MÚSICA OU SENTIMENTOS?
O
axioma segundo o qual o que é de facto belo nunca perde a sua fascinação –
apesar do desgaste do tempo – não se aplica à música. Como a própria natureza,
a música tem o seu outono, no qual o apodrecimento das flores dá lugar ao
nascimento de outras. Toda a composição musical – como toda a obra humana –
contém em si elementos perecíveis.
Estas belas palavras são do famoso
crítico musical Eduard Hanslick. E não será irrisório relacionar isto, no plano
de alguma irracionalidade e exotismo – e sobretudo hibridismo –, com a forma ópera, com a contradição formal
que é a ópera.
É de chamar à charla a personalidade de
Richard Wagner. Além de tudo o mais, porque pode ter sido ele a individualidade
que no seu tempo mais mexeu com a História da Música e com as questões de moral
de vário tipo, pessoal, social, artístico, financeiro - e até político - a ela ligadas. Pode mesmo
considerar-se Wagner como a figura menos moral – para muitos até a mais imoral
– dessa mesma História da Música. E mesmo por ser personalidade pouco moral, a
questão de moral ressalta sempre que se fala de Richard Wagner. E assim, Wagner
é uma instância moral da música - a contrariu sensu, quanto mais não
seja.
O movimento romântico na primeira metade
da vida musical de Oitocentos foi muito variegado em conceitos e em atitudes. E
em obras primas também, como se sabe. Considerável unanimidade persistia sobre as questões
estético-filosóficas de fundo, não obstante os vestígios de uma tendência para
entender o fenómeno musical em termos mais formais, mais intelectualizados,
presentes em Schopenhauer ou em Hegel. Mas a obra e o pensamento de Wagner
poder-se-ão entender como o cume desse movimento romântico, apesar da época
historicamente tardia.
São perceptíveis em Wagner os resíduos de
um exacerbamento estético, ou uma espécie de mórbido cansaço, a prenunciar o
esgotamento das vias ainda possíveis de percorrer. As reacções extremadas
contra o romantismo, digo, contra o uso da música como expressão de sentimentos
e emoções estavam para se fazer sentir.
No dia 3 de Novembro de 1862, Wagner
tinha em cima da mesa, prontinha a servir, uma terceira versão do libreto de Mestres
Cantores de Nuremberg.
O argumento da ópera como é sabido é um concurso de
canto aprazado para o dia de S. João. Para a figura do marcador dos erros
técnico-estilísticos dos concorrentes, Wagner escolhera um nome: Veit Hanslick
– grosseira identificação da personagem com a pessoa real do seu figadal
inimigo estético-ideológico, chamado Eduard Hanslick, teórico vienense de quem atrás
citei um conceito.
Alguém terá segredado a Wagner a forte
impertinência, o exagero, a deselegância extrema – os tempos eram outros, não
é? Bom, o certo é que quando Wagner,
justamente em Viena, nesse dia 23 de Novembro de 1862, envia convites para a
sessão de leitura da última versão literária do projecto dos Mestres
Cantores, já o nome do escrivão de
Nuremberga e marcador dos erros do concurso não é Veit Hanslick, é Sixtus
Beckmesser, um nome extraído da realidade histórica da época e da cidade onde
decorre a acção.
Mas Eduard Hanslick figurava no rol dos
convidados especiais para a sessão de leitura.
E, claro, no decorrer da leitura,
Henslick, que não era nenhum tótó, apercebeu-se da intenção de Wagner em o
desfeitear e abandonou ostensivamente a sala. Ofendidíssimo, como se calcula.
Todavia, e ironicamente, como acontece
muito na vida, essa humilhação haveria de concorrer fortemente para a
imortalização do seu nome e do seu prestígio de ensaísta musical, através da
criação da personagem do marcador Beckmesser, um ridículo homenzinho de poucos
escrúpulos e moral muito duvidosa.
