OS
IRMÃOS MARX AFINAL ERAM SEIS
O
cinéfilo que só se preocupe com a História do Cinema nem sabe disto.
O
Groucho, o Harpo, o Chico, o Gummo e o Zeppo. Cinco. O Gummo e o Zeppo foram
desaparecendo da cena já não me lembro porquê, se é que alguma vez o soube. E
também não conto com o que morreu ainda miúdo, o Manfred. Mas vou contar com um
outro menos conhecido, ou pelo menos pouco conhecido no ramo a que os outros
cinco genialmente se dedicaram.
Claro,
amigos, estou a referir-me ao Carlos, o dialéctico.
Às
portas de Abril lembro-me sempre dos Marx, e em especial do Carlos, e ainda
mais depois de ter lido não sei onde o
mea culpa de Otelo Saraiva de Carvalho quanto à reforma agrária…
Bem
gostaria eu de poder falar sobre os outros, o Groucho, o Chico, o Harpo, e até o
Gummo e o Zeppo. Mas não tenho elementos. E por isso tenho de me contentar com
o Carlos, com a loucura, o humor ou o non
sense do Carlos, que alguns opinadores ainda consideram o mais sério
e ajuizado dos irmãos Marx, enquanto outros, mesmo assim lhe acham pilhas, o
dizem um estouvanado, e acham uma pena ele não ter feito filmes cómicos como os
outros. E eu diria: sisudo, está bem, mas, apesar de doente crónico da
dialéctica, não menos provido de loucura, humor, non sense… e irreverência, sobretudo. Embora sempre de palavras
sérias e desencantadas, barbaçana respeitável e expressão façanhuda. O Carlos
Marx. Ao tempo que não sei nada dele. Pergunto-me,
eu e alguns amigos: se ele ainda contasse alguma coisa no mundo destes anos
2000, que diria?
Talvez
ele, Carlos Marx, apesar do aspecto e do que deixou dito, não fosse
substancialmente um filósofo. O que não significa que não fizesse a sua
perninha no pensar mais alto. Talvez fosse mais um economista, um sociólogo –
ou, no fundo, um cómico que se entretinha e divertia mais pelas filosofias e
pelas economias do que pelas pilhérias.
Hoje,
pelo menos nós, os mais antigos, os que ainda vimos os flmes dos irmãos, quando
falamos dele pensamos logo num revolucionário de faca na liga e bomba
aparelhada e fumegante na mão. Mas o bom Marx, o impagável Carlos, cismava
muito. Era mesmo um pensador. E pensando, perguntava-se: que diacho de leis
presidem ao comportamento humano? Como será possível mudar a vida dos homens
sem infringir por demais essas leis?
E numa
teoria geral do Homem, seu comportamento e suas leis, o Carlos, englobava
filosofia, economia e sociologia. Uma totalidade que ele queria deslindar. E
começava por filosofar, ele e o amigalhaço, o Frederico, o Engels, Friedrich
Engels, outro barbaças, um metafísico que ria até chorar com a cena do camarote do navio em Uma Noite na Ópera e com o médico de Um Dia nas Corridas, quando às vezes
acontecia falarem dos irmãos do Carlos, e porque o Frederico, afinal de contas,
era um dialéctico em último grau e já desenganado pelos médicos – por isso é
que eles se davam tão bem.
Atribuem
a um deles, já não sei se ao Carlos, se ao Frederico, ou aos dois, a expressão
materialismo dialéctico – uma degenerescência grave dessa doença, a dialéctica.
Está mal. É falso. Eles podiam sofrer disso, mas não falaram disso nesses
termos. Pois não. O primeiro que falou em materialismo dialéctico foi um
célebre paciente russo que deve ter apanhado dialéctica numa viagem ao Cáucaso,
aos Urais, à Sibéria, não sei, e se chamou Plekhanov.
Marx,
o Carlos, não ia à bola com a filosofia. Preferia Uma Noite em Casablanca. Por entender que não havia interesse nem
proveito nenhum em estudar as ideias em si mesmas, só por si mesmas. As ideias
eram uma parte da actividade humana. Uma parte. Só se nelas se contivesse a tal
totalidade dessa actividade humana, fosse a do indivíduo isolado, fosse do
grupo de indivíduos.
