terça-feira, 9 de julho de 2013



      AFINAL NÃO HAVIA MESMO VIDA PARA ALÉM  
                                  DO DÉFICE

                                     

Em nenhum país economicamente avançado o sistema de mercado constrói casas que os pobres possam pagar.

                                                     JOHN KENNETH GALBRAITH


         Quem o disse... sim, quem disse que havia mais vida para além do défice, foi aquele nosso simpático presidente da República de falas redondas.


Aquele presidente que também recomendou ao pessoal que se deixasse de lamúrias – pois, porque havia mais vida para além do défice, ele lá sabia qual. Deixar de lamúrias? Obrigado!, digo eu, com as mordomias que ele tem (ainda tem) pagas pelo erário público fortemente deficitário, também eu não me punha com lamúrias…
Sim, eu sei, mais tarde, julgo que já na qualidade de ex-presidente, o senhor veio a “repudiar” a forma como vinha a ser citada a frase que proferira, certamente num dia de particular boa disposição e deleitosas recordações, que foi o dia 25 de Abril de 2003. Não foi? Foi, claro que foi. O dia. A frase? Sei lá. Sempre a ouvi citada assim, o défice. Mas ele  reclama, e diz que a frase foi: "há mais vida para além do orçamento."
Está bem. Mas se o orçamento é aquilo que é (e que quase sempre foi), e que a gente sabe, gerador de défices, vai dar no mesmo, e nem um truque semântico barato de advogado lhe muda a substância. Mas também, coitado do senhor, todos temos direito ao nosso momento de populismo. Ou de optimismo. E acrescenta ele que no momento em que disse o que disse a dívida nacional externa se cifrava em 50% e que hoje andará para cima dos 90% - só?, se calhar ainda mais para cima, 120%, 130%, enfim, são contas complicadas de um rosário que não é o meu, que bem gostaria de viver para além do défice (ou do orçamento) e não consigo.
O que ele terá querido dizer é que uma dívida de 50% em 2003 não era preocupante que bastasse para deixar de haver vida para além dela? Hum… não acho. Mas ele é que era o presidente. Lá sabia.
Pois. Mas se nessa altura havia assim tanta vida para além do orçamento, ou do défice, o caminho que se traçou desde então, e não nos preocupando nós com ele, deu como resultado termos chegado aqui. E aqui é um tempo em que não há mesmo mais vida para além da dívida, ou do orçamento, ou do que um advogado de falas redondas lhe queira chamar.
(E diz o povo ter sido este presidente que, ao correr com o Santana Lopes por motivos de somenos comparados com os que hoje existem para correr com um 1º ministro, e afirmando-se como factor de optimismo e pensamento positivo numa sociedade lamurienta, deu o devido gás ao consulado socrático, o qual, como também diz algum povo, foi dizimando calmamente a vida que poderia haver para além do défice. Ou do orçamento.)
Haver mais vida para além do orçamento? Tanto optimismo pode ter vindo de uma mente informada, conhecedora das realidades e das profecias, quando chegada aos paroxismos do pessimismo. O pessimismo extremado, se saudável, pode ser o princípio do optimismo desbragado, irrealista, porque não resta alternativa à sobrevivência senão acreditando que é possível, e ainda que sabendo que as veredas da esperança são tortuosas.
Mas também, quem adivinhava ao que isto iria chegar?
Pode-se compreender tanto e tão radiante optimismo, mesmo de uma alta figura do Estado, quando se sabe que no Homem há a tendência insistente para a felicidade. Uma felicidade, um bem-estar medidos por objectos e signos, já se sabe, e porque  é  esse, também… essa intensificação do bem-estar… dizia Tocqueville, a tendência natural das sociedades democráticas.
Quem adivinhava ao que isto iria chegar?
E que vida para além da dívida, ou do orçamento, quando nos  caminhos dessa vida sentimos os passos de um obscuro coelho que viria a ser o homem errado no lugar errado, na hora, sabe-se lá, que podia ser a hora certa… sim, certa, mas para alguém de real gabarito e experiência de vida. 


