quinta-feira, 25 de julho de 2013

    MÚSICA OU SENTIMENTOS?


O axioma segundo o qual o que é de facto belo nunca perde a sua fascinação – apesar do desgaste do tempo – não se aplica à música. Como a própria natureza, a música tem o seu outono, no qual o apodrecimento das flores dá lugar ao nascimento de outras. Toda a composição musical – como toda a obra humana – contém em si elementos perecíveis.


Estas belas palavras são do famoso crítico musical Eduard Hanslick. E não será irrisório relacionar isto, no plano de alguma irracionalidade e exotismo – e sobretudo hibridismo –,  com a forma ópera, com a contradição formal que é a ópera.


É de chamar à charla a personalidade de Richard Wagner. Além de tudo o mais, porque pode ter sido ele a individualidade que no seu tempo mais mexeu com a História da Música e com as questões de moral de vário tipo, pessoal, social, artístico, financeiro -  e até político - a ela ligadas. Pode mesmo considerar-se Wagner como a figura menos moral – para muitos até a mais imoral – dessa mesma História da Música. E mesmo por ser personalidade pouco moral, a questão de moral ressalta sempre que se fala de Richard Wagner. E assim, Wagner é uma instância moral da música - a contrariu sensu, quanto mais não seja.
O movimento romântico na primeira metade da vida musical de Oitocentos foi muito variegado em conceitos e em atitudes. E em obras primas também, como se sabe. Considerável  unanimidade persistia sobre as questões estético-filosóficas de fundo, não obstante os vestígios de uma tendência para entender o fenómeno musical em termos mais formais, mais intelectualizados, presentes em Schopenhauer ou em Hegel. Mas a obra e o pensamento de Wagner poder-se-ão entender como o cume desse movimento romântico, apesar da época historicamente tardia.
São perceptíveis em Wagner os resíduos de um exacerbamento estético, ou uma espécie de mórbido cansaço, a prenunciar o esgotamento das vias ainda possíveis de percorrer. As reacções extremadas contra o romantismo, digo, contra o uso da música como expressão de sentimentos e emoções estavam para se fazer sentir.
No dia 3 de Novembro de 1862, Wagner tinha em cima da mesa, prontinha a servir, uma terceira versão do libreto de Mestres Cantores de Nuremberg


O argumento da ópera como é sabido é um concurso de canto aprazado para o dia de S. João. Para a figura do marcador dos erros técnico-estilísticos dos concorrentes, Wagner escolhera um nome: Veit Hanslick – grosseira identificação da personagem com a pessoa real do seu figadal inimigo estético-ideológico, chamado Eduard Hanslick, teórico vienense de quem atrás citei um conceito.
Alguém terá segredado a Wagner a forte impertinência, o exagero, a deselegância extrema – os tempos eram outros, não é? Bom, o certo é que  quando Wagner, justamente em Viena, nesse dia 23 de Novembro de 1862, envia convites para a sessão de leitura da última versão literária do projecto dos Mestres Cantores,  já o nome do escrivão de Nuremberga e marcador dos erros do concurso não é Veit Hanslick, é Sixtus Beckmesser, um nome extraído da realidade histórica da época e da cidade onde decorre a acção.


Mas Eduard Hanslick figurava no rol dos convidados especiais para a sessão de leitura.


E, claro, no decorrer da leitura, Henslick, que não era nenhum tótó, apercebeu-se da intenção de Wagner em o desfeitear e abandonou ostensivamente a sala. Ofendidíssimo, como se calcula.
Todavia, e ironicamente, como acontece muito na vida, essa humilhação haveria de concorrer fortemente para a imortalização do seu nome e do seu prestígio de ensaísta musical, através da criação da personagem do marcador Beckmesser, um ridículo homenzinho de poucos escrúpulos e moral muito duvidosa.

