tendia à
indolência, à indiferença. Não era menino para conflitos. Não queria chatices
com ninguém. Ah, e também não comia carne; e comprava pássaros no mercado
(pássaros vivos, bem entendido) só para ter o prazer de os devolver ao vôo. à
liberdade. Não, não achava bem que se dizimassem animais só para se lhes comer
a carne.
Leonardo costumava acompanhar
criminosos ao local da execução, só para lhes registar as expressões do rosto
perante a iminência da morte.
E também abominava a guerra. O que pelo
é curioso, uma vez que tal abominação não o impediu de ser engenheiro militar
chefe de César Bórgia, para quem inventou algumas bem mortíferas máquinas de
combate.
Diz-se que rejeitava a sexualidade.
Mas Freud refere expressamente a
probabilidade de ter existido uma relação sexual entre Leonardo e os discípulos
– os quais, como era normal na época, conviviam estreitamente com o mestre.
E
Freud ainda admite que o facto de da oficina e do magistério de Leonardo não
ter saído nenhum pintor de génio poderá ser explicável se se presume que ele
privilegiava para a condição de alunos seus rapazes bonitos, de bons dotes
físicos, em lugar de alguns outros, porventura feiosos, mas de talento mais
prometedor.
Na conformidade de ser provável que
Leonardo denotasse tendências pederásticas, e depois da sua descrição do
episódio do abutre, levanta-se a questão de saber se essa fantasia do abutre
não estabelecerá, de certa forma, uma relação causal entre a vida de Leonardo
criança com sua mãe e a homossexualidade posteriormente verificada – mesmo que
idealizada, ou sublimada. Com alicerce na sua experiência clínica, Freud
assevera-nos que tal relação causal seria possível, e até mesmo necessária.
Caterina podia compensar o seu menino
pela ternura e pelas carícias, em vista da falta do pai, colocando esse menino
no próprio lugar do pai e desvirilizando-o pela precocidade da experiência
erótica das carícias, dos beijos.
O amor pela progenitora dificilmente
acompanhava a evolução consciente do indivíduo, sendo por isso mesmo objecto de
recalcamento. E dar-se-ia igualmente uma regressão para o auto-erotismo: os
rapazinhos que Leonardo ia conhecendo seriam a configuração da sua própria pessoa,
da sua própria imagem de criança e de adolescente, que ele amava como a própria
mãe o amou em pequenino, um narcizinho enamorado da própria imagem…
Levado do diabo este Freud…
E outra coisa ainda: quando se apaixona
por rapazes, o que faz é fugir de outras mulheres, as mulheres que o fariam
infiel à imagem de sua mãe.
Nos anos tenros da vida faltou a
Leonardo o pai. Leonardo sentir-se-ia por isso mesmo como filho do abutre.
Leonardo era uma criança ilegítima. Leonardo estava sózinho com sua mãe, como
se esta tivesse sido fecundada pelo vento do deserto, pobre e abandonada,
prodigalizando mimos à adorável criança que o vento lhe fizera gerar nas
entranhas.
Mas Mona Albiera, a mulher legítima de
Ser Piero Vinci, não tinha, não teve, filhos. E, contra o que é habitual, aos
cinco anos de idade, Leonardo, o ilegítimo, vai para casa de seu pai e para a
companhia de uma madrasta , a mulher que é
esposa legítima do pai e que ainda espera ter filhos próprios.
Mona Albiera foi também de uma ternura
muito grande na relação com o pequeno enteado. Um enteado que por causa desses
afectos da madrasta também se teria dado a rivalizar com o pai. Escapado à
intimidação da figura paterna nos primeiros anos de vida, Leonardo, na análise
freudiana da sua evolução pessoal, dá indícios ao longo da vida madura de uma
grande independência e de uma audácia acutilante, em particular no que tem a
ver com as investigações científicas que empreende. O que significaria a
ausência de condicionamentos psíquicos; ou
ausência de necessidade de se apoiar numa autoridade ou numa figura
tutelar interiorizada, coisa normal na maior parte das crianças.
Mas aquele que cria a suas próprias
obras artísticas e científicas também é pai. E Leonardo pintava, esculpia,
concebia e criava as suas obras, mas…
mas nem sempre as acabava. Quer dizer, com as suas obras, dadas ou não por
concluídas, não se preocupava grande coisa após a criação, o ímpeto primeiro da
criação, tal como o pai havia feito com ele nos primeiros anos.
