sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

               DE MAL COM OS MERCADOS
                      POR MOR DO DIREITO
               

      Ou parafraseando os tempos e os modos quando o dilema nacional atingir o gravíssimo: de mal com a democracia por mor dos credores; de mal com os credores por mor da democracia. Ou vice-versa, tanto faz, como dizia o outro no dilema da escolha entre os homens e El-Rey.

    
      Pode pensar-se num quadro hamleteano, porque não? Como pode pensar-se numa cena de tragédia grega – e quando os gregos também navegam por águas semelhantes.


         A ser verdade o que dizem, o trágico conflito português já se desencadeou há muito. A tragédia da viabilidade. A tragédia da existência. Tragédia aprofundada pelas exigências dos credores internacionais e dos mercados representados pelos três implacáveis anjos da visitação (troika).


         Um conflito trágico igual a um conflito identitário. Portugal é Portugal, e existe mais ou menos, desde que alguém estrangeirado lhe queira emprestar dinheiro para existir.
Contraindo dívidas, Portugal vai existindo mais, porque melhor paramentado de símbolos de modernidade e de prosperidade.
Não contraindo dívidas, Portugal existirá menos, porque cada vez mais desataviado dos ditos símbolos e remetido aos orgulhos de uma solidão neo-salazarista, modestinho, pobretanas, cinzentinho, tristonho, sombrio, pacífico, temente a Deus, oprimido. Mas honrado.
E por três (ou quatro?) vezes o cutelo jurídico do Constitucional se abate sobre o ambicioso sonho de um Portugal disposto a pagar as suas dívidas, desenxovalhado, nas vias do desenvolvimento económico, moderno, próspero e promissor, consumista. Cá está a quadratura impossível do círculo de fogo para o meio do qual Portugal foi atirado pelo brilhantismo, pela ambição e pela equívoca honestidade financeira dos seus governantes democraticamente eleitos.
De mal com os credores por mor da democracia; de mal com a democracia por mor dos credores.
Se for verdade o que dizem, a solvência nacional só será efectiva à custa do rasgar das normas que fazem de Portugal um país democrático, um Estado de Direito. E normas essas que não são mais do que pontos cardeais de dignidade e honradez moral.
A confiança! A confiança dos homens no ser e no existir das instituições.
Os mercados financeiros sustentam-nos desde que Portugal se lhes prosterne aos pés, e lhes pague os juros que eles impõem, e nem que esse pagar lhe custe os olhos da cara e a condição de ser e existir. Nem que seja preciso desprezar os seus velhos (idosos), os seus trabalhadores, os seus homens e as suas mulheres, justamente os agentes que realizam o que chamamos Portugal, aqueles que não têm alternativa senão confiar naquilo a que chamam Portugal e em tudo o que sejam normas de ser e de existir daquilo a que chamam Estado de Direito.


E o governo ficará de mal com os homens, com o seu povo, por mor dos interesses dos mercados e dos credores internacionais; e o governo ficará de mal com os interesses dos mercados e dos credores internacionais por mor dos seus homens, do seu povo. O círculo irremediável de fogo. E sendo que nesta tragédia nacional moderna a moral dos homens aparece figurada nos juízes do Constitucional, e os interesses dos credores são representados pelas misericordiosas senhoras visitadoras da troika.
A ser verdade o que dizem, e a cumprir-se o exigido pelas instâncias internacionais do crédito, já ninguém poderá confiar nem a primeira camisa que vestiu ao Estado de Direito, porque o Estado de Direito se apropriou dos sacrifícios que os homens lhe confiaram de empréstimo, fê-los render na promessa de os devolver, majorados, a quem lhe confiou esses sacrifícios, e quando chegou a hora de os devolver fez-se desentendido, estraçalhou as regras de si próprio, e traiu as promessas, e violou as leis que lhe permitiam ser chamado Estado de Direito.

A ser verdade o que dizem, e a não se cumprirem as exigências das instâncias internacionais do crédito porque o Estado de Direito quis ser pessoa jurídica de bem e honrar os compromissos que assumiu com os seus homens, as tais instâncias credoras recusam os seus empréstimos, o Estado continua a ser de Direito, mas os homens que o constituem cairão progressivamente na miséria, porque esse Estado de Direito não dispõe de haveres que bastem para alimentar todos os homens que o constituem, tratar-lhes da precária saúde e dos sossegos da velhice - e ainda menos para os fazer prosperar às alturas do Audi A5, do condomínio privado com piscina, das férias no Brasil, dos fatos do Rosa &Teixeira.



De mal com o Estado de Direito (os homens) por mor dos credores; de mal com os credores (El-Rey) por mor do Estado de Direito.

                       

E então, a ser verdade o que dizem, Portugal só será viável quando não se pretender como Estado de Direito; quando optar pelo regresso ao ascetismo pobre e salazarista que dispensa perfeitamente os luxos de ser Estado de Direito?


