A PERIGOSA
VONTADE DE FAZER
Pela primavera de 1953, saíu em Paris o primeiro número
da revista literária The Paris Review. Continha mais de duas dezenas de
entrevistas com os escritores então na berra. Muitas dessas entrevistas, para
lá dos aspectos relativos à arte e à técnica narrativas, incluem largo, e a meu
ver interessantíssimo, material a respeito da vida, da arte, do Homem, e
necessariamente, em muitas delas, a respeito de altas questões de moral. E lá
vem uma entrevista com o meu escritor preferido depois de Shakespeare e dos
trágicos gregos. William Faulkner.
O americano
William Faulkner, nascido em terra de escravos negros, o Mississipi,
descendente da aristocracia branca do dito profundo Sul dos EUA (the deep
south), e cuja obra na quase totalidade afronta o universo sufocante desse Sul
dos EUA, os escravos, os filhos de escravos e a interacção deles com a
sociedade branca, fortemente reaccionária e racista.
Faulkner dá a entrevista em 1957, em Nova York, antes
portanto de ter ganho o prémio Nobel da Literatura, o que aconteceu em 1962.
O homem detestava entrevistas e ia dizendo logo de
entrada que perguntas quanto a literatura e à sua obra, tudo bem, responderia
ao que fosse preciso. Mas que não lhe entrassem por terrenos de ordem pessoal.
Poderia reagir com violência. Em coisas pessoais, se está bem disposto, pode
até responder, o que não quer dizer que no dia seguinte, se lhe fizerem as
mesmas perguntas pessoais ele não dê respostas totalmente diferentes das
primeiras.
Faulkner lá entendia que as questões pessoais postas a
um escritor não revestiam qualquer interesse, posto que o que essencialmente
interessava da vida de um autor era a sua obra. Era importante ter acontecido Hamlet ou o Sonho
de uma Noite de Verão. Era pouco importante saber quem os teria escrito, se um certo Shakespeare, se qualquer outro nascido na mesma terra e no
mesmo dia e que por acaso também se chamasse Shakespeare - esta, já se sabe,
foi a piada que George Bernard Shaw
largou quando perguntado acerca da real paternidade das obras de
Shakespeare.
Mas Faulkner diz que Shakespeare, ou Homero, ou Balzac,
escreveram afinal sobre os mesmos assuntos, e se tivessem vivido mais mil ou
dois mil anos os editores não precisariam de mais nada – claro, digo eu, isto
no tempo em que os editores gostavam de editar grandes e importantes obras…
Declarava-se um poeta falhado. E tinha um pressentimento:
todo o romancista havia querido escrever poesia antes de mais, e quando
descobriu que não o podia fazer bem tentara ainda o conto – o género que
Faulkner considera o mais difícil a seguir à poesia – e que não tendo ainda
conseguido fazer grande coisa no género conto o escritor se dedicara então ao
romance.
De mais a mais, um escritor nunca deve preocupar-se em
ser melhor do que os seus contemporâneos. Basta-lhe uma única preocupação: ser
ele próprio; ou, um furo acima (diria eu), ser melhor do que ele próprio. O
artista só tem uma responsabilidade, e essa responsabilidade é perante a sua
própria obra. O escritor é um ser
amoral. Pode roubar, pedir emprestado, mendigar ou apropriar-se seja do que for
e de quem for, se tal for condição de realizar a própria obra.
Se o
artista for bom artista mesmo, será um tipo sem piedade. Terá um sonho que o
angustia. O seu dever é livrar-se dele. Enquanto não o fizer não terá paz.
Para fazer bem a sua obra – continua Faulkner – o
escritor, se for bom, não precisará de um ambiente especial, de específicas
condições materiais. Conta ele, homem de sete ofícios, que o melhor emprego que alguma vez lhe
ofereceram na vida foi o de… gestor… de uma casa de passe. É verdade. Era o
melhor ambiente que podia desejar para escrever. Na condição de gestor de um
bordel gozava de liberdade económica, estava a salvo da fome, tinha um tecto e
não tinha mais que fazer do que ir uma
vez por mês pagar umas contitas à esquadra de polícia local. Durante a manhã, a
melhor parte do dia para criar, o posto
de trabalho estava tranquilo. À noite havia actividade que chegasse para o
escritor não se aborrecer. O emprego dava-lhe alguma posição social na cidade.