E lá
vem então a dialéctica. Às vezes, O Carlos descuidava-se com os medicamentos e
tinha ataques de dialéctica, pois. E lá vinha os sintomas dolorosos mas aliciantes
da teoria e da prática. A teoria não vale um chavo por si mesma. E a prática
pode não ser grande coisa sem o fundamento teórico. Logo, as ideias, as teorias
não podem ser separáveis da prática, do concreto dos actos humanos. E os actos
humanos, regra geral, não se regem pela madura reflexão, nada têm de reflexão
teórica, as mais das vezes. Apenas acontecem. E quem diz actos humanos diz as
humaníssimas fezadas, as crenças.
As
coisas que existem acontecem e são só porque sim. Ele ainda falou disso ao
Groucho, a ver se ele pegava na ideia para um filme, mas o Groucho não foi
nisso.
Todos
nós, os antigos amigos – e até alguns discípulos - do Carlos, sabíamos disso:
não se pode isolar um facto, uma actividade, isolá-los para um exame sério, sem
termos de considerar a posição desse facto ou dessa actividade em toda a
evolução do conhecimento dos factos e das actividades humanas. Exacto: essa
praga terrível e muito contagiosa a que se chama História.
Um
facto e uma actividade são avaliáveis, estudáveis, no tal contexto, a
contextualização de que se fala muito na televisão. Contexto histórico;
evolução histórica. Se assim não for, estaremos a falar de abstracções, ou
ilusões sociais, patologias que também afectam muito a sociedade.
Porque
o Homem é capaz de inventar. É verdade, amigos. E ai, como o Carlos sabia disso
ao dar-se com os irmãos. O Homem é danado para inventar instrumentos – e para
os tocar, como o Harpo e o Chico. Eles inventavam instrumentos para intervir a
cada momento no processo de formação da realidade deles, que era a fantasia
deles passada ao celulóide. Inventavam esses instrumentos e não se ficavam
feitos parvos a olhar para eles. Inventavam-nos e utilizavam-nos. Eram homens.
E o
Homem desata a inventar instrumentos para quê, não me dizem? E utiliza os
instrumentos que inventa exactamente em quê? Para satisfazer necessidades. E
logo à cabeça necessidades do mais básico que se possa imaginar: comer, beber,
abrigar-se, aquecer-se, sentir prazer, multiplicar-se (procriar). E foi essa
capacidade de inventar instrumentos que pôs o Homem em conflito com a
mãe-natureza. Os instrumentos permitiram-lhe relacionar-se com ela, natureza,
conviver com ela, e depois, evoluindo, evoluindo, rivalizar em criação com ela,
abusar da paciência dela, conflituar com ela, violentá-la a ela, natureza – o
tal problema da violência doméstica. E até substituir-se a ela. Porque é que eu
já posso comer cerejas todo o ano? Porque é que eu posso estar até cheio de
calores dentro de casa se na rua, na natureza, estão não sei quantos graus
abaixo de zero? Porque é que eu já posso ter vida sexual activa aos 75 anos?
E do
Homem insatisfeito e curioso do que o rodeia e de si mesmo só pode esperar-se
aperfeiçoamentos, e que uma invenção leve a outra e a outra (o Groucho, o Chico
e o Harpo bem o ouviram), e sendo que cada invenção lhe sugere uma nova
necessidade, que para ser satisfeita exige uma nova invenção. E quem diz o
Homem está a dizer as sociedades que o Homem cria, os grupos, os clãs, as
nações, os estados. E quem diz novas necessidades diz novos prazeres, novos
gostos - lembrem-se de Duck Soup (não me lembro do título português)..
Disse-nos
o Carlos (a nós, aos antigos, aos que o frequentámos) que a capacidade técnica
do Homem é maravilhosa. E é única, como se sabe, em todo o reino animal.
Na
opinião do Carlos constitui mesmo essa capacidade técnica a natureza humana
fundamental. E é dessa capacidade técnica que derivam as mudanças, as profundas,
as lentas ou as súbitas. A História, em suma.
A
capacidade técnica do Homem para inventar instrumentos que acorram a
necessidades, a criação de novas necessidades que implicam a invenção de novos
instrumentos de onde decorrem outras necessidades, e mais a consciência que
ele, Homem, vai ganhando de tudo isso chama-se o quê? Pois claro, chama-se
História.
