A MENOS QUE A
NECESSIDADE NOS
OBRIGUE
A SER BONS
Tornando
ao velho Nicolò Macchiavelli. Porque acho proveitoso. Hoje. Ainda. Por isto. E por aquilo. Por tudo. E por nada.
O pior que pode acontecer a um príncipe cujo
povo é seu inimigo é ser abandonado por ele. Mas se os grandes lhe são
contrários, deve temer que lhe caiam em cima. Gente de melhor visão e mais
astúcia do que o povo, os grandes não perdem tempo. Põem-se ao fresco e só
procuram cair nas graças de qualquer outro que venha a seguir.
O
príncipe pode ser o médico que diagnostica e trata os achaques do Estado. Isso
é verdade. Mas o nosso Nicolò quer vê-lo sobretudo como um artista capaz de
pensar esteticamente esse Estado que emerge da massa informe e bruta do
conjunto dos seus cidadãos; capaz de inscrever os interesses antagónicos e
arbitrários, feios, numa categoria do Belo; o príncipe paradigmático de Nicolò
é um arquitecto que sobre sólidos alicerces sabe construir um edifício
harmónico.
O
Estado pode ser uma obra de arte, um monumento ao espírito empreendedor do
Homem, contando para a sua execução com as partes necessárias de instinto,
força, sorte, planeamento, improviso, razão e acção.
Parte
importante da doutrina maquiavélica, chamemos-lhe assim, é a insistência na
separação do puro pensamento político do pensamento ético-filosófico. É
instaurar a autonomia da arte de pensar a política relativamente a quaisquer
coordenadas de natureza teológica.
Definitivamente
fora da moral haveria de estar a política.
E
não importará provavelmente tanto saber a forma melhor de um governo, ou mesmo
tentar definir em rigor a essência de um poder, senão que, muito
pragmaticamente, obter um fim superior, conseguir uma estabilidade e uma ordem
funcionais para o Estado.
De
todo o modo, será bom acentuar na ideia de Maquiavel que o poder por si só não
garante áquele que o detém nem a glória nem a virtude. Um príncipe poderá
absolutamente actuar do lado de fora das normas éticas dos tradicionais e
religiosíssimos códigos. O que é de aceitar como coisa natural. Ou até como coisa
desejável. Porque o que mais importa são as finalidades, já se sabe. E talvez
por isso tivessem acusado Nicolò de ter escrito um tratado imoral e mais próprio para funcionar como vademecum de
tiranos.
Os
fins e os meios. Cá está. E os fins que justificam os meios. Cá está. Cá está o
conceito mais facilmente vulgarizado do
pensamento de Maquiavel.
Para
as acções dos homens, designadamente dos poderosos, nunca, ou raramente, na
hora de delinear uma acção política, existe por perto um árbitro imparcial ou
uma autoridade moral acima de toda a suspeita. Nessas condições, da humaníssima
realidade, então, o único critério de aferição da bondade das acções humanas em
geral e dos governantes em particular é a qualidade dos resultados obtidos. Ou
o grau de adequação do resultado final de uma acção política ao conceito que
lhe esteve na génese. Ou, finalmente, o grau de eficácia dessa acção na
resolução do problema concreto que a determinou. E não se tratando, portanto,
da pura legitimação do Mal; ou de uma justificação dos tais meios que os fins
pudesse aconselhar.
Não é virtude matar os cidadãos, trair os
amigos, ser desleal e pouco compassivo ou pouco religioso. Assim, será possível
conquistar o poder, mas nunca a honra.
Toda a
virtude de um senhor se relaciona com a natureza dos fins a que se propõe.
E
se a violência é determinada pelas exigências do interesse geral, são
admissíveis certas acções eventualmente condenadas pelos códigos
ético-religiosos de cada tempo, questionando-se se aqueles que criticam certas
acções, uma vez chamados eles próprios à responsabilidade de decisores e de
actores, e tendo em mira finalidades positivas, não as teriam igualmente
praticado. E assim por uma questão de moral. A moral dos meios. Por acaso,
abissalmente diferente da moral dos fins, como Maquiavel no-lo demonstra.