Alguém lhe trazia os livros de que precisava. Todas as empregadas da casa o
tratavam por senhor. Todos os
contrabandistas de álcool o tratavam por senhor.
Ah, e também tinha estatuto para tratar os polícias por tu.
Paz e solidão e todo o prazer que possa obter a um preço
não demasiado alto: eis o ambiente de que o artista precisa para criar.
E se é escritor, enfim, e se se chama Faulkner, também
precisará de alguns instrumentos, tais como lápis, papel, tabaco, comida e um
pouco de whisky.
- Bourbon?, pergunta o entrevistador, a provocá-lo: Faulkner
era um alcoólico de marca.
- Bourbon? Ouça, não sou esquisito. Entre scotch e nada,
fico com o scotch.
Nada, a não ser a morte, poderá destruir um bom
escritor.
Os realmente bons também pouco se ralam com o êxito ou a
riqueza . O êxito, segundo Faulkner, é feminino, é uma mulher, se um homem se
humilha faz pouco dele – isto é a pouco correcta opinião de Faulkner, sublinho…
Faulkner gostava, como toda a gente, de se sentir bem.
Talvez interiormente bem, e criativo. Tinha uma receita para induzir esse bem
estar interior. Ler o Velho Testamento. Ou observar um pardal.
- Se eu pudesse reencarnar, sabe você como gostaria de
voltar a viver? Como um pardal. Ninguém o odeia. Ninguém o inveja. Ninguém o
quer.Ninguém precisa dele. Ninguém se mete com ele. Raramente está em perigo. E
sempre pode comer qualquer coisa.
(A isso diria eu que ainda há sempre quem goste de andar
aos pardais.)
- Mas agora fale-nos alguma coisa da sua técnica,
Mr.Faulkner.
Técnica?, admira-se Faulkner. Se um escritor está assim
tão interessado na técnica, o melhor que tem a fazer será dedicar-se à
cirurgia. Ou a colocar ladrilhos.
Para se escrever uma obra, Faulkner afirma não haver
receita alguma nem nenhum recurso mecânico. Cada um aprende por si, com os
próprios erros. Mas o bom artista deve ter a certeza de que ninguém sabe o
suficiente para lhe dar conselhos. O bom artista é de uma suprema vaidade. Por
mais que admire o escritor consagrado não pensa noutra coisa senão em
superá-lo.
E quanto àquela velha lenda de serem as personagens a
ganhar vida, a condicionarem a narrativa e a conduzirem a mão do autor,
Faulkner diz sim. A certa altura as personagens erguem-se, avançam, tomam os
comandos e completam a história. Isso sucedia-lhe sempre por volta da página
275.
- Só não sei o que aconteceria se o livro acabasse na
página 274 - ironiza.
O artista deve ter objectividade suficiente para bem
avaliar o que faz. Isso somado à honradez, ao valor e à capacidade de não se
enganar a seu próprio respeito.
A obra que causara mais angústia criativa e emocional a
Faulkner fora o célebre e complexo O Som e a Fúria. The
Sound and the Fury. Uma genial expressão tomada de empréstimo a uma fala de
Shakespeare em Macbeth. E foi essa,
das suas, a que mais amou, em que mais duramente trabalhou…
- Tal como uma mãe que ama mais o filho que se tornou
ladrão ou assassino do que aquele que preferiu estudar para padre.
A importância do cristianismo na obra de Faulkner?
Assim como a um carpinteiro nunca falta o martelo, nunca
a ninguém faltou cristianismo. E assim no caso de se estar de acordo com o que
a palavra significa.
E significaria o quê para Faulkner?
Um código de conduta moral e individual, e quando cada
um decide tornar-se um ser humano superior ao que a sua natureza mesma quer que
ele seja, e ainda no caso de um indivíduo preferir obedecer apenas à sua
natureza.
A cruz pode ser
para um homem a memória do seu dever enquanto membro da raça humana. As
alegorias provenientes da cruz são modelos com os quais um homem se mede e
aprende a conhecer-se.
Mas a alegoria não pode ensinar o Homem a ser bom da
mesma forma que um compêndio ensina as matemáticas.
A alegoria ajuda um homem a descobrir-se. Ajuda-o a
erigir para si um código moral, uma norma sobre a qual, segundo as suas
capacidades e aspirações, lhe apresente um modelo de sacrifício e a promessa de
uma esperança.