Portugal e os seus homens não trabalham nem produzem suficientemente para se afirmar como Estado de Direito em prosperidade económica e sem ajudas externas?
Portugal e os seus homens não trabalham nem produzem suficientemente para sustentar uma democracia constitucional?
No dilema entre democracia e constitucionalidade por um lado, e imposição dos mercados (e investidores e credores) por outro, qual a escolha política e socialmente desejável? A democracia e a constitucionalidade, naturalmente.
E dentro do mesmo dilema, qual a escolha económica e financeiramente desejável? Os mercados, os investidores, naturalmente.
E não será então possível quadrar o aparentemente impossível círculo de fogo, de forma à coexistência do desejável político-social com o desejável económico-financeiro? É capaz de ser.


A preferência pela satisfação dos mercados o que é que impõe realmente na prática? O empobrecimento gradual – dez ou quinze anos, segundo dizem - dos homens; um redimensionamento da economia nacional; uma regressão da eventual qualidade de vida a que o pós-25 de Abril nos habituou, com diminuição de salários, corte de pensões, restrições ao consumo, e assim até a parâmetros parecidos com os da economia da sociedade salazarista
A preferência pela democracia e pela efectiva realidade de um Estado de Direito o que é que impõe na prática? Impõe uma independência económico-financeira que só os credores internacionais, ou os mercados, nos poderão outorgar. Mas que não outorgam antes que sejam consagrados procedimentos económico-financeiros que o Estado de Direito, na figura dos juízes do Constitucional, recusam por uma questão que é técnica, mas que também é de moral social e jurídica.


Quem sairá vencedor do temível confronto? Sem dúvida: os mercados, os credores, os investidores internacionais.
De mal com os mercados por mor da democracia e do Estado de Direito; de mal com a democracia e com o Estado de Direito por mor dos mercados.

                   

E que significará ainda a vitória dos mercados, dos credores e de toda essa ilustre gente anónima no trágico combate com o nosso Estado de Direito? Significará (não nos iludamos) a derrota da democracia. Porque a democracia não é muito mais do que um Estado de Direito. E se desse Estado de Direito se fizer letra morta e tábua rasa, far-se-á letra morta e tábua rasa da democracia mesma.
E que significará a derrota da democracia? Evidentemente: a vitória de uma ditadura. Mas que será pelo menos uma ditadura nova e pouco prevista formalmente pela História.
A nova ditadura que se avizinha – ou que já vai funcionando informalmente – é uma ditadura natural. Tão natural como as leis do mercado, como as leis da selva. É, ou já está a ser, a do século XXI.  
         A nova ditadura não será como as outras e será até muito bem aceite pelos homens do dinheiro, pelos investidores, e mesmo por algum do populacho mais miúdo. Não será como a outra que alguns conheceram e de que outros ouviram falar sem acreditar piamente que tivesse existido. Essa era uma ditadura política, uma ditadura imposta por imperativos ideológicos.
A nova ditadura não será concretizada à custa de opressão, e até permitirá gostosamente eleições de quatro em quatro anos. Não precisará de comissões de censura, nem de polícias secretas, nem de tribunais plenários. A nova ditadura, posto que eminentemente pragmática ao primar pelas eficácias do dinheiro, veste-se relativamente bem de democracia.


A nova ditadura será a ditadura do consumo, da abundância, porque é pela abundância e pelo consequente consumo que uma economia moderna sobrevive, ou vive melhoradamente. É a probabilidade do consumo o que motiva os homens que votam, os homens que para consumirem a contento desprezarão, loucos de alegria, todo e qualquer princípio de um Estado de Direito e se vergarão a todos e quaisquer ditames de credores, de mercados e de investidores.
A ditadura do consumo é contrária à ditadura que muitos dos agentes da praga grisalha (velhos) conheceram, a salazarista, fundada na parcimónia, nas economiazinhas, nas poupançazinhas, na restrição natural e obrigatória do consumo, mas também na orgulhosa solidão de uma pobreza limpinha e honrada.


Se é verdade o que dizem, e a menos que aconteça um milagre – que na velha vida portuguesa não seria originalidade por aí além -, já devemos estar preparados para a ditadura da abundância que nos fará mais pobres ainda do que já somos. 
        A ditadura da abundância, e paradoxalmente, não tenhamos dúvidas, vai implicar uma vida de penúrias para os que, por mor dos investidores, dos mercados e dos credores, serão excluídos da parte da abundância e serão plenamente incluídos na parte da ditadura. Falo dos mitificados jovens que procuram emprego; falo dos velhos (idosos) que já não prestam para nada e que só andam cá a empatar o funcionamento dos mercados, e depois de roubados pelo Estado que vai perdendo a sua qualidade de ser de Direito; falo dos empregados e dos trabalhadores menos prendados de qualificações e de rendimentos; falo de todos.
         Ou quase.
De mal com os homens por mor d’El-Rey; de mal com El-Rey por mor dos homens.


3 comentários:

  1. Investidores, credores, mercados ??? mas que JAULA é esta? Onde está o dinheiro, quem o junta, quem o gasta e em quê? Porque não vão estes "democratas" de alpaca ensinar a democracia deles para a Guiné ou o Sudão, ou mesmo para a China? Aqui há "empregos para a vida", reformas acumuladas e intocáveis, facilidades de dinheiros sujos a circular, crimes sem fim à vista, direitos humanos pelo chão e uma impunidade visível, além do clima moderado.
    Não foi ASSIM que quisemos, não foi por isto que lutámos.
    Abraço amigo, bons desejos para a época, malgré tout somos pessoas de bem.