Mas aquele era um homem sem biografia política que ultrapassasse a das rapaziadas da jota. Um homem que, nessas condições, era patente, vinha para cumprir sem brilho e sem iniciativa própria um serviço às oligarquias, e no justo momento do fim de festa de todos os optimismos endividados, e para, na conjuntura, tentar enriquecer ainda mais os que já eram muito ricos.
A tarefa podia ser a de desenvolver no terreno um conceito de crise. A crise enquanto motor de mudança – mudança de hábitos (vícios) nacionais. A crise como perturbação. A crise como categoria que suscita uma solução eventualmente drástica, brutal. A crise que seria a agudização da doença crónica e com tempo certo de eficácia. Porque a crise é a anterioridade da sua resolução. E no nosso caso a crise é a da economia capitalista, é a das ideias, é a das despesas públicas, chega a ser a das relações sociais, ou mesmo das inter-pessoais.

                                      

E a nossa crise remonta, di-lo Jorge Borges de Macedo, às disputas entre D. Sancho II e D. Afonso III, (Ih, onde isso já vai), Pois sim, uma crise crónica que alguns atribuem ao próprio carácter de ser português. 
Camilo Pessanha pode tê-lo entendido assim.

         Eu vi a luz em um país perdido.
         A minha alma é lânguida e inerme.
         Oh! Quem pudesse deslizar sem ruído!
         No chão sumir-se como faz um verme…

E é a realidade económica o sal da nossa vida de 2013.  A realidade económica que nos rouba o prazer da vida que poderia haver e não há para além de um défice. Ou de um orçamento.
Tinha chegado o tempo de confiar a um rapazola de mal enjorcada licença académica em qualquer das fáceis universidades que por aí há a missão simples de vender de vez a identidade nacional a quem pagasse as nossas estroinices orçamentais de Estado.
As “realidades espectrais” da economia determinam a vida, a nossa vida, a vida que poderia haver para além do orçamento, ou do défice. Regressamos ao estado animalesco por via do défice, do quantitativo, vendedores e compradores – de tudo, de dívida, de empresas, e também, e sobretudo, de consciências.
Intensificar o proteccionismo de Estado (já muito antes concedido, evidentemente) à banca e aos grandes interesses financeiros. Intensificar a estagnação dos salários – na realidade a diminuí-los substancialmente através medidas de precaridade, de impiedosos impostos e ameaça de abolição de horários. Promover o desemprego crónico. Fazer recuar vinte anos o nosso nível de vida. Fazer prosperar as instituições financeiras…
Um 1º ministro que nos apareceu nos caminhos da vida e do destino a dizer-nos sem o dizer que para a maioria de nós, e por muitos e maus anos, não haveria mais vida para além do défice que teríamos de solver. Nós, pessoal miúdo, sim.
Quem adivinharia ao que isto iria chegar?

                                                        



       
                                                           





Coelho com Portas, Portas com Coelho, Coelho porta com porta com Portas, portas batidas com estrondo por Portas na cara de Coelho, Coelho que não fecha as portas a Portas – sim, mas sem dúvida o team mais perfeito que se podia arranjar para a missão na hora do iminente naufrágio económico-financeiro: salvar a todo o custo os interesses das oligarquias.
E tudo o que tem sido visto na televisão de anacrónico, irregular ou vergonhoso, um ministro que se demite quando a água começa a ferver a sério para o lado dele; outro ministro que se demite irrevogavelmente!, logo a seguir, e que dois dias depois revoga a sua própria irrevogabilidade e volta atrás com a palavra no maior dos descaramentos, vencedor de mais uns lugares de governo para si e para os seus… tudo isso, enfim, que se não foi já esquecido estará para se esquecer (como é costume), tudo o que durou uns minutos distraídos de televisão e daqui a uns dias já não lembrará a ninguém, porque o facto que na democracia televisiva imediatamente se seguirá tem a finalidade única de fazer esquecer o facto que o precedeu e preparar o outro que virá já a seguir e que fará esquecer também esse.