Ladino
este Carlos, não acham? Se pensarem bem vão ver que é assim mesmo, que ele
tinha razão. Pelo menos neste ponto. Foi uma pena não ter acompanhado os irmãos
na vida de cinema…
E de
tudo isso resulta o método chamado científico. Se formos a ver, desse método
dito científico de avaliação, de crítica e de vida, já se começara a falar no
séc. XVIII. Ciência igual a entendimento de uma matéria. Certo? Materialidade.
O Homem do séc. XVIII, no caminho da sua evolutiva precisão de instrumentos, e
na trabalheira de os inventar sempre novos para prover às sempre novas
necessidades que os novos instrumentos lhe impunham, desata a
desespiritualizar-se, a desmitificar-se (ou a desmistificar-se) e desata a chamar-se
a si mesmo de materialista.
E,
materialista, começa a reparar no seu passado de inventor de instrumentos e de
necessidades. E no seu passado o Homem do séc. XVIII detectou uma quantidade de
disparates, de loucuras mesmo, de ilusões e de alguns actos tresloucados
nascidos do âmago desses disparates, dessas loucuras, e fundamentalmente dessas
ilusões que ele julgara serem
necessidades básicas e para as quais inventou instrumentos, e necessidades
que afinal nem eram básicas e nem eram sequer necessidades. (E disso falou o
Carlos aos irmãos e eles bem se aproveitaram das ideias dele.)
E era
preciso que alguém inventasse um novo instrumento para interpretar a razão de
ser dos instrumentos inventados no passado e respectivas consequências. A esse
novo instrumento chamaram os homens do séc. XVIII método.
Método
que era observar, experimentar primeiro o funcionamento dos instrumentos e dos
actos deles decorrentes – método empírico, disseram. Método que era os irmãos
ensaiarem primeiro muito bem uma cena antes de a filmarem. Método que era
observar rigorosamente, sem paixão ou preconceito, a materialidade dos
instrumentos, dos factos e dos actos – método científico. Científico,
sistemático, empírico, juntar dois mais dois, raciocinar, quer dizer, método rigoroso.
E a partir dele interrogar-se, pôr-se questões quanto ao conjunto do
instrumental humano até aí usado para prover necessidades e satisfazer gostos.
E o
que o Homem do séc. XVIII viu do instrumental humano que a História contava
para trás de si era uma quantidade de superstições e de crenças sem qualquer
base de realidade e que os mais proeminentes do rebanho humano, cabeças coroadas, chefes
militares, sacerdotes, tinham aproveitado para submeter os demais. Parece
simples – só o Carlos para dizer destas. Parece simples mas para o Carlos não
era nada simples.
Não
havia afinal verdades eternas, verdades sem tempo. Não há sentenças universais
válidas para todo o tempo e para todo o lugar. Cada passo novo na capacidade
técnica do Homem implicará novas fronteiras, mais alargados campos de
observação e acção. E não só no que à materialidade possa dizer respeito. Também
ao espírito. Ao intelecto. À moral, ora aí está…
Nenhuma
ideia pode nascer separada de um conjunto. Os irmãos perceberam. Cada gag haveria de ter um contexto e
proporcionar novos gags. As ideias
são instrumentos, podem determinar novas invenções e novos instrumentos, como
podem impor outros e novos comportamentos sociais.
Oh,
quantas ideias e quantos instrumentos na História humana para satisfazer
necessidades!
Os
exércitos (excelente instrumento) e com ele e para ele, a pólvora (excelente
invenção). A agricultura (olha que excelente ideia!). A escravatura (no
contexto de uma dada época e no paradigma moral dela uma excelente ideia,
certamente). O feudalismo: excelente instrumento, no quadro do tempo e da cena
que se está a filmar, sempre no quadro do tempo próprio de cada piada,
relativo, dinâmico e nunca absoluto e estático esse tempo.
Se a
capacidade técnica, dom exclusivamente humano, determina as ideias e invenções
humanas, e as formas de vida humana não são, por outro lado, nem as ideias nem
as formas de vida a determinar a capacidade técnica do Homem, então são as
necessidades que suscitam as ideias e não as ideias que determinam as
necessidades.