Beckmesser fala, preparando-se para
apontar os erros de estilo do jovem cavaleiro Walther von Stolzing, prestando a
sua prova perante os mestres cantores de Nuremberga reunidos em plenário:
- O
meu dever é hoje ainda mais ingrato. Sabei, cavaleiro, sou Sixtus Beckmesser, o
marcador. Ser-vos-á concedida uma margem de 7 erros, os quais serão apontados
por mim a giz neste quadro e ocultando-me eu para não o perturbar. Se
cometerdes mais do que 7 erros sereis suspenso.
Em Beckmesser, Wagner realizou a
impiedosa caricatura da eterna figura do crítico e do prazer sádico que supostamente
esse crítico sentirá em complicar a vida
dos criativos, ou até de humilhar os que possuam um dom que ele não tem, isso, esse,
o da criatividade.
Costuma-se dizer que é pela actividade
crítica que os desprovidos de talento podem ajustar contas com o destino. Não
serão todos assim, também se costuma dizer. Mas alguns são. Invejosos.
Impotentes. Frustrados. Wagner pensava assim.
E Wagner faz do Beckmesser um homem
esquivo, vaidoso, obviamente antipático, estreito de vistas. Também é um
solteirão, algo que naquele tempo teria conotações menos lisonjeiras.
Beckmesser era de facto um feroz
burocrata normativo, apegado aos regulamentos, refractário a tudo quanto o seu
entendimento não abarcasse, inimigo da inovação.
Quando o riquíssimo mercador Veit Pogner
põe a concurso no dia de S. João a mão de sua filha Eva, Beckmesser também quer
habilitar-se. Menos, claro, por amor da jovem do que por amor à riqueza do
ourives Veit Pogner, o pai dela. Para prosseguir os seus intentos, Beckmesser
não hesitará em recorrer à trapaça, fazendo
até mão baixa da propriedade artística de outro. Para Wagner, Beckmesser era o
oráculo da moral artística, o ditador das leis da gloriosa arte alemã, tipo de
compleição moral e psicológica que Wagner apercebia no tal ensaísta Eduard
Hanslick. Isso à mistura com o toque mais sinistro que derivava da aversão de
Wagner pelos judeus.
Agora é outra vez Hanslick a falar: A
Melodia, inesgotável e inesgotada, domina como forma básica da beleza musical;
a Harmonia oferece sempre novos recursos, infinitas possibilidades. Mas é o
Ritmo que anima ambas, o Ritmo, artéria da vida musical, que lhes proporciona
encanto e colorido de múltiplos timbres.
Mas Hanslick talvez não fosse a melhor
encarnação da figura que Wagner procurava estigmatizar.
Hanslick, além dos defeitos que pudesse
ter, era um crítico competente. Talvez por isso metesse algum medo a Wagner.
Professor universitário, ensaísta, dominando teoricamente as problemáticas
musicais, não era seguramente mais um literato que se entretinha em retóricas
elaboradas do exterior da própria música. Usava linguagem técnica, para
começar, e a visão dele pendia mais para o científico do que para o literário.
Entre as obras de Hanslick, a mais famosa, a que ainda hoje mais sobressai na
explanação de certos pontos de vista, intitulou-se O Belo em Música.
Dizia-se que Arte era forma e não
expressão. O valor dela centrava-se nas relações formais intrínsecas a uma dada
obra, não sendo os conteúdos sentimentais e emotivos de chamar a juízo sobre a
peça unicamente baseada na forma. A cada arte competiria procurar apenas os
elementos formais que lhe eram próprios, e fora com abstracções do género
“patético”, “gracioso”, “solene”, designações excessivamente morais que não
contemplavam a especificidade de uma forma artística.
Mas há ou não uma beleza que seja
específica da música?
Isto perguntava Hanslick a si mesmo. E
daí partia para a especulação teórica que dava o título à obra, O Belo em
Música.
Hanslick afrontava o movimento romântico, que no panorama geral
da época ainda parecia com pernas para andar. Movimento romântico esse que
aspirava ao ideal da unificação de todas as artes numa totalidade estética e
expressiva, cavalo de batalha do mestre de Bayreuth.
Mas Hanslick não via as coisas assim.
