Desde novo que me habituei a não dar esmolas.
Porquê? Ora porquê… influências, leituras,
companhias…
Dar esmolas, julgava pensar eu, em novo
(influenciado por teorias, claro está), era para velhos piedosos e tementes a
Deus. Eu não era velho. Não era muito piedoso. E tinha perdido o medo de Deus.
Dar esmolas era para hipócritas caritativos. Era
para a dona Gertrudes Tomás e a sua beneficente árvore de natal do cinema S.
Jorge. Era para os conservadores ideológicos – o mundo era mau e não havia
maneira de o mudar. Era para os reaccionários – sempre haveria ricos e pobres
por mais voltas que se dessem. Era para os fascistas – o homem era mau como as
cobras e não se podia transformar em bom. Era para os serventuários do capital
através da religião, da padralhada, esses, sim, que pela esmola limpavam a
folha negra da má consciência que tinham com respeito aos males do mundo e à
exploração do homem pelo homem.
(Já podem ver os caminhos por onde eu andava e as
más companhias de que me rodeava – pessoais, presenciais e literárias.)
Um cidadão consciente, de esquerda, não dava
esmolas. E acabou-se. Nem se discutia, tão óbvio era. Um cidadão consciente, de
esquerda, acreditava na já muito próxima revolução social e no cântico dos
amanhãs. Nasceria o dia em que deixaria de haver ricos e pobres e em que todos
teriam o suficiente para viver dignamente e toda a caridade fosse
desnecessária.
E enquanto esse dia não chegava…
Enquanto esse dia não chegava era bom que se fossem
criando as condições para ele chegar. Era bom que se fosse trabalhando o
momento histórico mais propício para ele chegar.
Enquanto esse dia não chegava também não seria
obrigação do cidadão comum acorrer aos males sociais. Ao Estado o encargo de
minorar o sofrimento dos desvalidos.
Já terá nascido esse dia? Há quarenta anos
palpitou-se que sim. Hoje? Hoje palpita-se que esse dia sim, despontou vai para
quarenta anos e que passou a correr. Esse dia palpitou-se que tinha nascido há
quarenta anos e a caminho do socialismo. Mas pode ter sido um erro de percepção
e ele pode nem ter nascido, ou pode ter sido um nado-morto (como um humano). Ou
se nasceu, a caminho do socialismo, esse caminho bifurcou-se, criou dúvidas e
dissidências, e ficámos todos parados na encruzilhada dos caminhos. À espera…
de Godot…
Ou talvez nem sequer tenha nascido, o dia. Nem há quarenta anos
nem nunca. Mas ainda se ficou a espera de que nascesse. Ainda alguém está à
espera de que ele nasça, ensolarado…
Enquanto esse dia não nascesse, pensava eu (como
muitos outros), a missão de um cidadão consciente e cheio de leituras proibidas
consistia em ajudar a criar as condições para que esse tal dia pudesse nascer.
E sendo assim, quantos mais andassem a pedir esmola melhor para as condições (objectivas, subjectivas),
mais depressa esse dia nasceria, precipitada a sua nascença pela revolta dos
pobres de pedir.
Por acaso, por essa altura (estamos nos começos dos
anos 60) trabalhava eu numa firma de uma zona operária, o Poço do Bispo, que
despedia fluentemente pessoal indiferenciado, na maioria morador nas barracas
do chamado bairro chinês, que ficava por ali. Essa firma tinha a interessante
particularidade de ser uma pequena empresa societária de outra muito maior, e gerida
por jovens (trinta e tantos anos) de esquerda - um dos quais viria mesmo a ser
filado pela PIDE no escritório, na frente do pessoal.
E calhou um dia, num almoço, perguntar eu, asno
ideológico chapado apesar das leituras e das companhias, porque é que pessoas ligadas ao Partido (só
havia um, ao tempo, e clandestino), lídimas defensoras da classe operária,
cavaleiros imaculados das justiças sociais, gente esclarecida, etc., etc.,
cometia a vileza de pôr na rua, sem ponderoso e aparente motivo, desgraçados
cujo trabalho era carregar e descarregar pipas de vinho, cuja vida decorria em
condições de pobreza, e quando a maior parte deles, ao ser despedido e sem
idade para arranjar facilmente outro trabalho, estava condenada à miséria mais
negra.
