terça-feira, 18 de março de 2014

              O ESTADO DA RAZÃO



Um Estado da Razão era o que seria suposto ser o estado de uma sociedade democrática. Ou, de outra maneira, o Estado que resultasse de um regime democrático. O pior podem ser as razões que uma razão de Estado comporta…
     

       Mas quem quiser levar os homens a agir racionalmente terá de aceitar levá-los de forma irracional, diz uma personagem, Mr. Scogan, de um romance de Aldous Huxley Férias em Crome (tradução portuguesa), que por acaso me apareceu entre mãos e a que não resisti chamar a esta descabelada prosa.
Resolvi aproveitar, com a competente vénia a Mr. Aldous Huxley, já falecido, apenas um diálogo entre duas das personagens, um jovem literato chamado Denis, e um mais velho e sabido que se pretende profeta, chamado Scogan.
Tudo o que se tem feito no mundo e na vida tem sido feito por loucos. Diz o tal Scogan a Denis durante um passeio por uma alameda de teixos.
        Scogan admite que o bom senso tem sido o principal defeito da sua existência, tal como virá a ser o defeito da existência do jovem Denis quando chegar à idade dele, e porque na idade dele ou se é ajuizado ou se é louco.
- Você sabe que… num mundo atilado eu seria um grande homem, mas sendo o mundo tal como é, não sou nada, para todos os efeitos não existo – diz Mr. Scogan.
Homens sensatos, como Mr. Scogan, não realizaram nada de importante neste mundo. São equilibrados demais. São simplesmente sensatos. Não possuem o dom da obstinação entusiástica que impulsiona os projectos, as massas, a vida.
E continua Mr. Scogan a discorrer: as pessoas até podem escutar de muito bom grado um sábio, um filósofo, mas apenas com a finalidade de se divertirem e passarem um bom bocado, como se ouvissem um solista de violino ou as piadas de um palhaço no circo. Quando é chegado o momento de agir de acordo com as ideias de um homem sábio e racional, não, não acontece nada.



- Meu caro Denis, sempre que a escolha teve de ser feita entre um homem de razão e um maluco, o mundo seguiu imediatamente o maluco.



Ora porquê… porque o maluco apela à alma das gentes para o que é fundamental, ou seja, para a paixão, para os instintos. Enquanto o filósofo só lhes inspira o superficial e o supérfluo. Isto é: a razão.



Scogan e o jovem Denis sentam-se num banco de madeira verde do jardim no meio de um maciço de alfazema.


                           

Lutero e Erasmo. Dois casos típicos.                 Erasmo é um homem de razão. As pessoas ouvem-no, em princípio. Scogan diz que ele aparecera como o virtuoso que tocava um sublime instrumento que era o intelecto. As pessoas admiram Erasmo, veneram-no. Mas Erasmo não consegue levar essas pesoas que o veneram a comportarem-se socialmente como ele entendia racional que se comportassem. Martinho Lutero, ao invés, um pregador exaltado, aparece então na vida dos povos. Lutero é um impetuoso, um apaixonado, um tipo mesmo violento. E Lutero, auto-convencido de coisas sobre as quais nem sequer pode haver certeza alguma, grita ao povo. E os homens seguem-no. Já ninguém se importa com a sensatez e a razão imaculada de Erasmo. 



      Lutero era real. Tão real e sério como uma guerra. Erasmo representava a moral superior, a decência. O povo deixou de o ouvir. Injuriaram-no até quanto à razão que tinha. Erasmo era um sábio. Faltava-lhe o poder de manipular e conduzir as massas.


A Europa segue Lutero e mete-se em guerras e perseguições por um século e meio entre banhos e banhos de sangue.



      Quem quiser levar os homens a agir racionalmente terá de levá-los por meios meios irracionais – é esta a perturbante moral desta personagem de Aldous Huxley.