Ser amamentado e ser intensamente
beijado pela mãe; ter tido a intima experiência, a experiência perturbante e
criativa do abutre que roçou várias vezes
a cauda contra os meus lábios, enfim, tudo isto realça a emergência
fortíssima de uma relação erótica entre mãe e filho, e retendo-se a simbologia
da actividade da mãe (ou seja, do abutre), com o sublinhado posto na zona da
boca: o ser amamentado; o ser repetida e longamente beijado.
(Este Freud…)
Bem, mas tudo isto, por força, haveria
de ter expressão nas obras artísticas maiores de Leonardo. E dessas, aquela que primeiramente nos
ilumina a larga pantalha da memória é o sorriso universal, prenhe de enigmas, irónico, redondo, todo ele sugestões, e longo, e subtil, e sensual: Mona Lisa, claro. Mona
Lisa del Giocondo, quer dizer, senhora dona Lisa, mulher de Giocondo, isto é,
do florentino Francesco Giocondo, e por isso chamada La Gioconda.
Mona Lisa del Giocondo, que Leonardo, já
cinquentão, leva quatro anos a pintar, e que pode ser o ápice estético de uma
encruzilhada psíquica do artista. Um sorriso: Mona Lisa é um sorriso; um sorriso
onde os estetas apanham em flagrante a dualidade, a reserva, a sedução, a
ternura, a sensualidade. Leonardo declarou sempre esse quadro como inacabado e
levou-o consigo quando emigrou para França, a expensas de Francisco I, acabando
por ser o mesmo Francisco I a ficar-lhe com a tela e a pô-la no Louvre. Onde
ainda hoje está, como se sabe.
Possivelmente, as belas cabeças
leonardinas de criança não reproduziriam mais do que a época ideal da infância
do próprio pintor. Mas entretanto, as mulheres que na obra de Leonardo, de
quadro para quadro, sorriem esse sorriso repercutido e algo estilhaçado entre
diversos sentimentos sobrepostos e passível de infinitas decomposições, remetem
admissivelmente para Caterina, a sua primeira e verdadeira mãe. Um sorriso de
mãe; um sorriso de mulher de que Leonardo nunca se teria libertado. Uma
regressão do artista, que só lhe beneficiou a arte pela activação de um
psiquismo, exteriorizável na confecção de sorrisos radiantes e misteriosos de
mulher, evocativos de uma calma régia e poética que haveria no íntimo do
sorriso da mãe tal como ele o recorda.
Cronologicamente próxima da criação do
retrato de Mona Lisa del Giocondo está a realização do quadro chamado Sant’Ana
a Três. Aparecem Santa Ana, a filha e o neto. Melhor explicado: Santa Ana,
Maria e o Menino Jesus. E nesse quadro o sorriso leonardino resplandece também
no rosto das duas mulheres, menos inquietante embora, mais sereno e beatífico.
Maria aparece sentada no regaço de sua
mãe, inclinada para a frente, estendendo os braços para o Menino, que brinca
com um carneirinho – o que dá aliás uma composição de grupo que nos pode
parecer pouco natural.
Na maneira de ver de Freud, o quadro
Sant’Ana a Três pode ser uma síntese da infância de Leonardo, e assim pela
reavaliação artística das tensões afectivas que lhe preencheram essa parte da
vida. Porque, também é preciso dizê-lo, em casa do pai, a partir dos cinco
anos, para além da ternurenta madrasta, Albiera, Leonardo foi acolhido pelos
carinhos de Mona Lucia, sua avó, mãe de Ser Piero, seu pai – e é pelo menos
engraçado verificar a similitude de sonoridade entre o nome da avó, Mona Lucia
e o da mulher do florentino Del Giocondo, Mona Lisa – ainda que o “mona” sirva
para as duas, porque quer dizer “senhora”.