Os meus interlocutores, quadros da pequena empresa,
clandestinos militantes do Partido, entreolharam-se, sorriram de entendimentos,
deixaram-me com a cara de quem perdeu uma ocasião para ficar calado, ou de quem
acabou de fazer uma figura triste.
Mas explicaram-me, e muito sucintamente (a minha
cultura de esquerda não lhes parecia grande espingarda), que não faziam mais do
que interpretar a linha do Partido. Se faziam o que faziam, despedir pessoal,
era porque o momento histórico assim o impunha. O momento histórico recomendava
a criação de condições para uma mudança radical do estado das coisas. O regime
salazarista estava a dar as últimas. A hora era de promover os
descontentamentos nas classes mais desfavorecidas da população e assim apressar
os desfechos eventualmente revolucionários.
Sim, devo ter balbuciado, mas entretanto…
entretanto era assim mesmo. O momento histórico determinava os procedimentos. A
miséria. A fome. A criação das condições objectivas e subjectivas. Terá que
reler com atenção o seu Marx, o seu Lenine, homem! Quanto pior melhor para o
progresso das ideias revolucionárias. O que está na ordem do dia é a
consciencialização de classe das massas trabalhadoras, por natureza acomodadas
nem que seja à miséria e à fome, e à espera de serem despertadas para a grande
causa dos oprimidos. A hora está a chegar.
E viu-se o que foi, e a que horas chegou a hora. Se
é que chegou.
Tanto me palpita que ela já chegou e já se foi,
como me palpita que ela ainda não chegou; como me palpita que essa hora ainda
chegará; como me palpita que essa hora nunca chegará.
Chegado ou não o dia, e a hora, a força da
realidade diz-me que a instituição da esmola de rua não se extinguiu – antes se
refinou noutras modalidades mais sofisticadas de esmola.
Ficámos parados na encruzilhada dos caminhos, do
socialismo, do parlamentarismo, da democracia, do liberalismo… ó chefe
oriente-me aí um euro para comer uma sopa… olhe, ó senhor, compre-me ali um
bolo de arroz… olhe, faz favor, podia-me dar cinquenta cêntimos para telefonar
à minha irmã… ó chefe, faltam-me só vinte cêntimos para apanhar aquele
autocarro…
Sem falar dos romenos e das romenas com filhos
falsos nos braços. Sem falar nos drogados evidentes a pedir para a dose – a sua
respeitável forma de subsistência. Sem contar com os estropiados pelo chão a
estender para nós uma latinha.
Em que momento histórico estaremos?
Se me incomodam os espectáculos de miséria? Claro
que incomodam. Se me impressiona a pobreza extrema? Claro que impressiona. Se
me toca a penúria escondida? Evidentemente que toca. Mas a minha arcaica
consciência de esquerda permanece, e com ela a resistência, que se tornou
instintiva, e a renitência em alimentar hábitos de pedincha, os profissionais
da esmola que podem tirar umas boas centenas de euros por dia sem trabalhar
(contam-me casos) e com bom corpo para isso – pois, alguns bom corpo para
trabalhar podem ter, podem é não ter onde aplicar esse corpo…
E surpreendo-me a não dar esmola, a não
corresponder aos pedidos de cigarros que tornam proibitivo o acto de fumar até
no meio da rua, pedidos que vão aumentando na razão do aumento brutal dos
impostos sobre os cigarros – a vida não está fácil para um fumador inveterado…
Não sei se no meu inconsciente dei, fui dando,
algumas voltas acerca do tema do momento histórico.