Todo o que fundou uma religião cobriu a sua fundação de doutrinas e justificou, quer dizer, racionalizou o mais que pôde a religião acabada de fundar. Faltava transmitir a mensagem dessa nova religião. E se os fundamentos da religião nova eram racionais tanto quanto o podiam ser, os meios de transmitir a mensagem e conquistar prosélitos teriam de ser místicos, assombrados, a roçar a charlatanice, coisa detestável para um homem de razão.
Ora bem. A razão pura é impotente. Começa e acaba em si mesma. Não vai dar a nada. Não estimula uma acção colectiva.


- Mas é frívolo queixarmo-nos das coisas por elas serem como são – diz a personagem Scogan. - O que é absolutamente precisa é uma sã e racional utilização das forças da demência. Só assim, nós, homens de razão, conquistaremos o poder.


Como? Poder? O jovem interlocutor de Mr. Scogan declara com uma risada não estar interessado no poder. Aspirava tão somente a uma carreira literária. Mr. Scogan replica-lhe:
- Toda a gente quer o poder, meu jovem.
Queria ele dizer que toda a gente aspira de uma forma ou de outra a um poder. No caso daquele jovem tratava-se de um poder literário, perseguir as palavras, torcê-las, modelá-las, torturá-las, obrigá-las à obediência.


Canalizar as loucuras para o serviço da razão: missão de todo o homem de inteligência. O mundo não poderá ser deixado à sua sorte, ao arbítrio de maníacos apaixonados por si próprios, como Lutero ou Napoleão. Mais uma grande guerra e tudo será destruído. Os homens inteligentes deveriam combinar-se e conspirar para arrebatar o poder aos loucos imbecis que governam. Era tarefa inadiável fundar o Estado da Razão. E depois de fundado o Estado da Razão a tarefa era dividir os indivíduos em categorias. Mr. Scogan sugere uma sociedade repartida em três categorias, segundo as qualidades de espírito e de temperamento de cada um. Psicólogos devidamente treinados para o objectivo em vista dividiriam as crianças acabadas de nascer e elaborariam uma classificação delas. E cada criança teria uma educação adequada à sua categoria psicológica.

Aldous Huxley retoma depois o seu estilo profético e anunciador de uma nova ordem, ou das conveniências da instauração de um mundo moderno e perfeito e admirável e novo, e coloca na boca da sua personagem a ideal divisão das criaturas para um mundo que soubesse aproveitar as faculdades tanto dos homens de razão como dos místicos iluminados e tresloucados da comunicação. Classificação subtil e complexa, acerca de cujos contornos Huxley, com fina ironia, diz não competir aos profetas entrar em pormenores.
Inteligências dirigentes. Homens de fé. E rebanho. Eis as três principais divisões da população de um Estado da Razão.
Inteligências dirigentes: todos os que fossem capazes de pensar; todos os que soubessem e pudessem atingir um grau apreciável de liberdade. Uma selecção dos que conhecessem bem os problemas da vida prática. Seriam esses os governantes do Estado da Razão.
Os homens de fé. Eis o segundo patamar das competências no Estado da Razão. Aos homens de fé também Mr. Scogan chama os loucos que acreditam apaixonadamente em coisas que não fazem qualquer sentido, os que se dispõem a morrer pelos ideais e pelas ambições. Os donos de um formidável potencial de Bem e de Mal, que não podiam ser deixados a actuar ao acaso.


Fala de Mr. Scogan:
- Não existiriam mais Césares Bórgias, Luteros ou outros que tais. O desactualizado homem de fé e de ambição, produto acidental de circunstâncias brutas capazes de levar os homens às lágrimas, ao arrependimento ou ao crime, seria  substituído por um novo tipo de homem, aparentemente igual, mas diferente do homem de fé do passado.


Pois bem, o novo homem de fé empregaria paixão, ambição e entusiasmo na difusão de ideias razoáveis. Seria ele o instrumento das inteligências superiores que governariam o Estado da Razão.