                                

Beckmesser fala, preparando-se para apontar os erros de estilo do jovem cavaleiro Walther von Stolzing, prestando a sua prova perante os mestres cantores de Nuremberga reunidos em plenário:  
- O meu dever é hoje ainda mais ingrato. Sabei, cavaleiro, sou Sixtus Beckmesser, o marcador. Ser-vos-á concedida uma margem de 7 erros, os quais serão apontados por mim a giz neste quadro e ocultando-me eu para não o perturbar. Se cometerdes mais do que 7 erros sereis suspenso.
Em Beckmesser, Wagner realizou a impiedosa caricatura da eterna figura do crítico e do prazer sádico que supostamente esse crítico sentirá em complicar a  vida dos criativos, ou até de humilhar os que possuam um dom que ele não tem, isso, esse, o da criatividade.
Costuma-se dizer que é pela actividade crítica que os desprovidos de talento podem ajustar contas com o destino. Não serão todos assim, também se costuma dizer. Mas alguns são. Invejosos. Impotentes. Frustrados. Wagner pensava assim.


E Wagner faz do Beckmesser um homem esquivo, vaidoso, obviamente antipático, estreito de vistas. Também é um solteirão, algo que naquele tempo teria conotações  menos lisonjeiras.


Beckmesser era de facto um feroz burocrata normativo, apegado aos regulamentos, refractário a tudo quanto o seu entendimento não abarcasse, inimigo da inovação.
Quando o riquíssimo mercador Veit Pogner põe a concurso no dia de S. João a mão de sua filha Eva, Beckmesser também quer habilitar-se. Menos, claro, por amor da jovem do que por amor à riqueza do ourives Veit Pogner, o pai dela. Para prosseguir os seus intentos, Beckmesser não hesitará em recorrer à trapaça,  fazendo até mão baixa da propriedade artística de outro. Para Wagner, Beckmesser era o oráculo da moral artística, o ditador das leis da gloriosa arte alemã, tipo de compleição moral e psicológica que Wagner apercebia no tal ensaísta Eduard Hanslick. Isso à mistura com o toque mais sinistro que derivava da aversão de Wagner pelos judeus.
Agora é outra vez Hanslick a falar: A Melodia, inesgotável e inesgotada, domina como forma básica da beleza musical; a Harmonia oferece sempre novos recursos, infinitas possibilidades. Mas é o Ritmo que anima ambas, o Ritmo, artéria da vida musical, que lhes proporciona encanto e colorido de múltiplos timbres.
Mas Hanslick talvez não fosse a melhor encarnação da figura que Wagner procurava estigmatizar.
Hanslick, além dos defeitos que pudesse ter, era um crítico competente. Talvez por isso metesse algum medo a Wagner. Professor universitário, ensaísta, dominando teoricamente as problemáticas musicais, não era seguramente mais um literato que se entretinha em retóricas elaboradas do exterior da própria música. Usava linguagem técnica, para começar, e a visão dele pendia mais para o científico do que para o literário. Entre as obras de Hanslick, a mais famosa, a que ainda hoje mais sobressai na explanação de certos pontos de vista, intitulou-se O Belo em Música.


Dizia-se que Arte era forma e não expressão. O valor dela centrava-se nas relações formais intrínsecas a uma dada obra, não sendo os conteúdos sentimentais e emotivos de chamar a juízo sobre a peça unicamente baseada na forma. A cada arte competiria procurar apenas os elementos formais que lhe eram próprios, e fora com abstracções do género “patético”, “gracioso”, “solene”, designações excessivamente morais que não contemplavam a especificidade de uma forma artística.