Enquanto os jovens turcos de esquerda da gestão de pequenas
empresas de 1963 podiam despedir a torto e a direito a fim de criar condições
para a revolta das massas populares, eu,
em 2013, não dou esmola nem forneço cigarros a fim de criar condições… para
quê? Enquanto os jovens e impiedosos gestores de esquerda de 1963 tinham as
cartilhas do Partido para interpretar, e para os orientarem quanto à
identificação dos momentos históricos e das tarefas correspondentes, eu, sem
partido nem cartilhas, corro riscos tremendos de me desorientar na História e
de nunca chegar a saber ao certo em que momento estou e que tarefas o momento
me impõe enquanto cidadão consciente. De esquerda? Sei lá. A idade dá cabo de
tanta coisa…
E vai daí,
até me dá para pensar já não no momento histórico da minha classe social, da
minha consciência de esquerda ou de direita. Dá-me para pensar no momento
histórico que está na cabeça dos credores internacionais de Portugal. Vai-se a
ver e a tarefa deles no momento histórico é a de apertar até rebentar com os
periféricos do sul da Europa, fazer-lhes a vida financeira o mais negra que
puderem, desorientá-los de tal modo que lhes crie um sentimento de revolta
contra a ordem do mundo. E depois? E depois, nada. É isso.
Temo que possa acontecer com o Portugal
estrangulado pela dívida soberana o que acontecia aos pobres trabalhadores
braçais do Poço do Bispo de 1963, que se devem ter conformado com o seu
destino, que não se transformaram em revolucionários, que por terem sido
condenados ao desemprego e à miséria sonharam ainda com mais força com o
impossível, isto é, ascenderem à condição de burgueses. E que foram baixando de
estatuto profissional aceitando qualquer trabalho que lhes dessem mesmo que
escandalosamente pago, e só para proverem ao sustento da família. E que
começaram (ou continuaram) a beber até à cirrose fatal. E que de desespero em
desespero podem ter matado a mulher e os filhos e terem-se matado a eles
próprios logo a seguir…
Isso enquanto, pela dita usura do tempo, as tarefas
prosseguidas pelos gestores de esquerda de 1963 iam deixando pelo caminho as
colorações avermelhadas da hipótese de revolução social e ganhando as
tonalidades cinza de um acto canalha.
Não sei se pelos trabalhos insanos e obscuros do meu
inconsciente, e sempre com a questão do momento histórico em presença, entrei
há tempos numa fase de oferecer cigarros a quem mos pedisse na rua. Um cigarro
é um cigarro, um pequeno vício que mata, e que por isso mesmo acrescenta valor
à vida enquanto a há. Um cigarro pode acrescentar algum sentido a um momento absurdamente
histórico de uma vida. Um cigarro é algo que não se deve negar nem ao criminoso
condenado ao patíbulo.
Sim, mas continua a repugnar-me o acto de dar esmola.
Confesso que não sei dar esmola. Quanto? Cinco
cêntimos? Dez cêntimos? Chega a ser ofensivo para quem recebe. Um euro? É uma
enormidade como esmola. Cinquenta cêntimos? Qual será a medida certa
considerando o momento histórico?
“Não podemos deixar que os nossos carrascos nos
criem maus costumes”, mais ou menos isto: disse (citando Simone de Beauvoir) a
presidenta da Assembleia da República, a luxuosa reformada aos 40 anos. Foi
ontem ou anteontem e vem mesmo a calhar para a conversa do momento histórico.
A presidenta reformada não sabe quem foi Simone de
Beauvoir? Não posso crer. Com certeza que sabe, porque, não sendo embora nenhuma
luminária intelectual, também não iria ter a infausta ideia de citar alguém que
no momento histórico não fosse politicamente correcto citar.
A presidenta conhece o momento histórico em que Simone
de Beauvoir escreveu a frase? Bom, isso é que já não sei. Se não conhece,
cometeu uma gaffe imperdoável para a
segunda figura do Estado só por querer armar ao fino intelectual e sair-lhe uma
bojarda das grossas. Se conhece, pior um pouco, como resulta óbvio para quem
conheça.
A presidenta conhece o actual momento histórico
português? Mal feito fora que não conhecesse (mas também já não se podem ter
certezas a esse respeito, é verdade). Mal feito fora que não soubesse que uma
das realidades que marcam o presente português é a férrea animosidade das
camadas populares (e trabalhadoras) contra a classe política representada pelos
seus deputados à Assembleia da República e respectivos, e insultuosos,
privilégios.
