AFINAL NÃO HAVIA MESMO VIDA PARA ALÉM
DO DÉFICE
Em nenhum país economicamente avançado o sistema de mercado constrói casas que os pobres possam pagar.
JOHN KENNETH GALBRAITH
Quem o disse... sim, quem disse que havia mais vida para além do défice, foi aquele nosso simpático presidente da República de falas redondas.
JOHN KENNETH GALBRAITH
Quem o disse... sim, quem disse que havia mais vida para além do défice, foi aquele nosso simpático presidente da República de falas redondas.
Aquele presidente que também recomendou
ao pessoal que se deixasse de lamúrias – pois, porque havia mais vida para além
do défice, ele lá sabia qual. Deixar de lamúrias? Obrigado!, digo eu, com as
mordomias que ele tem (ainda tem) pagas pelo erário público fortemente deficitário,
também eu não me punha com lamúrias…
Sim, eu sei, mais tarde, julgo que já
na qualidade de ex-presidente, o senhor veio a “repudiar” a forma como vinha a
ser citada a frase que proferira, certamente num dia de particular boa
disposição e deleitosas recordações, que foi o dia 25 de Abril de 2003. Não
foi? Foi, claro que foi. O dia. A frase? Sei lá. Sempre a ouvi citada assim, o
défice. Mas ele reclama, e diz que a
frase foi: "há mais vida para além do orçamento."
Está bem. Mas se o orçamento é aquilo
que é (e que quase sempre foi), e que a gente sabe, gerador de défices, vai dar
no mesmo, e nem um truque semântico barato de advogado lhe muda a substância.
Mas também, coitado do senhor, todos temos direito ao nosso momento de
populismo. Ou de optimismo. E acrescenta ele que no momento em que disse o que disse
a dívida nacional externa se cifrava em 50% e que hoje andará para cima dos 90% -
só?, se calhar ainda mais para cima, 120%, 130%, enfim, são contas complicadas
de um rosário que não é o meu, que bem gostaria de viver para além do défice
(ou do orçamento) e não consigo.
O que ele terá querido dizer é que uma
dívida de 50% em 2003 não era preocupante que bastasse para deixar de haver vida
para além dela? Hum… não acho. Mas ele é que era o presidente. Lá sabia.
Pois. Mas se nessa altura havia
assim tanta vida para além do orçamento, ou do défice, o caminho que se traçou
desde então, e não nos preocupando nós com ele, deu como resultado termos
chegado aqui. E aqui é um tempo em que não há mesmo mais vida para além da
dívida, ou do orçamento, ou do que um advogado de falas redondas lhe queira
chamar.
(E diz o povo ter sido este presidente
que, ao correr com o Santana Lopes por motivos de somenos comparados com os que
hoje existem para correr com um 1º ministro, e afirmando-se como factor de
optimismo e pensamento positivo numa sociedade lamurienta, deu o devido gás ao
consulado socrático, o qual, como também diz algum povo, foi dizimando
calmamente a vida que poderia haver para além do défice. Ou do orçamento.)
Haver mais vida para além do orçamento?
Tanto optimismo pode ter vindo de uma mente informada, conhecedora das
realidades e das profecias, quando chegada aos paroxismos do pessimismo. O
pessimismo extremado, se saudável, pode ser o princípio do optimismo
desbragado, irrealista, porque não resta alternativa à sobrevivência senão
acreditando que é possível, e ainda que sabendo que as veredas da esperança são
tortuosas.
Mas também, quem adivinhava ao que isto
iria chegar?
Pode-se compreender tanto e tão
radiante optimismo, mesmo de uma alta figura do Estado, quando se sabe que no
Homem há a tendência insistente para a felicidade. Uma felicidade, um bem-estar
medidos por objectos e signos, já se sabe, e porque é
esse, também… essa intensificação do bem-estar… dizia Tocqueville, a
tendência natural das sociedades democráticas.
Quem adivinhava ao que isto iria
chegar?
E que vida para além da dívida, ou do
orçamento, quando nos caminhos dessa vida sentimos os passos de um obscuro coelho
que viria a ser o homem errado no lugar errado, na hora, sabe-se lá, que podia
ser a hora certa… sim, certa, mas para alguém de real gabarito e experiência de vida.