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  2. Precisamos de dinheiro emprestado, sim. Mas todos os Países precisam, não há nisso nada de original. Precisamos de consumir menos para ir pagando esse dinheiro e os respetivos juros - nada de mal. Já passámos por outros apertos de cinto no Passado... Então, qual é o problema?

    Não há nenhum "problema". Ou melhor, há três e todos bem graves:

    1º) O mais grave prende-se com a INJUSTIÇA. Uma questão de Moral, pois claro: é iníquo, porque injusto, infringir a Lei, nomeadamente violar a Constituição, faltar às promessas por parte do Estado que se pretende de Direito! Sem essa trave Moral, todo o edifício social corre o risco de colapsar, num apocalipse de violência feroz e descontrolada, do tipo balcânica (que aliás já foi nosso apanágio também, sobretudo na primeira metade do Séc. XIX - as gerações atuais é que não se lembram de a ter dado na Escola, se calhar porque não foi dada como devia ser...);

    2º) O segundo problema mais grave prende-se com a Psique coletiva, com a identidade e a coesão da Sociedade: se nos convencermos de que o "mal" é a tal da Democracia, ou que é a "Política" e os "políticos" - ou mesmo o Povo inteiro (sempre os "outros", claro...)! -, estaremos prontinhos para nos ser servida a mais recente versão da velha demagogia barata e do velho populismo simplório, que nos conduzirá à desagregação nacional, ou à submissão passiva a mais uma era de atrofia como a do "Estado Novo", das "continhas certas", "sem" corrupção de espécie nenhuma (o tanas...), mas com Crianças a morrer como tordos e metade da População analfabeta (e analfabruta) a ir aos Domingos à Missa e a sobreviver em "condomínios fechados" na Musgueira - um País orgulhosamente abjeto e MISERÁVEL;

    3º) O terceiro problema mais grave é de ordem material: sem Trabalho digno e recompensado não se gera Riqueza (embora se possam ir gerando grandes lucros, claro...), sem Riqueza não se cobram suficientes Impostos, sem Impostos não se paga a dívida, se não se pagar a dívida e não houver empregos os melhores basam daqui, se os melhores basarem daqui não haverá mão-de-obra, logo não haverá Investimento produtivo, logo não haverá Trabalho, nem Riqueza, e assim sucessivamente até chegarmos... à Turquia, ou a Marrocos, ou à Calábria, que é talvez o destino final e irremediável desta viagem iniciada com um Afonso insolente, desobediente e malcriado, continuada por um Mestre que deu origem a uma geração dita "ínclita" e a um sonho grandioso - mas que se foi afastando progressivamente da realidade -, viagem subitamente interrompida por um puto imberbe e irresponsável (mas se calhar na melhor altura...), retomada porém por um punhado de teimosos inconscientes, que forçaram à vida algo que porventura já estava morto e que apenas aguardava enterro decente...

    Sim, o nosso destino, talvez o venhamos a perceber muito em breve, não é mais do que aquilo de onde nunca saímos, nem nunca deixámos de ser: o vetusto Mediterrâneo, berço da Civilização ocidental!

    E, como diz o Poeta, "pode alguém ser quem não é?"...

    E se nós nascemos mesmo para contemplar olivais e serranias, saborear queijo e mel, cantar, beber e sentir a força do vento e o odor do mato, é com isso mesmo que teremos de nos conformar.

    E o mal primordial foi terem-nos logo roubado essa idiossincrasia uns brutamontes do Norte com umas cruzes ao peito, querendo à força que fôssemos como os europeus, Cristãos, pois, quando nós éramos apenas simples mediterrânicos - cristãos também, mas ainda judeus, árabes, poetas, etc. e tal...

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  3. É um prazer - que já tinha saudades - assistir a crónicas deste autor!
    Quanto à matéria em questão, apenas me apraz dizer que, muito embora a moral possa servir de mote a um repensar as circunstâncias, o facto é que a tendência do «pecado» é a cultura do mal e daí «batatoides».
    Resta-me lembrar que, como sabem, o mal não se confina às fronteiras. Muito pelo contrário. Hoje e principalmente porque assim é a exigência da problemática, as fronteiras têm que ser consideradas noutros termos que não os convencionais. Mas para que fique mais claro, exemplifico lembrando questões como, os dinheiros e o capitalismo a brincar com essa realidade, a ecologia sendo um problema sem cuidados... e o pior é ainda não encontrar nenhum espaço para que se converja no sentido de atender à problemática em si, ficando tudo na mesma cartilha de sempre. E assim, discute-se nada mais que o sexo dos anjos.
    Impões antes uma revolução! Ou duas, se caso for. Mas não vou agora dizer mais sobre isto; nem que tipo de revolução. Isso depende também do exercício de pensamento (e moral?) que se possa fazer. Pela parte que me toca, não faço mais porque não posso.

    Um bem haja!

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