Mas há ou não uma beleza que seja específica da música?
Isto perguntava Hanslick a si mesmo. E daí partia para a especulação teórica que dava o título à obra, O Belo em Música.
Hanslick afrontava o movimento romântico, que no panorama geral da época ainda parecia com pernas para andar. Movimento romântico esse que aspirava ao ideal da unificação de todas as artes numa totalidade estética e expressiva, cavalo de batalha do mestre de Bayreuth.
Mas Hanslick não via as coisas assim.
Haveria uma beleza atávica à própria música, sim senhor, mas que não se compadecia com identificações e conceitos de beleza que eram timbre de outras artes. A estética de uma arte seria sempre distinta da estética de outra arte, quanto mais não fosse porque o material de cada uma delas diferia do material da outra. E aqui Hanslick também diferia do pensamento romântico de Schumann, porque Schumann entendia ser apenas o material, e só o material, de cada arte o elemento divergente, e que a estética de uma arte poderia sempre identificar-se com a estética de outra.
       A técnica musical não seria um meio. Como a técnica própria de cada arte não o seria. No caso da música, a técnica seria já a própria música.
O conceito romantizado da música combatia-o Hanslick. Identificava-o com diletantismo e incompetência. O que era desejável era uma objectividade científica na visão dos problemas musicais, uma atitude analítica, séria. Um bocado chato, este Hanslick, convenhamos.

A procura do Belo se não quer tornar-se ilusória, deve aproximar-se do método das ciências naturais. E uma vontade de conhecimento o mais possível objectivo das coisas que no nosso tempo tanto agita todos os campos do saber, deve também, necessariamente, contemplar a procura do Belo.
Não é que se pretendesse eximir a música à relação com os sentimentos humanos, à capacidade de suscitar emoções. O que restaria saber era em que consistiriam, para Hanslick, essas emoções e esses sentimentos.
    
                                     

Sentimentos e emoções em música eram para Hanslick efeitos secundários. Nada teriam que ver com o valor artístico. Nenhuma arte – nem a música! – seria caracterizável pelos efeitos que exercia sobre os sentimentos humanos. A instância estética primordial da música enquanto arte era a fantasia, não o sentimento.
Intelecto e sentimento: antítese belamente romântica que Hanslick pretendia ultrapassar. Em música, uma contemplação do Belo era uma contemplação do intelecto.


Pobre Hanslick, que deve ter ficado na História como ele mesmo temia, quer dizer, mais por Wagner lhe ter dado a honra de o ridicularizar do que pelo real valor intelectual da sua obra ensaística. A própria História, já se sabe, tem as suas imoralidades.
Mas não se fique a pensar que Hanslick não tinha admirado Wagner. Tinha-lhe admirado o Tannhäuser, por exemplo. E em 1876 ouviria uma versão da Tetralogia e concluiria que era tudo ilusão: o diálogo continuado pertencia à esfera do drama; da ópera era próprio apenas a melodia cantada.
A questão de moral intelectual que separava Hanslick de Wagner prendia-se com a tradição, com a convicção própria de que, em música, o conteúdo seria determinado pela forma. O que levaria Hanslick à barricada de Brahms e dos outros, muitos, defensores de uma música, por assim dizer, absoluta, ou pura, contra um Wagner, contra um Lizst, contra qualquer um dos campeões da música programática.
Hanslick a falar: já se demonstrou que muitos dos fragmentos do Messias, tão gabados pela sua expressão piedosa, foram aproveitados a partir de alguns duos de Handel de expressão mundana, para não dizer erótica, compostos para a princesa Carolina de Hannover. E eu insisto em que as ideias expressas por um compositor são antes de mais, e sobretudo, puramente musicais. E essa música poderá incitar os processos psíquicos, mas nunca será senão uma particularidade do sentimento, não o sentimento em si mesmo.
Temo que fosse Hanslick a ter razão contra Wagner. Uma razão teórica, quero eu dizer…
Sim, a ária de Gluck J’ai perdu mon Euridyce, ou Che Farò senz’Euridice, já servira de suporte a textos literários de sentido oposto.
Para Hanslick, a música propriamente dita era a música instrumental. Ópera era hibridismo formal – como queria o Dr. Samuel Johnson. Ópera era fruto de um compromisso, porque só com muito esforço a música se articularia com outras artes. Em música tudo seria forma. A música seria o objectivo de si mesma, assemântica, inconvertível em linguagem normal.
As leis da música, para Hanslick, não seriam leis naturais; seriam somente leis musicais. O próprio ritmo musical seria bem diferente dos ritmos presentes na natureza.
A grande luta era contra uma estética do sentimento.
O efeito emotivo da música sobre o ouvinte tem natureza patológica. Não é um dado artístico. É apenas agradável. Não é território do Belo.                             
Os trabalhos de Hanslick, creio bem, abririam caminho à consideração da música como ciência e provavelmente lançaram os fundamentos da ciência musical ensinada nas faculdades, a moderna musicologia…