Mas aquele era um
homem sem biografia política que ultrapassasse a das rapaziadas da jota. Um
homem que, nessas condições, era patente, vinha para cumprir sem brilho e sem
iniciativa própria um serviço às oligarquias, e no justo momento do fim de
festa de todos os optimismos endividados, e para, na conjuntura, tentar
enriquecer ainda mais os que já eram muito ricos.
A tarefa podia ser a de desenvolver no terreno
um conceito de crise. A crise enquanto motor de mudança – mudança de hábitos
(vícios) nacionais. A crise como perturbação. A crise como categoria que
suscita uma solução eventualmente drástica, brutal. A crise que seria a
agudização da doença crónica e com tempo certo de eficácia. Porque a crise
é a anterioridade da sua resolução. E no
nosso caso a crise é a da economia capitalista, é a das ideias, é a das despesas
públicas, chega a ser a das relações sociais, ou mesmo das inter-pessoais.
E a nossa crise remonta, di-lo Jorge
Borges de Macedo, às disputas entre D. Sancho II e D. Afonso III, (Ih, onde
isso já vai), Pois sim, uma crise crónica que alguns atribuem ao próprio
carácter de ser português.
Camilo Pessanha pode tê-lo entendido assim.
Eu
vi a luz em um país perdido.
A
minha alma é lânguida e inerme.
Oh!
Quem pudesse deslizar sem ruído!
No
chão sumir-se como faz um verme…
E é a realidade económica o sal da
nossa vida de 2013. A realidade
económica que nos rouba o prazer da vida que poderia haver e não há para além
de um défice. Ou de um orçamento.
Tinha chegado o tempo de confiar a um
rapazola de mal enjorcada licença académica em qualquer das fáceis
universidades que por aí há a missão simples de vender de vez a identidade
nacional a quem pagasse as nossas estroinices orçamentais de Estado.
As “realidades espectrais” da economia
determinam a vida, a nossa vida, a vida que poderia haver para além do
orçamento, ou do défice. Regressamos ao estado animalesco por via do défice, do
quantitativo, vendedores e compradores – de tudo, de dívida, de empresas, e
também, e sobretudo, de consciências.
Intensificar o proteccionismo de Estado
(já muito antes concedido, evidentemente) à banca e aos grandes interesses
financeiros. Intensificar a estagnação dos salários – na realidade a
diminuí-los substancialmente através medidas de precaridade, de impiedosos
impostos e ameaça de abolição de horários. Promover o desemprego crónico. Fazer recuar vinte anos o nosso nível de vida. Fazer
prosperar as instituições financeiras…
Um 1º ministro que nos apareceu nos
caminhos da vida e do destino a dizer-nos sem o dizer que para a maioria de
nós, e por muitos e maus anos, não haveria mais vida para além do défice que
teríamos de solver. Nós, pessoal miúdo, sim.
Quem adivinharia ao que isto iria
chegar?
Coelho com Portas, Portas com Coelho,
Coelho porta com porta com Portas, portas batidas com estrondo por Portas na
cara de Coelho, Coelho que não fecha as portas a Portas – sim, mas sem dúvida o team mais perfeito que se podia
arranjar para a missão na hora do iminente naufrágio económico-financeiro:
salvar a todo o custo os interesses das oligarquias.
E tudo o que tem sido visto na
televisão de anacrónico, irregular ou vergonhoso, um ministro que se demite
quando a água começa a ferver a sério para o lado dele; outro ministro que se
demite irrevogavelmente!, logo a seguir, e que dois dias depois revoga a sua
própria irrevogabilidade e volta atrás com a palavra no maior dos
descaramentos, vencedor de mais uns lugares de governo para si e para os seus…
tudo isso, enfim, que se não foi já esquecido estará para se esquecer (como é
costume), tudo o que durou uns minutos distraídos de televisão e daqui a uns dias já não
lembrará a ninguém, porque o facto que na democracia televisiva imediatamente
se seguirá tem a finalidade única de fazer esquecer o facto que o precedeu e
preparar o outro que virá já a seguir e que fará esquecer também esse.