       Claro que para tanto os homens de fé, depois de passados ao crivo psicológico, ou psicotécnico, logo à nascença, e seleccionados, teriam desde o berço uma educação específica, sob a supervisão das inteligências superiores. Seriam sugestionados e calcorreariam o  mundo como missionários pregando com todo o fervor obstinado as ideias frias e extremamente racionais das inteligências superiores que governavam a sociedade.
As ideias e projectos dos dirigentes superiores seriam realizados e uma década depois deixariam de ter préstimo, e então as inteligências superiores formariam novas gerações de loucos destinados a pregar as verdades eternas que se aplicassem à década seguinte.
Os loucos homens de fé, visionários de um suposto transcendente, o que fariam era agitar as multidões e conduzi-las. As multidões, precisamente. A terceira categoria dos indivíduos habitantes do imaginário e ideal Estado da Razão.
                          

      A terceira espécie de gente seriam os milhões, o rebanho, os desprovidos de algum tipo notável de inteligência criadora ou vocação, os incapazes da fé e do entusiasmo comunicante. Seriam evangelizados pela classe dos loucos e assombrados pregadores de um qualquer credo desde que ele fosse muito simples e muito satisfatório – assunto a decidir pelos superiores inteligentes.



       Interessante notar, primeiro, a cínica e anti-democrática visão de uma realidade: a grande massa dos indivíduos é destituída de assinaláveis qualidades e é mesmo estúpida e imprestável, quando, numa visão democrática de igualdades teóricas, não se admite a realidade dos incapazes funcionais e todos os homens são inteligentes à partida, porque todos têm o mesmo direito a sê-lo e a dizer publicamente as maiores bacoradas, quando não a ocupar os mais altos cargos e a assumir as mais custosas  responsabilidades.



Segundo: a divisão classista em três é muito comum no decorrer da História humana. Uma divisão que além de socialmente classista é historicamente clássica. Inteligências superiores governantes, homens de fé e rebanho na utopia de Huxley, convertíveis no discurso da História em nobreza, clero e povo. Aqui, embora, sem o determinismo hereditário nas classes superiores dirigentes. Mas, como digo, estamos a falar de uma utopia, bem entendido.
Seria igualmente necessário formar e educar os milhões que comporiam a categoria do rebanho. Seria preciso inculcar-lhes desde muito cedo que, por exemplo, a felicidade era impossível fora do trabalho e fora da obediência.
Seria preciso convencer os milhões do rebanho de que eram felizes, de que eram até pessoas muito importantes e que delas dependia muita coisa, ou quase tudo, e que não havia nada que fizessem que não fosse nobre, inteligente, útil, significativo. Seria esta a ideal plebe do Estado da Razão. Para esses, o mundo conhecido constituiria o centro do universo e seriam convencidos de que o Homem é superior à terra e à natureza e a ambas comandaria a seu bel talante. A plebe de um Estado da Razão trabalharia as suas oito horas por dia. Obedeceria cegamente aos seus superiores inteligentes. Viveria convencida da sua importância e, depois de doutrinada pelos homens de fé, estaria certa da sua imortalidade. Seriam indivíduos felizes como nunca outra raça o fora sobre a terra. O membros do rebanho, sugestionados sempre pelos homens de fé,  levariam a vida em estado de intoxicação ou de hipnotismo e desses estados nunca seriam acordados.



        Mr. Scogan acrescenta:
- Os homens de fé seriam os copeiros deste eterno bacanal, usando o vinho entorpecedor que os superiores inteligentes e governantes, atrás de cena, em sóbria, triste e ascética solidão, preparariam para intoxicar os seus súbditos.



- E qual seria o meu lugar nesse Estado da Razão? - pergunta Denis, o jovem literato aspirante à glória das letras.
E Mr. Scogan tem dificuldade em colocá-lo.
- Não poderias fazer um trabalho manual. És demasiado independente e és muito pouco influenciável para pertencer ao grande rebanho. Por outro aldo… deixa ver… também não tens nenhuma das particularidades requeridas para seres um homem de fé. E quanto ás inteligências superiores… - oh, as inteligências superiores teriam de ser maravilhosamente lúcidas. Teriam de ser penetrantes, impiedosas. - Meu caro Denis, na verdade não vejo onde pudesses ter lugar no Estado da Razão. Talvez só numa câmara de gás.