Haveria uma beleza atávica à própria
música, sim senhor, mas que não se compadecia com identificações e conceitos de
beleza que eram timbre de outras artes. A estética de uma arte seria sempre
distinta da estética de outra arte, quanto mais não fosse porque o material de
cada uma delas diferia do material da outra. E aqui Hanslick também diferia do
pensamento romântico de Schumann, porque Schumann entendia ser apenas o
material, e só o material, de cada arte o elemento divergente, e que a estética
de uma arte poderia sempre identificar-se com a estética de outra.
A técnica musical não seria um meio. Como a técnica própria de
cada arte não o seria. No caso da música, a técnica seria já a própria música.
O conceito romantizado da música
combatia-o Hanslick. Identificava-o com diletantismo e incompetência. O que era
desejável era uma objectividade científica na visão dos problemas musicais, uma
atitude analítica, séria. Um bocado chato, este Hanslick, convenhamos.
A procura do Belo se não quer
tornar-se ilusória, deve aproximar-se do método das ciências naturais. E uma
vontade de conhecimento o mais possível objectivo das coisas que no nosso tempo
tanto agita todos os campos do saber, deve também, necessariamente, contemplar
a procura do Belo.
Não é que se pretendesse eximir a música
à relação com os sentimentos humanos, à capacidade de suscitar emoções. O que
restaria saber era em que consistiriam, para Hanslick, essas emoções e esses
sentimentos.
Sentimentos e emoções em música eram para
Hanslick efeitos secundários. Nada teriam que ver com o valor artístico.
Nenhuma arte – nem a música! – seria caracterizável pelos efeitos que exercia
sobre os sentimentos humanos. A instância estética primordial da música
enquanto arte era a fantasia, não o sentimento.
Intelecto e sentimento: antítese
belamente romântica que Hanslick pretendia ultrapassar. Em música, uma
contemplação do Belo era uma contemplação do intelecto.
Pobre Hanslick, que deve ter ficado na
História como ele mesmo temia, quer dizer, mais por Wagner lhe ter dado a honra
de o ridicularizar do que pelo real valor intelectual da sua obra ensaística. A
própria História, já se sabe, tem as suas imoralidades.
Mas não se fique a pensar que Hanslick
não tinha admirado Wagner. Tinha-lhe admirado o Tannhäuser, por exemplo.
E em 1876 ouviria uma versão da Tetralogia e concluiria que era tudo ilusão: o
diálogo continuado pertencia à esfera do drama; da ópera era próprio apenas a
melodia cantada.
A questão de moral intelectual que
separava Hanslick de Wagner prendia-se com a tradição, com a convicção própria
de que, em música, o conteúdo seria determinado pela forma. O que levaria
Hanslick à barricada de Brahms e dos outros, muitos, defensores de uma música,
por assim dizer, absoluta, ou pura, contra um Wagner, contra um Lizst, contra
qualquer um dos campeões da música programática.
Hanslick a falar: já se demonstrou que
muitos dos fragmentos do Messias, tão gabados pela sua expressão
piedosa, foram aproveitados a partir de alguns duos de Handel de expressão
mundana, para não dizer erótica, compostos para a princesa Carolina de
Hannover. E eu insisto em que as ideias expressas por um compositor são antes
de mais, e sobretudo, puramente musicais. E essa música poderá incitar os
processos psíquicos, mas nunca será senão uma particularidade do sentimento,
não o sentimento em si mesmo.
Sim, a ária de Gluck J’ai perdu mon
Euridyce, ou Che Farò senz’Euridice, já servira de suporte a textos
literários de sentido oposto.
Para Hanslick, a música propriamente dita
era a música instrumental. Ópera era hibridismo formal – como queria o Dr.
Samuel Johnson. Ópera era fruto de um compromisso, porque só com muito esforço
a música se articularia com outras artes. Em música tudo seria forma. A música seria o objectivo de si
mesma, assemântica, inconvertível em linguagem normal.
As leis da música, para Hanslick, não
seriam leis naturais; seriam somente leis musicais. O próprio ritmo musical
seria bem diferente dos ritmos presentes na natureza.
A grande luta era contra uma estética do
sentimento.