E é claro, os escritores sempre se alimentaram de
alegorias, as alegorias de uma consciência moral. Todavia, as alegorias são
incomparáveis. E Faulkner traz para a conversa uma obra de outro escritor,
Melville. Moby Dick. Três
personagens. Três tópicos de uma consciência humana: não saber nada; saber e
não se preocupar; saber e preocupar-se.
Na sua própria obra ( The Fable – A Fábula) Faulkner encontra semelhanças com estas
alegorias. Um jovem aviador judeu diz: isto
é horrível; recuso aceitá-lo, nem que tenha de renunciar á própria vida. Um
quartel-mestre francês diz: isto é
horrível, mas podemos sempre chorar e suportá-lo. Um mensageiro inglês diz:
isto é horrível, vou fazer alguma coisa
para o remediar.
O escritor prossegue a missão de criar personagens
plausíveis em situações plausíveis e comovedoras e da maneira mais comovedora
que puder.
A música é o meio ideal para um artista se exprimir:
opinião de Faulkner. Pode ter sido mesmo
o primeiro meio de expressão da História do Homem. Mas se o talento de um homem é a palavra, este
deve tentar exprimir torpemente, por palavras, o que a música teria comunicado
melhor.
- Mr. Faulkner, há quem diga que o senhor é um obsecado
pela violência.
- Pois aí está. É a mesma coisa que dizer do tal
carpinteiro que vive obsecado pelo seu martelo. A violência, amigo, é
simplesmente um dos utensílios do escritor. Uma ferramenta, entre outras. E
note outra coisa: prefiro o silêncio ao som. A imagem que as palavras produzem
acontece no silêncio.
- Mas, Mr. Faulkner, há pessoas que não conseguem
entender as suas obras, mesmo depois de as terem lido duas e três vezes. Que
lhes sugeriria como melhor meio de lhe compreenderem as obras?
- Sugiro que as leiam quatro vezes.
Em jovem, antes
de encontrar Sherwood Anderson, o consagrado escritor que lhe viria a
reconhecer o talento e a incitá-lo à escrita, Faulkner vivia em Nova Orleans e fazia uns biscates por
aqui e por ali, sem grandes exigências, e apenas para ganhar algum dinheiro. A
vida era barata em Nova Orleans e Faulkner só queria ter onde dormir, alguma coisita
para mastigar e tabaco.
Ah, e uma
garrafita de whisky.
Trabalhava dois ou três dias e ganhava para andar o
resto do mês à boa vida. Pilotar lanchas e aviões, pintar paredes, arranjar
telhados. Sentia-se um vagabundo. O dinheiro só lhe interessava na medida em
que o forçava a trabalhar para o ganhar.
Trabalho. Faulkner espanta-se com o facto de haver por
esse mundo tanto trabalho para fazer. Acha até uma vergonha. Acha muito triste
que a única coisa que um homem possa fazer durante oito horas seja trabalhar.
Ninguém pode estar oito horas a comer.
Ninguém aguenta oito horas a beber.
Não se pode fazer amor oito horas seguidas.
A única coisa que
um homem pode fazer em oito horas é trabalhar. Por isso o Homem é infeliz.
Livros. Faulkner, em novo, trabalhou numa estação dos
correios. Foi despedido. Justa causa: lia nas horas de trabalho.
Livros. Os livros que ainda lia na idade adulta eram os
que conhecera e amara quando era rapaz e a eles voltava como quem gosta de
voltar a ver os velhos amigos. O Velho Testamento. Dickens. Conrad. Cervantes –
Faulkner lia o Quixote todos os anos,
e lia-o como alguns crentes lêem a Bíblia.
E mais Flaubert. E mais Balzac.
- Balzac criou um mundo próprio - diz – uma corrente sanguínea que flui ao longo de vinte livros.
E mais Dostoievski e Tolstoi. Shakespeare. E Melville. E os poetas,
Keats, Shelley, Donne, Marlowe.
Perguntam-lhe por Freud. Toda a gente falava de Freud
quando vivia em Nova Orleans. Declara que nunca o leu. Mas Shakespeare também
seguramente não leu Freud. Nem Melville
devia algum dia ter lido Freud.
- E quanto a novelas policiais, Mr. Faulkner?
- Ah, sim, Simenon.
- E porquê Simenon?
- Porque lhe acho alguma coisa de Tchekov.