É. Pensando no que se passou na vida
política portuguesa das últimas semanas é que se percebe o quanto a política
releva de actividade lúdica. A política é a ambrósia de uma agressividade
sublimada, o jogo de roleta dos riscos calculados. O exercício seguro da
pirueta. A sem-vergonha da mentirola que se traveste de razão de Estado. É o
exercício retórico capaz de tudo justificar nos media – exercício retórico que até concede à mais alta figura do
Estado a faculdade de dizer alegremente que há mais vida para além do défice
(ou do orçamento que irá fazer aumentar o défice). A política é o gosto pelo
capricho e pela probabilidade impune do arbitrário. Pode ser o inesgotável
prazer de gozar com o pagode que encarneiradamente vota sempre que lhe mandam e
em quem os media lhe sugerem. Assim
como é o prazer infantil (lúdico) de fazer dos outros (um país inteiro) parvos.
Ah, sim, pois é, estamos a cair na
sociedade da desagregação, o mercado. E o que produz o mercado quando entregue
a si mesmo? Exclusão. Exclusão do que lhe não é imediatamente preciso.
Ao aproximar da tormenta dos
incalculáveis e universais prejuízos, alguém tem de ficar incólume. As elites
do dinheiro têm por obrigação tornar-se mais poderosas do que já eram,
embrulhadas nesta democracia de opinião, incansável pau mandado dos poderes
oligárquicos.
Há mais vida para além do défice? Que
vida? Vida com as medidas liberais a regularem contabilística e fiscalmente o
desejo humano?
Vida para além do défice só se for vida
de casino. E com cartas viciadas, é claro. E com regras falseadas. E casino
idealmente frequentado por banqueiros e accionistas de grandes empresas
multinacionais, ou por quem tenha poderes de transaccionar ilegalmente nos
jardins do Éden fiscais, de lavar dinheiros súcios, de operar especulações
monetárias.
A realidade política já não passa de
ser realidade económica. É preciso ser muito ingénuo, ou muito fingido para não
saber que uma coisa é a realidade que acontece entre as surdas paredes dos
gabinetes e outra, diferente, é o espectáculo que essa realidade política dos
gabinetes monta sobre si mesma perante as câmaras televisivas. A primeira
realidade é a verdadeira (passe a redundância). A segunda é a tal mentira que
como toda a boa mentira também contém alguma verdade – ou a boa mentira que
repetida cinquenta vezes (toda a gente o sabe, embora não pareça) passa a ser a
mais evangélica das verdades.
Não. Durante muitos mais anos não
poderá haver em Portugal mais vida para além dos défices e dos orçamentos, e
toda a nossa vida será gasta a puxar pela cabeça para dar a volta aos défices e
aos orçamentos e quanto à forma como iremos sobreviver apesar dos orçamentos e
dos défices.
E acho muita piada às correlações
históricas que por vezes se ensaiam no comentário político entre as medidas de
toda a ordem experimentadas em coligações governamentais do passado e as
hipóteses do presente; ou quanto a uma lógica que se pretenderia constante e
previsível nas atitudes, as do passado e as do presente. Como se fossemos neste
presente um país soberano e independente a viver uma vida normal para além do
défice e competente para cunhar moeda própria. Como se não nos tivessemos
tornado um pobre e tristíssimo e subalterno protectorado governado do
estrangeiro… e sem moeda própria. E a razão de fundo para que a maior parte da
vida que devia haver mas não há para além do défice e do orçamento reside aí.
A fantochada dos media procura mascarar a mudança de paradigma civilizacional que se está a operar perante a nossa impotente passividade... Que mundo, já só existe um arremedo de "vida". Tal como o país.
ResponderEliminar
ResponderEliminarHoje não concordo.
Quem não tem cão, caça com gato.
O excesso de idealismo que mistura no mesmo saco (de gatos) Passos Coelho e José Sócrates, nunca hesitará em rejeitar, da mesma forma veemente e estapafúrdia, um copo de água lisa (ainda que "d'el cano" e natural) e uma caneca de leite estragado, enquanto espera e desespera pela bebida "ideal". Sim, aquela que é feita de... Pois.
"We have feather"...