As
ideias. Não mais do que a parte superior da vivência humana. E não é pouco. Não
é pouco nem é muito. É o que é. As ideias são a fonte do que o Carlos chama de
super-estrutura, a estrutura do topo que é suportada pela estrutura da base. A
cena filmada e montada pelos irmãos sobre a base de uma tomada de vistas,
tomada essa assente num script básico previamente escrito. É boa não é? E a
estrutura da base das sociedades humanas é a forma económica que reveste um
grupo humano.
A
arquitectura da base ou a forma económica adoptada pelo grupo humano é
condicionada pelo tipo e quantidade de instrumentos que lhe permitam manter
essa forma económica, e igualmente pelos indivíduos que sejam donos ou
controlem tais instrumentos – caso dos produtores de Hollywood nas actividades
dos irmãos dele.
E às
ideias, ao conjunto delas, produto da super-estrutura da organização humana, o
Carlos chamava ideologia – do que ele se ia lembrar, diacho do rapaz…
E
também há que ver que tais ou tais condições sociais podem não propiciar o
aparecimento de tais ou tais ideias. E quem diz ideias diz mesmo invenções ou
descobertas materiais, instrumentais. E algumas, já inventadas enquanto apenas ideias, poderão esperar os momentos
históricos mais propícios para assumirem materialidade e serem postas a uso – a
dependência do Groucho, do Harpo, do Zeppo e do Chico da política dos estúdios, At The Circus, a propósito.
Leio
que a máquina a vapor foi inventada, foi ideia, em Alexandria – e séculos e
séculos foram passados antes que fosse materializada em instrumento para suprir
necessidades básicas – o Carlos lembrou-se disto, vejam lá. Ou o submarino, ao
que dizem inventado pelo Leonardo, o da Vinci, outro cómico impagável do nosso
imaginário…
É o
moinho movido pelo vento que vai engendrar o regime feudal. (E esta? Pena o
Groucho não a ter aproveitado.)
É o
tear mecanizado que origina a realidade de um mundo industrial.
Moinho,
invenção que leva a um tipo específico de organização da sociedade. Organização
da sociedade derivada da invenção do moinho de vento que origina pareceres,
opiniões, comportamentos e vidas em conformidade. Opiniões, comportamentos e
vidas que pretendem conservar esse tipo de sociedade, esse modo específico de
aquisição e distribuição do poder.
Então
e o espírito, grande Carlos? Isso não é vida humana?
É. O
espírito manifesta-se materialmente em obras, obras de arte, por exemplo, obras
do Direito, do pensamento. Os filmes dos irmãos, os Marx Brothers, também, claro. Obras e
instituições. Instituições que podem até ser morais, como as instituições filantrópicas. Que
podem também ser jurídicas, religiosas. E que são modo de vida global de uma
sociedade humana. E que são necessidades.
Invenções
e ideias transformam as necessidades – quer dizer as formas de viver.
Transformam as necessidades que lhes deram origem. E segredam ao Homem um novo
desejo/necessidade. E provocam no Homem novas invenções, novos instrumentos
para suprir novas necessidades. E criam por isso novas formas de sociedade.
São as
formas assumidas na luta pela sobrevivência – a primeira de todas as
necessidades - ou pelo poder, e sua identificação, o segredo da compreensão da vida social.
E com
o Carlos Marx – e já antes dele com os chamados empiristas de Setecentos –
passa a ser-nos proibido pensar e dizer de alguma verdade que é intemporal, ou
atemporal. Depois do que o Carlos nos disse e do que os filmes dos irmãos dele
nos mostraram, isso passará a ser um absurdo - vejam lá se se lembram do Go West, de 1940...
A
verdade é uma relação.
A
verdade é uma relação entre o pensamento humano e os objectos desse pensamento.
E nem objectos nem pensamento são algo de estável, imutável. Eles mudam, olá se
mudam, mudam e bem. Mudam à medida da mudança das condições históricas.