Um
príncipe é mais do que um indivíduo – e sem embargo de o ser e de se exercer e
exacerbar como tal. Um príncipe é uma instância social onde se corporizam, e
concretizam, as aspirações da comunidade. É a potencialidade integradora e
universal dessas aspirações.
A
saúde política de um Estado estaria então na intensidade dos seus conflitos
sociais. Já na República Romana, sistema nunca por demais exaltado por
Maquiavel, era o conflito entre plebeus e senadores aristocratas a dar o tom da
grandeza e da liberdade do Estado. Daqui o dizer-se que a estabilidade política
se basearia no equilíbrio muito dinâmico e inevitavelmente conflitual existente
no pluralismo das forças vivas. Jamais na supressão ou na repressão dessas
forças vivas, porque daí resultaria algo parecido com uma estabilidade
laboratorial, fictícia.
As disputas entre o povo e a nobreza na
antiga Roma travavam-se na argumentação e na troca de razões, enquanto em
Florença tais diferenças se dirimiam em lutas violentas. Em Roma eram as leis
que resolviam os conflitos; em Florença eram o exílio e o assassínio de muitos
cidadãos.
As
diferenças na situação da antiga Roma e da então moderna Florença poderiam
resumir-se na diferença dos seus objectivos finais: o povo romano gostaria de
partilhar algumas honrarias e benesses com os patrícios, sendo que, por outro
lado, os populares florentinos acalentavam um furioso desejo de se governar a si
próprios sem qualquer participação da nobreza no destino da cidade. Estava-se
no tempo de uma Itália enfraquecida, dividida, minada por lutas intestinas
entre os partidos, ou seja, entre os seus senhores. E daí a conveniência de um
governo mais ou menos despótico para uma situação crítica em extremo. Mas um
governo despótico que não desprezasse o uso da violência como meio de conseguir
um novo e mais alto estado de civilização e unidade na Península Itálica.
Pois
bem, os fins eram excelentes. Os meios poderiam não o ser à inflexível luz de
uma moral. Mas pelo menos justificavam-se. E justificar-se-iam em pleno se os
objectivos fossem de alguma maneira atingidos se a Itália pudesse passar a
respirar livremente como Estado moderno e não como reserva do Mal e da barbárie
a ser aproveitada pelos invasores e ocupantes estrangeiros.
A
violência de uma repressão em nome do interesse geral e nacional deveria
prevalecer sobre a violência gratuita dos partidos e dos senhores uns contra os
outros quando perseguiam unicamente o fim dos seus interesses privados.
Na
arcaica Roma Romulo matou Remo, o irmão que com ele mamara na teta da loba.
Matou Remo e fundou Roma. E nota Maquiavel acerca do gesto de Romulo que a acção acusou-o, mas o resultado dessa
acção desculpou-o.
Se
o resultado é bom e a finalidade superior é atingida, os meios serão
desculpáveis, quiçá legitimados. É esta a moral maquiavélica. Elástica e
perversa, dir-se-á, mas de todo inescapável nos patamares da alta política,
como a História nos ensina a cada passo.
Maquiavel
reprova a violência que tem por objecto a pura destruição – a gratuita,
digamos. Porém, não pode ele deixar de aplaudir uma violência que, um tanto
bizarramente, vamos lá, se poderia chamar de construtiva – ou, se preferirmos,
como na medicina, de preventiva.
Um
conflito pode produzir efeitos benéficos na ordem pública, desde que no quadro
de um Estado organizado e controlado por instâncias políticas estruturadas.
Os fundamentos principais de todos os
estados, sejam eles novos sejam eles antigos, são as boas leis e as boas armas.