Ora a presidenta reformada de luxo com 40 anos
profere a frase da Beauvoir quando o público das galerias da Assembleia se
manifesta, larga balões e atira cartões amarelos e vermelhos para as bancadas
gritando “demissão!, demissão!”.
Ora o momento histórico em que Simone de Beauvoir
escreve a tirada era o da ocupação nazi da França e consequentes iniquidades.
Logo, os carrascos a que a Beauvoir se refere só podiam ser as tropas nazis.
Logo… a segunda figura do Estado português, citando
a frase alto e bom som, faz a analogia espúria entre os manifestantes
(funcionários públicos na sua maioria) e o ocupante nazi da França de 1940.
Sim, chama nazis aos representantes do povo português que severamente criticam
as incompetências, vigarices e privilégios de uma classe política autista e
divorciada das aspirações populares.
É demais. Não?
Já não bastava a classe política viver à grande e a
exibir incompetências à nossa custa como também se dá ao desplante de nos
insultar?
Sabendo a presidenta do contexto em que Simone de
Beauvoir escreveu aquilo… das duas, uma: ou é mesmo para desacatar o
eleitorado; ou não entende nada dos tais momentos históricos. E depois grita
explicações aos jornalistas que a interpelam, explicações que alguma coisa
relevam do atraso mental, ou do vício pacóvio que os nossos lamentáveis
políticos têm ao fazerem de nós ainda mais estúpidos do que já mostramos ser ao
elegê-los.
Mas o caso passa impune – quem poderia repreender a
presidenta da A.R.?, só o P.R., se por um bambúrrio da sorte soubesse quem foi
Simone de Beauvoir, nome que nem deve constar dos manuais de Economia e
Finanças.
O caso passa impune e imune às críticas jornalísticas. Que eu tenha
visto, só Rodrigo Guedes de Carvalho, no noticiário da SIC, apontou de cenho
enrugado a gravidade da gaffe. Que eu
tenha notado, mais nenhum dos jovens e acerados comentadores do nosso jornalismo
televisivo notou o despautério. Não me resta a menor dúvida: ignoram
completamente o momento histórico a que a frase da Beauvoir se aplicava; assim
como, baralhados nas intrigas da nossa baixa
política, ignoram sequer quem possa ter sido essa tal senhora Simone de Beauvoir
– que também é capaz de não comparecer nos manuais de jornalismo em vigor nas
universidades.
Bom, tanta conversa, mas do que eu queria mesmo
falar era das elegíacas propostas de solução política para a crise que o
momento histórico segredou ao presidente da República, o ínclito e inimputável
político que com um simples discurso contamina a própria reputação de infalível
e homem sem sombra de dúvidas e cria uma crise em cima da anterior. E também
ele, afinal, faz cair a Bolsa. E também ele, afinal, faz aumentar as taxas de
juro.
O momento
histórico.
Mas ainda haverá momentos históricos?
Ou até isso já acabou, na medida em que deixou de
condicionar comportamentos ideológicos e já tudo vale em qualquer momento, e
nenhum momento é ou deixa de ser histórico porque a própria História pode hoje
ou amanhã deixar de ter validade histórica - quer dizer, deixar de fazer
sentido?
E, em suma, o que é que uma coisa tem a ver com a
outra?
E que coisa?
E que outra?
( Pai. Não lhes perdoes que eles sabem o que fazem - J. Saramago - in "Ano da morte de Ricardo Reis. )
ResponderEliminarNão fora a Pide, a guerra, os analfabrutos, a cinzenta vida de miséria para tantos...
ResponderEliminarquase teríamos saudade dos 50/60. Que "esperava" e "preparava". Visto agora as esperanças nos são assassinadas, todos os dias.
Vamos "para as Desertas"? que os camelos descobriram a água...
Lamentável. Não chegaremos a ver o julgamento da História.
ResponderEliminarIncontornável.
Obrigado...