Não sei qual o ano de escrita e de publicação deste romance de Aldous Huxley, Férias em Crome.  Mas, pela alusão às câmaras de gás, pode inferir-se a proximidade do evento a que ele se refere. Podem concluír-se uma série de coisas. Quem seriam os superiores inteligentes – ou quem possam ter sido, ou quem poderão realmente - e actualmente - ser? Pode perceber-se bastante bem quem são os homens de fé desprovidos de razão mas com o dom de conquistar e arrastar as massas para a loucura e para a guerra.



      Huxley pode ter procurado nesta fábula o compromisso entre os dois modelos políticos dos quais a Humanidade nunca pôde saír. A democracia e a tirania, a ditadura, regime escaldante e capaz de levar os povos em estado de unanimismo a realizar alegremente os projectos mais  irracionais e violentos.
Huxley pontua as debilidades funcionais de uma sociedade extremamente organizada, racionalíssima e idealmente justa, todavia impotente no motivar os povos para qualquer projecto colectivo e transfigurador.



        Porque a razão pura é impotente. Como disse Mr. Scogan.
Nesta fábula sobre o trágico destino do homem comum, Huxley aponta algumas vantagens da ditadura – e quanto mais louca a ditadura mais eficaz – em mobilizar as massas para desígnios ilusoriamente redentores, para guerras purificadoras, nas quais o rebanho – que é rigorosamente comum aos dois regimes – se envolve sem murmurar, antes pelo contrário, cheio de entusiasmo. Todavia, seriam sempre ditaduras mobilizadoras e capazes de feitos notáveis de toda a ordem e no entanto sem respaldo na razão comum, no vulgar bom senso, na justiça, ou sequer na realidade.



      Huxley resume os problemas da governação das nações e escolhe de cada uma das formas incontornáveis de governo dos povos o melhor que cada uma possa ter para oferecer.
Oferecer a quem? Ao rebanho?
Mas a fusão é obviamente uma miragem, uma utopia irrealizável.



E em suma, o rebanho: a componente social a quem se destinam as virtuosas formas de governo, as teorias e as práticas políticas, e em função de quem actuam os superiores inteligentes e ultra-racionais tanto quanto os dementes obstinados e convictos de uma verdade. Uma verdade que o é, sim, mas sempre em alternância com a profunda e torpe mentira que também é.


O rebanho é o motor, a causa e o efeito, o beneficiário e a vítima, seja da razão pura, seja da demência mística. O rebanho é o sujeito e o objecto. O rebanho é a finalidade e é o meio que executa  os projectos dos superiores inteligentes como dos insanos homens de fé.
- É reconfortante pensar - diz Mr. Scogan - que milhões levam a vida a mourejar nas terras e nas fábricas para que nós os dois  possamos divagar sobre estas coisas.
Mr. Scogan pensa que, como todas as coisas boas deste mundo, o ócio e a cultura têm de ser pagos. De facto, alguém terá de pagar, sempre, de pagar tudo. Quem. O rebanho.
- Felizmente não são os ociosos e as pessoas cultas que têm de pagar – conclui Mr. Scogan. - Devemos estar profundamente agradecidos, meu caro Denis. Profundamente agradecidos.



       Pois cá para mim, na minha douta e insubmissa ignorância, perguntaria quantas vezes um Estado de razão se confronta com as razões que o suportam. Aquilo que mais nos pode atormentar  da parte dos estados, por mais fundados na razão, não é a razão ou sem razão dele, Estado, são as diferentes razões a que ele se submete quando procura a sua própria razão. Falando do Estado ou falando de muitas outras coisas, são quase sempre as razões que ofuscam o brilho da Razão.


1 comentário:

  1. Excelente tema. Oportunas citações. Autor brilhante e de uma atualidade incontornável.

    Muito obrigado!

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