E aqui Maquiavel opta nitidamente
pela excelência das armas. Mas como meio e não como fim. E exactamente quando o
objectivo superior e civilizacional a atingir são as leis. Se uma boa lei não
achar outro meio de se impor na bárbara comunidade dos homens e dos respectivos
interesses, que se usem as armas sem preconceitos nem má consciência.
Maquiavel
aceitava até a violência a escalões muito pouco aceitáveis aos nossos olhos de
hoje.
E
aceitava a violência intra-muros na forma de conspirações e atentados
políticos. Da mesma sorte que julgava inevitáveis as guerras entre estados
soberanos.
O
conceito de herói político apontava para o príncipe desassombrado e impetuoso
que não recuava na movimentação ofensiva dos seus exércitos. E deplorava os
príncipes e os estados mais tímidos na
sua própria defesa, os mais contemporizadores, os que escolhiam mais depressa
as políticas de compromisso e negociação do que as acções decisivas. Talvez por
isso a arte da guerra lhe merecesse também vasta teorização.
Maquiavel
defendia a existência de boas armas, quer dizer, de adestrados exércitos, como
força de educação dos povos. Na moral do tempo, a instituição militar instilava
nas consciências jovens os mais nobres valores de cidadania. As vitórias
externas dos exércitos incrementavam noções de orgulho nacional e de
patriotismo. Mas, mais importante ainda: cabia à força militar organizada e
disciplinada ser, em teoria, pelo menos, acho eu, um obstáculo à instalação do
poder tirânico.
Que ninguém se deixe cair na certeza de
aparecer quem o levante. Só são boas e duráveis as defesas que dependem de ti e
do teu valor.
E
também:
É admirável o príncipe que se mostra amigo ou
inimigo e que sem hesitações se manifesta a favor de alguém contra outro. É
mais proveitoso este procedimento do que a neutralidade. Se um vizinho teu
declara guerra a outro também teu vizinho, ser-te-á útil fazer jogo limpo e
franco e tomar um partido. O que ganhar não quer amigos suspeitos que não o
ajudem quando precisa; o que perder não te socorrerá nunca, porque tu não
quiseste, pelas armas, compartilhar da sua sorte.
Maquiavel,
não obstante tudo, tinha inegáveis simpatias republicanas. Mas em 1513 a
república é abolida em Florença e Maquiavel deixa entre parêntesis essas
simpatias republicanas. Escreve rapidamente O
Principe.
Em 1513, o filho de Lorenzo, o Magnífico, Giovanni de Medici, é
elevado à suprema dignidade de chefe da Igreja, passando a chamar-se Leão X
(Maquiavel dedica-lhe um memorial versando a organização de um sistema político
para Florença).
Giuliano, irmão do papa, morre inesperadamente em 1516, e
sucede-lhe Lorenzo de Medici, Duque de Urbino.
E O Príncipe, que Maquiavel havia dedicado a Giuliano, passa a ser
dedicado a Lorenzo, e até porque os Medici só terão que aproveitar um
conjuntura política (fortuna) que lhes
é favorável: tropas estrangeiras invadem a Itália; um Medici ocupa o trono de
Pedro e tem poderes sobre os estados papais da Itália central; enquanto outro
Medici domina Florença e toda a Toscana. Seria um primeiro esquisso de
unificação política da Península, a convergir para o centro geográfico a
possível aliança de interesses e principados contra o invasor.
Maquiavel
entendia a conjuntura como um desafio, a occasione,
para a virtù de um novo príncipe, uma
dádiva da fortuna, a deusa que no
universo político poderia aparecer em lugar da providência divina.
Só
o Bórgia. Rodrigo Bórgia, o papa Alexandre VI, pudera em tempos dispor de tão
afortunada conjugação de factores favoráveis, a qual Bórgia, aliado com seu filho César, não aproveitara em cheio por
motivo de falecimento.
Maquiavel
via um elo político de ligação entre as famílias Bórgia e Medici, um destino
político singular, ao qual eram oferecidas semelhantes oportunidades para a
realização do alto desígnio de fortalecer politicamente a terra itálica, tão
cobiçada pelas potências do exterior.