        Moderna musicologia que com a sua praga de críticos se abate
sobre os pindéricos romântico-emotivos e despreocupados auditores, conseguindo, ou quase conseguindo, tirar-lhes todo o prazer da audição de uma peça de música, porque são os chatos e eminentes musicólogos e críticos os donos das tábuas da lei da música, esses que nos hão-de dizer o que está bem feito em música, e do que nós havemos de gostar; são eles que nos vão ensinar o lugar que a música deverá ou não ocupar na nossa vida.
Estarei a exagerar. Talvez. Estou a exagerar, porque quem gosta mesmo sincera e desinteressadamente de música se está nas tintas para os doutores da lei.                       Mas, por exemplo, cá na santa terrinha, por cada doutor musicólogo que sai encartado da universidade, quantos músicos, executantes excelentemente dotados saem dos nossos conservatórios – se é que sai algum?
Pois, acho que sim, embora possa não vir de momento ao caso: a vida musical portuguesa, se assim se pode chamar, precisaria bem mais de brilhantes talentos criativos ou interpretativos do que de pretensos enteados de Hanslick ou de Beckmesser, que tudo sabem, nada criam, tudo ingénua e perversamente nos ensinam  até ao ponto de nos fazer pensar tanto que percamos o gosto pela música, amanuenses doutores analistas de partituras, ou teóricos catedráticos que já nem têm nada para descobrir ou inventar, porque, em teoria, o essencial já foi descoberto, dito e redito muito antes deles.


Recentemente, ou seja, vai para uns vinte anos, digamos, correu pelos palcos de ópera um movimento de reabilitação da figura de Beckmesser, com encenações que lhe retiravam a carga clownesca e ridícula. Reabilitação de Beckmesser que pode ter sido  uma recuperação de Hanslick e dos valores científico-musicais mais correctos do que os sentimentos que ele representou. Recuperação justa, vamos lá.
Hanslick tinha o seu talento e a sua razão. Era um homem de considerável poder intelectual. E Wagner foi imoral com ele. Foi injusto e cruel. Exagerou. E Hanslick tinha razão, sim, mas… sejamos moderados e correctos pequenos burgueses musicais, a razão de Hanslick não passava de uma razão teórica, retórica, se se quiser. Nem tanto ao mar nem tanto à terra..
Mas cá estou eu com o meu reaccionarismo: a memória humana, esteja ou não cheia de sentimentos, retém mais  duradouramente a doentia impressão musical associada aos sentimentos do que a cintilância de uma brilhante análise cientifico-filosófica. E isso quer dizer alguma coisa, não?














3 comentários:

  1. Muito Obrigada por compartilhar esta bela dissertação .. Adorei Abraços Lizete Souza Passos

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  2. Eu também preferia que saíssem mais executantes excelentes dos conservatórios, e teria muita satisfação se o ensino da prática musical fosse na escola a par com o ensino da língua ou da matemática.

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  3. Excelente!


    Saber não pode nem deve ser confundido com talento. Ambos são respeitáveis e nobres, mas ambos perdem quando confundidos.


    Sim, claro que o Saber deve exprimir-se, na sua forma mais sublime, no reconhecimento do Talento, tal como o Talento puro deve ignorar, de uma forma genuína e desinteressada, o veredicto posterior do Saber.


    Pena que não se dê mais importância à Filosofia nos currículos escolares e ao prazer da Música nos tempos de lazer em Portugal.


    Quantos teóricos da Música veneram os consagrados, mas são incapazes de reconhecer o génio, por vezes debaixo dos seus pés, e quantos músicos não soçobram, carregados de talento, ao espartilho e aos ditames bacocos do academismo...


    E Parabéns, estimado Joel Costa, por nos dar ocasião para reflectirmos sobre estes temas.

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