Acalentado pelas meiguices da mãe
emprestada e da avó verdadeira, Leonardo teria sido objecto de uma
super-protecção feminina, coberto de mimos, o menino na mão das bruxas, como se
costuma dizer. E o que impressiona mais no quadro Sant’Ana a Três é que as duas
mulheres, Santa Ana e Maria, não parecem nada mãe e filha. Santa Ana e Maria
são-nos apresentadas como duas mulheres bastante jovens e bastante bonitas, como
se Leonardo emprestasse ao Menino Jesus a auto-biográfica circunstância de ter
sido educado, mimado, acarinhado e beijado por duas mães em vez de uma só. E
dessas duas mães do Menino (ou de Leonardo) uma estende-lhe os braços, enquanto
outra se deixa estar, contemplativa, rosto ornado de beato e maternal sorriso,
num plano mais afastado do objecto dos seus afectos.
No palpite de Freud, a figura que
representa Santa Ana, e que se coloca no plano mais afastado, corresponderia à
figura de Caterina, a primeiríssima mãe, a verdadeira. Caterina que teria
recuado para o segundo plano do universo do filho ainda em tenra idade deste,
suplantada pela outra, mais rica, nobre,ansiosa por conquistar o afecto daquele coraçãozinho infantil e apropriar-se
dele como o filho que não podia ter.
E ainda no palpite de Freud, o sorriso que
o artista desenha nessa figura atribuível a Caterina teria por finalidade
disfarçar os traços amargos da inveja que a pobre camponesa seduzida pelo
notário de Vinci sentiria por ter sido obrigada a ceder o filho a uma rival de
extracção social superior à sua – obrigada a ceder o próprio filho, depois de
lhe ter cedido o homem, note-se.
E o magistral espantoso do quadro é que
as duas figuras de mulher se fundem uma na outra na baralhação das pregas da
roupa. Não há limites evidentes para cada uma delas do busto para baixo. É como
se, para o artista, tudo fosse o afloramento de um sonho de recortes
imprecisos, sem se saber onde começa Ana e onde acaba Caterina, confluindo
ambas numa só forma, num só volume figurativo, as duas mães do pintor, dois
bustos nascidos do mesmo tronco, duas almas encandeadas pelo pequeno sol que
Leonardo era nas suas vidas.
Mais perturbante, talvez, pode resultar
a descoberta de um crítico chamado Oscar
Pfister ao estudar no Louvre o quadro Sant’Ana a Três. De acordo com Pfister –
e com o aditamento que em 1919 Freud fez ao estudo original sobre Leonardo,
datado do outono de 1909 – as roupas da
figura de Maria, em primeiro plano, estão escandidas de tal forma que
configuram o contorno de um abutre, símbolo da maternidade, a cabeça, a curva
no torso, na cintura, a linha que se lança na direcção do regaço.
Claro está que só visto.
E diz-nos Freud que Leonardo continuou
a ser toda a vida, e em múltiplos sentidos, uma criatura infantil; continuou a
brincar e a entreter-se com aparentes futilidades, o que fez dele, tantas
vezes, um ser incompreensível aos contemporâneos. Freud diz-nos também que esse
prolongamento da infância e dos seus jogos e mitologias é apanágio dos grandes
espíritos.
Sim, isso e mais a projecção que no trabalho criador Leonardo fez da sua vida
privada e familiar, da sua infância tremeluzente entre a consciência e a
semi-consciência, e que aos cinquenta anos se resolve na feitura de obras de
arte.
E pergunta-se se não será esse o núcleo da
energia criadora que está na orígem de toda a grande arte e a toda a originalidade de um
génio…
A infância. A infância. O homem nunca chega a
crescer muito, quer-me parecer. Ou não será o enigma da arte, a originalidade,
o génio criador, irrepetíveis e incomparáveis porque irrepetíveis e
incomparáveis são as nebulosas experiências íntimas de cada um, e que o maior
génio será aquele que melhor e mais frequentemente convoca à consciência esses
mistérios passados e esses factos irrepetíveis, e incompreensíveis, jogando com eles da mesma maneira como no
passado jogava os seus jogos infantis – e também misteriosos?
Pergunto eu.
Bom, mas também já houve quem dissesse que a
Humanidade não era mais do que uma perversão da natureza.
Não sei.
Excelente...
ResponderEliminarAcho que sim, essa interrogação da infância. Por isso andamos aqui a jogar o jogo de "desvendar", tal como líamos, alvoroçados, os 1ºos livros, proibidos, até.
ResponderEliminarTenho andado por aqui, tal qual ouvia, aprendendo e encontrando perguntas.
Abç