Neste
dédalo de coincidências nasce a oportunidade para a obra, O Príncipe. Mas a fama devassa dos Bórgia corria mundo e daí que os
adversários de Itália aproveitassem os rumores de dissipação e vício que soavam
acerca dos príncipes e condottieri
italianos para pôr a correr que a Itália era afinal a terra do Anti-Cristo, do
ateísmo militante, da traição, da perversão e da pouca vergonha dos políticos
“maquiavélicos”. Lá está.
Será melhor ser amado que temido, ou o
inverso? Preferível seria ser ambas as coisas, mas como é difícil conciliá-las
mais seguro será o ser temido do que o
ser amado, se só se puder ser uma delas.
Dedicado
ao Duque de Urbino, Lorenzo de Medici, e usando longamente como modelo o tão
mal visto César Bórgia, O Príncipe
daria a pior das famas ao grande Nicolò Macchiavelli.
A
cultura europeia, tanto ao nível do ensaísmo político como até ao nível, por
exemplo, das dramaturgias isabelinas, Christopher Marlowe e Shakespeare
inevitavelmente incluídos, integraria nos seus léxicos os termos “maquiavélico”
e “maquiavelismo” como sinónimos de imoralidade, manobrismo político,
expedientismo e falta de escrúpulos. Tudo isso e mais umas botas até ao século
XVIII. Então, Maquiavel passa a ser olhado e entendido como um moralista, como
uma percursora figura de proa da ideia italiana de independência e unificação.
Afinal de contas, escrevendo um guia para o tirano, Maquiavel mais não fizera
nas suas obras do que levantar as pontas do véu do Mal e revelar a natureza
mais profunda dos estados, dos poderes e das tiranías mesmas.
A
família Medici encomenda a Maquiavel a redacção de uma História de Florença,
mas não o promove a mais altas funções de Estado.
Em
1527 acontece o saque de Roma e na sequência indirecta dele a república é
reinstaurada em Florença. Maquiavel ainda está vivo – será por pouco tempo – e
sempre acreditara na restauração da república a seguir aos Medici, sempre
esperara por ela, e mais (segundo Burckhardt), teria até sonhado mais alto
ainda, e mais longe, com uma forma moderada de democracia política.
Mas
os Medici organizam em 1530 uma empresa de guerra contra a república florentina
e os florentinos partidários da república defendem-se heroicamente, ainda que
em inferioridade numérica. Maquiavel é que já não vive para assistir a isso.
O
pensamento de Nicolò Macchiavelli marcou culturalmente a Europa, e até para lá
das matérias militares ou estratégico-políticas. Calcula-se que Maquiavel
chegaria a influenciar muitos passos das
teorias relacionadas com negócios ou com a gestão das empresas, coma gestão dos
recursos humanos e com as técnicas de avaliação psicológica. E, apesar de todos
os preconceitos ou obsolescências, esse pensamento continua a fascinar-nos pela
agudeza das conclusões acerca de nós mesmos, seres humanos, visceralmente bons
ou originariamente maus que sejamos, ou as duas coisas, ou nenhuma delas.
Quem
somos nós?
Somos
o que somos. Para o bem e para o mal. Como se costuma dizer.
Os homens acabarão sempre por se revelar
maus, a menos que a necessidade os obrigue a ser bons.
Fico muito feliz por saber que o senhor Joel Costa continuou com as Questões de Moral. Aproveito para lhe manifestar a importância que o seu programa teve na estruturação do meu pensamento, da minha compreensão estética, durante os anos que esteve no ar. Oxalá soubesse eu defende-lo melhor quando o retiraram da grelha. Um dia, se houver oportunidade, saberei fazer-lhe justiça.
ResponderEliminarContinue a ensinar, senhor Joel.
Uma questão apenas: Onde posso encontrar o arquivo completo de todos os programas que foram emitidos?
Fica tanto por responder, por definir, no que respeita ao humano. Que bom é ler o que nos vai oferecendo...
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