Aquele
que está preso, vive e pensa na sociedade como um prisioneiro, porque alguma
ele fez contra os modos de viver e a moral dessa sociedade; ele pensa-a de
certa maneira e quer modificá-la. Ao passo que aquele que se sente bem numa
dada sociedade, solto e em harmonia com ela, pensa de maneira diferente, e
consequentemente age de maneira diferente, porque o seu ideal consiste em
manter essa sociedade em que se sente tão bem tal como ela é, tal como ela
está, e não quer ouvir falar em transformações. E até porque o fluxo das suas
necessidades como que cessou. Enquanto, para o que está preso, o fluxo das
necessidades aumentou de caudal, quer ver-se livre, e para se ver livre sabe
que alguma coisa tem de mudar. Algo na sociedade – ou na circunstância - que o
mantém preso terá de se transformar.
A
liberdade. Que nos disse a isso o Carlos? De vez em quando é bom a gente
lembrar-se do que ele nos disse há tantos anos…
Liberdade
é vitória sobre os obstáculos que existem entre o Homem e as suas
necessidades..
Boa!
Obstáculos
que tanto faz sejam da natureza como sejam intrínsecos ao Homem, as suas
paixões, a sua selvejaria auto-destrutiva…
Liberdade
é controlar sábia e rigorosa e racionalmente os recursos ao dispor da sua
necessidade. E liberdade tão mais risonha e compensadora quanto mais esses
recursos forem abundantes, quanto mais homens possam controlar de facto esses
recursos.
Lembrem-se
daquela cena de Monkey Business – não
me lembro do título em português – essa cena, exactamente.
Reside
na História, e seu estudo, a chave do enigma humano.
Avaliar
factos e verdades esquecendo ou ignorando contextos é jamais encontrar as
respostas para esse enigma humano. E perder definitivamente o sentido. Quando
estava nos dias dele o Carlos dizia coisas que nos deixavam de boca aberta,
acreditem. Até os endiabrados irmãos pasmavam…
Liberdade
individual… propriedade privada… pois, pois… é um caldinho de alto lá com ele…
justiça económica… ui,pessoal!... direitos individuais… tudo expressões que
podem depressa perder o sentido em certas sociedades primitivas, naquelas em
que a ideia mesma de propriedade não passava pela cabeça de ninguém – isto no
tempo do Carlos, já se vê. O primado da propriedade privada não é intemporal
como nos quiseram, e querem, fazer crer. E muito menos universal.
Mas já
um amigalhaço intelectual e percursor que o Carlos nunca chegou a conhecer pessoalmente, o Jorge,
Jorge Frederico, mais conhecido pela alcunha, o Hegel, viera dizer ao mundo que
um dos aspectos marcantes da História humana era o movimento das crenças, das
culturas e correlativas mentalidades. E que tais coisas podem criar impulsos
sociais e constituir influências decisivas, reflexos de um progresso da
materialidade sobre a mente humana, e transmitindo às acções subsequentes uma
mensagem de eficácia, isto é, o que mais e melhor contribuísse para uma vida
social apta a satisfazer necessidades materiais.
Armas.
Olá! A moral. A moral enquanto, por hipótese, juízo de valor. Bem, pode ser uma
arma. Uma arma dissimulada mas eventualmente eficaz na luta pela supremacia – ou
até na luta pela sobrevivência.
Cada
marco na História do Homem é uma tensão entre a atitude dominante das
instituições e tudo aquilo que se lhe oponha. Tensão que produz um conflito
entre forças que separam a actividade humana – não esquecem os amigos dele que
o Carlos era um fan do Heraclito. É o
conflito constante entre os sentimentos, o pensamento e os comportamentos que
determinam a mudança – ou, sublinhado por mim com sarcasmo, aquilo que é comummente
designado por progresso… e quando eu, envelhecido amigo e admirador do génio do
Carlos, já não sei bem se todo o progresso terá por força de consistir em
mudança…
Ou
sim, está bem… alguma mudança terá de haver, bem vistas as coisas…
E a
questão das classes. Alguém se lembra do Carlos a falar disso? Oh, oh, os
irmãos lá em casa mudavam logo de conversa…
O Carlos falava explicitamente da burguesia,
senhora dos poderes e dos instrumentos já no tempo dele. E para ele a moral
podia ser um alibi, um instrumento disfarçado de uma classe preponderante para
submeter outras.
Classes.