E a propósito de novelas policiais, e relacionado com
Faulkner, meto agora a minha colherada para dizer que quando as primeiras obras
de William Faulkner foram traduzidas para francês e publicadas em França foi
uma sensação no refinado mundo literário da Rive Gauche. Sartre e Gide, por
exemplo, escreveram extensos artigos ensaísticos sobre Faulkner. E já não me
lembro se foi Sartre se foi Gide quem disse que as histórias de Faulkner eram
um genial ponto de encontro entre a tragédia grega e o romance policial negro.
E em especial no que se referia ao primeiro livro comercial de Faulkner, que
nem é o melhor,mas que foi o que lhe deu verdadeiramente dinheiro a ganhar e
nomeada internacional e se chama Santuário.
Para os menos familiarizados com este assombroso romancista,
diria eu dele outros títulos, Sartoris, O
Som e a Fúria - de que já falei – Enquanto Agonizo (As I Lay Dying), Luz de
Agosto (Light in August), Palmeiras Bravas, Desce Moisés, Absalon Absalon, Os
Invictos, Os Ratoneiros… e mais uma infinidade deles. Todos geniais. Ou, se
não geniais, muito perto disso.
Ainda perguntado sobre livros e personagens universais
da ficção, Faulkner ditou para os autos os nomes de Falstaff e do Príncipe Hal;
de Quixote e de Sancho; de Lady Macbeth, de Ofélia, de Mercútio. Huckleberry
Finn.
- Muito bem, Mr.
Faulkner, chega, e quanto ao futuro do romance?
O futuro do romance seria assunto para os críticos. Quem
está empenhado em realizar a sua obra não tem tempo para os críticos. É o artista
que desperta o crítico. Se o crítico escreve alguma coisa poderá inspirar
alguém, mas não o artista.
Os
seres humanos só existem na vida. Por isso mesmo deverão dedicar todo o seu
tempo a estar vivos.
A vida decorre entre o que faz mover um homem, a
ambição, o poder, o prazer. O Homem está obrigado a eleger entre Bem e Mal. Há
nele uma consciência moral que o exige. E doutra maneira, não poderá viver
consigo mesmo o dia de amanhã.
A consciência moral pode ser uma maldição que o Homem
terá de aceitar se quiser ter o direito de sonhar.
E a finalidade da existência do artista é deter o
movimento da própria vida por meios artificiais, e manter fixo esse movimento,
de sorte que, cem anos passados, quando alguém contemplar esse movimento que o
artista fixou, imobilizou, continue a mover-se em função do que é a vida,
movimento.
E se o Homem é mortal, a única imortalidade ao alcance
dele é deixar atrás de si algo imortal, algo que é imortal porque continua a
mover-se e a fazer mover o mundo e os vindouros.
Alguns críticos apontavam a Faulkner uma limitação
curiosa: a dificuldade de criar personagens entre os vinte e os quarenta anos
que fossem simpáticas.
- Mas as pessoas entre os vinte e os quarenta anos não
são simpáticas, amigo.
Faulkner justifica: a criança tem capacidade de fazer,
de agir, mas não sabe como; só o saberá quando não puder fazer, agir, e que é
depois dos quarenta. Os grandes símbolos da angústia e do sofrimento humanos
são homens entre os vinte e os quarenta. Entre os vinte e os quarenta anos é
quando a vontade de fazer se torna mais forte e mais perigosa, e quando a
pessoa ainda não começou a aprender a saber. A capacidade de fazer segue os
trilhos do mal por entre os acidentes pessoais do seu meio.
O Homem é forte antes de ser moral.
As maiores angústias deste mundo, na opinião de
Faulkner, teriam sido causadas por pessoas de idade entre os vinte e os
quarenta. O problema racial nos EUA
estava então a ser impulsionado por pessoas entre os vinte e os
quarenta. Os brancos que espancavam e matavam os negros: entre os vinte e os
quarenta; as seitas de negros que violavam as mulheres brancas como resposta:
entre os vinte e os quarenta.
Napoleão, Hitler, Lenine: entre os vinte e os quarenta.
O tempo é uma condição inexistente, fluída, só actuante
sobre os momentos da pessoa individualizada. Não há foi . Só existe é.
O mundo que crê é a pedra angular do universo. Sem essa
pedra, por pequena que seja, o universo ruirá.
- O meu último livro será O Livro do Dia do Juízo
Universal. Quando o acabar não escreverei mais.
Nunca o escreveu.
Faulkner visto por si ainda ganha maior dimensão...É o humano "descarnado" sem perder o fascínio do génio.
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