O efeito emotivo da música sobre o
ouvinte tem natureza patológica. Não é um dado artístico. É apenas agradável.
Não é território do Belo.
Os trabalhos de Hanslick, creio bem,
abririam caminho à consideração da música como ciência e provavelmente lançaram
os fundamentos da ciência musical ensinada nas faculdades, a moderna
musicologia…
Moderna musicologia que com a sua praga de críticos se abate
sobre os pindéricos romântico-emotivos e despreocupados
auditores, conseguindo, ou quase conseguindo, tirar-lhes todo o prazer da
audição de uma peça de música, porque são os chatos e eminentes musicólogos e
críticos os donos das tábuas da lei da música, esses que nos hão-de dizer o que
está bem feito em música, e do que nós havemos de gostar; são eles que nos vão
ensinar o lugar que a música deverá ou não ocupar na nossa vida.
Estarei a exagerar. Talvez. Estou a
exagerar, porque quem gosta mesmo sincera e desinteressadamente de música se
está nas tintas para os doutores da lei. Mas, por exemplo, cá na santa terrinha,
por cada doutor musicólogo que sai encartado da universidade, quantos músicos,
executantes excelentemente dotados saem dos nossos conservatórios – se é que
sai algum?
Pois, acho que sim, embora possa não vir
de momento ao caso: a vida musical portuguesa, se assim se pode chamar,
precisaria bem mais de brilhantes talentos criativos ou interpretativos do que
de pretensos enteados de Hanslick ou de Beckmesser, que tudo sabem, nada criam,
tudo ingénua e perversamente nos ensinam
até ao ponto de nos fazer pensar tanto que percamos o gosto pela música,
amanuenses doutores analistas de partituras, ou teóricos catedráticos que já nem têm nada para
descobrir ou inventar, porque, em teoria, o essencial já foi descoberto, dito e
redito muito antes deles.
Recentemente, ou seja, vai para uns vinte
anos, digamos, correu pelos palcos de ópera um movimento de reabilitação da
figura de Beckmesser, com encenações que lhe retiravam a carga clownesca e
ridícula. Reabilitação de Beckmesser que pode ter sido uma recuperação de Hanslick e dos valores
científico-musicais mais correctos do que os sentimentos que ele representou.
Recuperação justa, vamos lá.
Hanslick tinha o seu talento e a sua
razão. Era um homem de considerável poder intelectual. E Wagner foi imoral com
ele. Foi injusto e cruel. Exagerou. E Hanslick tinha razão, sim, mas… sejamos
moderados e correctos pequenos burgueses musicais, a razão de Hanslick não
passava de uma razão teórica, retórica, se se quiser. Nem tanto ao mar nem
tanto à terra..
Mas cá estou eu com o meu reaccionarismo:
a memória humana, esteja ou não cheia de sentimentos, retém mais duradouramente a doentia impressão musical
associada aos sentimentos do que a cintilância de uma brilhante análise
cientifico-filosófica. E isso quer dizer alguma coisa, não?
Muito Obrigada por compartilhar esta bela dissertação .. Adorei Abraços Lizete Souza Passos
ResponderEliminarEu também preferia que saíssem mais executantes excelentes dos conservatórios, e teria muita satisfação se o ensino da prática musical fosse na escola a par com o ensino da língua ou da matemática.
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ResponderEliminarExcelente!
Saber não pode nem deve ser confundido com talento. Ambos são respeitáveis e nobres, mas ambos perdem quando confundidos.
Sim, claro que o Saber deve exprimir-se, na sua forma mais sublime, no reconhecimento do Talento, tal como o Talento puro deve ignorar, de uma forma genuína e desinteressada, o veredicto posterior do Saber.
Pena que não se dê mais importância à Filosofia nos currículos escolares e ao prazer da Música nos tempos de lazer em Portugal.
Quantos teóricos da Música veneram os consagrados, mas são incapazes de reconhecer o génio, por vezes debaixo dos seus pés, e quantos músicos não soçobram, carregados de talento, ao espartilho e aos ditames bacocos do academismo...
E Parabéns, estimado Joel Costa, por nos dar ocasião para reflectirmos sobre estes temas.