É. Pensando no que se passou na vida política portuguesa das últimas semanas é que se percebe o quanto a política releva de actividade lúdica. A política é a ambrósia de uma agressividade sublimada, o jogo de roleta dos riscos calculados. O exercício seguro da pirueta. A sem-vergonha da mentirola que se traveste de razão de Estado. É o exercício retórico capaz de tudo justificar nos media – exercício retórico que até concede à mais alta figura do Estado a faculdade de dizer alegremente que há mais vida para além do défice (ou do orçamento que irá fazer aumentar o défice). A política é o gosto pelo capricho e pela probabilidade impune do arbitrário. Pode ser o inesgotável prazer de gozar com o pagode que encarneiradamente vota sempre que lhe mandam e em quem os media lhe sugerem. Assim como é o prazer infantil (lúdico) de fazer dos outros (um país inteiro) parvos.
Ah, sim, pois é, estamos a cair na sociedade da desagregação, o mercado. E o que produz o mercado quando entregue a si mesmo? Exclusão. Exclusão do que lhe não é imediatamente preciso.
Ao aproximar da tormenta dos incalculáveis e universais prejuízos, alguém tem de ficar incólume. As elites do dinheiro têm por obrigação tornar-se mais poderosas do que já eram, embrulhadas nesta democracia de opinião, incansável pau mandado dos poderes oligárquicos.
Há mais vida para além do défice? Que vida? Vida com as medidas liberais a regularem contabilística e fiscalmente o desejo humano?
Vida para além do défice só se for vida de casino. E com cartas viciadas, é claro. E com regras falseadas. E casino idealmente frequentado por banqueiros e accionistas de grandes empresas multinacionais, ou por quem tenha poderes de transaccionar ilegalmente nos jardins do Éden fiscais, de lavar dinheiros súcios, de operar especulações monetárias.
A realidade política já não passa de ser realidade económica. É preciso ser muito ingénuo, ou muito fingido para não saber que uma coisa é a realidade que acontece entre as surdas paredes dos gabinetes e outra, diferente, é o espectáculo que essa realidade política dos gabinetes monta sobre si mesma perante as câmaras televisivas. A primeira realidade é a verdadeira (passe a redundância). A segunda é a tal mentira que como toda a boa mentira também contém alguma verdade – ou a boa mentira que repetida cinquenta vezes (toda a gente o sabe, embora não pareça) passa a ser a mais evangélica das verdades.
Não. Durante muitos mais anos não poderá haver em Portugal mais vida para além dos défices e dos orçamentos, e toda a nossa vida será gasta a puxar pela cabeça para dar a volta aos défices e aos orçamentos e quanto à forma como iremos sobreviver apesar dos orçamentos e dos défices.



E acho muita piada às correlações históricas que por vezes se ensaiam no comentário político entre as medidas de toda a ordem experimentadas em coligações governamentais do passado e as hipóteses do presente; ou quanto a uma lógica que se pretenderia constante e previsível nas atitudes, as do passado e as do presente. Como se fossemos neste presente um país soberano e independente a viver uma vida normal para além do défice e competente para cunhar moeda própria. Como se não nos tivessemos tornado um pobre e tristíssimo e subalterno protectorado governado do estrangeiro… e sem moeda própria. E a razão de fundo para que a maior parte da vida que devia haver mas não há para além do défice e do orçamento reside aí. 
                       
                         

2 comentários:

  1. A fantochada dos media procura mascarar a mudança de paradigma civilizacional que se está a operar perante a nossa impotente passividade... Que mundo, já só existe um arremedo de "vida". Tal como o país.

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  2. Hoje não concordo.


    Quem não tem cão, caça com gato.


    O excesso de idealismo que mistura no mesmo saco (de gatos) Passos Coelho e José Sócrates, nunca hesitará em rejeitar, da mesma forma veemente e estapafúrdia, um copo de água lisa (ainda que "d'el cano" e natural) e uma caneca de leite estragado, enquanto espera e desespera pela bebida "ideal". Sim, aquela que é feita de... Pois.


    "We have feather"...

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