Pff. Uma classe condenada pela História – estou a pensar na aristocracia dos
tempos franceses pré-revolucionários, segundo o que o Carlos nos dizia, que
podia não ser capaz de compreender o mundo em que se movia e que supunha
dominar. Por causa dos naturais processos de defesa, processos psíquicos
colectivos que lhe ofereceram o dom do optimismo e lhe concederam visões
idílicas quando de derrocada iminente se tratava.
O que
o Carlos nos contou a respeito deste assunto foi, se não estou em erro, que uma
classe era um grupo de pessoas que se uniam por algum objectivo social que não
era muito mais do que a necessidade de adquirir qualquer coisa que ampliasse a
liberdade daquele que possuía essa coisa, aumentando assim a satisfação das
suas necessidades.
E não
será novidade para ninguém que a História da Humanidade, para o Carlos, também
não era muito mais do que a História da luta de classes. Cá está. E foi a
partir de uma forma primitiva de comunismo que o Homem deu início à sua
fabulosa carreira sobre a terra. E essa forma de comunismo primitivo esvaiu-se
à medida que a capacidade técnica do Homem inventava novos instrumentos. E
instrumentos esses que os proprietários deles usavam para sacar daqueles que
não os tinham uma coisa só: trabalho.
E os
que inventaram e tomaram posse dos novos instrumentos passaram as passas do
Algarve para conservarem os meios instrumentais que lhes permitiam explorar em
seu proveito os que não os tinham.
E toma
lá que já almoçaste, diria o Carlos, se fosse ainda vivo…
Simples
e claro como água. Essa exploração quantificava-se através da diferença entre o
custo do que era necessário para manter os outros capazes de produzir e o valor
daquilo que eles produziam.
E
ainda pode haver gente que fale a torto e a direito de mais-valias e não saiba
o princípio simples em que ela foi calculada. E nem saiba que foi o Carlos que num
dia de paródia com os irmãos definiu essa equação.
Aquele Carlos!
E
também talvez não saiba que é a essa dita mais-valia, que remonta às mais
primitivas das sociedades humanas, que se usa chamar capital.
E
ainda assim pode ser que muitos não saibam que é este chamado capital o fulcro
daquilo a que o Carlos costumava chamar luta de classes - e que agora todos fazemos por esquecer,
porque todos somos induzidos a dizer como o outro, o socialista convicto:
abaixo o capital, para a gente lhe chegar melhor…
Pois
é. Moral. E classes. E Justiça. E piedade. E bondade. E liberdade. Parecem
integrar o conjunto das tais categorias intemporais, valores humanistas
universais.
Parecem.
Para o espertalhão do Carlos não era assim. Para ele, como para os irmãos, não
passavam de ficções e só a História poderia julgar tais conceitos. A História,
evidentemente, quando correlatada com as necessidades humanas. E classes porque
um acto que vá ao encontro dos interesses da classe que domina é considerado
moral, bom, justo; e porque se o mesmo acto não for para esses mais do que um
obstáculo, então passa a ser imoral, mau e injusto.
Quem
segue na vanguarda material da posse dos instrumentos capazes de suprir as
necessidades humanas mais básicas é quem determina todos os valores, toda a
moral.
Toma
lá que já almoçaste…
Lembrei-me do 25 de Abril por causa do dilema do cabo
apontador da metralhadora e por causa das disponibilidades do coronel Otelo
para mudar de regime. E logo atrás da lembrança dessas personagens, dessa
madrugada e desse dia veio a lembrança recorrente de todos os meus 25’s de
Abril, o Carlos, o sexto irmão Marx, o que se dedicou ao humor de outra
maneira…
Segunda-Feira, hora de almoço (13h-14h) - era sempre a hora sagrada das Questões de Moral, na «Antena 2». Mais uma vez, muito obrigado, Joel Costa...
ResponderEliminarContradições da mente humana: Carlos Marx, judeu alemão "londrino" - e talvez o pensador intelectualmente mais abusado de todos os tempos -, curiosamente, terá confessado a um amigo, numa célebre epístola, que seguramente ele próprio estava longe de se considerar um marxista...
Mas lá que o seu pensamento moldou decisivamente o Mundo do Séc. XX, disso ninguém pode ter dúvidas!
Que ele vá ainda a tempo de moldar alguma coisa neste Séc. XXI (em que vamos todos morrer), pelo contrário, já muito poucos arriscarão pôr as suas mãos no fogo.