A
SOCIEDADE DOS OBESOS ÓBVIOS
-
Não sei o que é que o teu pai e a tua mãe te dão a comer… sei é que estás a
engordar de dia para dia…
- Este é da qualidade
dos que nem precisam de comer para andarem gordos…
- E com respeito a
trabalho, vida, bulir… futuro?
- Ando a pedir.
-Vê se tens cuidado ao
dizer isso…
-Andas a pedir?
- Ao tempo, tio!
- Mas espera, não é para
ele, coitadinho. Meteu-se numa associação… cívica…
- A Sociedade dos Obesos
Óbvios…
- Obesos óbvios?
- Há os Alccólicos
Anónimos, não há, tio? Qualquer alcoólico pode ser anónimo… um infeliz tabagista,
como o tio, podia ser mais ou menos anónimo… só fumar em casa, às escondidas…
- Até os carteiristas do
Metro são anónimos…
- Até muitos
heroínomanos e cocaínomanos…
- São anónimos…
- Pois são… e os dealers
são completamente anónimos…
- Ele até há gestores
públicos anónimos…
- Só um obeso não pode
ser anónimo…
- Exactamente.
-
Todo o obeso é um óbvio. A obesidade também é uma obviosidade. E uma
obviosidade pode ser uma obesidade.
-
Obesidade… obviosidade…
-
É o problema deles, coitados.
-
Quem olha para nós, tio, está logo a ver tudo…
-Não
se podem dar ao luxo do anonimato, coitados…qual é o obeso que pode esconder a
sua condição?
-Nenhum,
pai, nenhum!
-Uma
dieta não seria o melhor?
-Não
chegava. Na figura deles estão chapados uma quantidade de hábitos condenados
pela sociedade contemporânea, coitadinho, meu pobre menino… gula, intemperança
de toda qualidade, vício, vadiagem, avidez, ansiedade, preguicite, cheiro de
suor, hipertensão, gulodice, lambarice, diabetes, incontinência alimentar,
pouco trabalho, despreocupação, sedentarismo, ausência total de culpa…
-Assim
é, tio. A sociedade aponta-nos o dedo e denuncia a nossa maneira escandalosa de
encarar a vida. Por isso decidimos associar-nos para a solidariedade…
-Têm
mesmo uma associação?
-Sociedade Portuguesa
dos Obesos Óbvios.
-Mas espera… então… então também o nome da sociedade é óbvio… como é que se diz…
é uma redundância… já se sabe que todo o obeso…
- Ora bem… é o que eu
digo…
- Um pleonasmo que não
nos preocupa… eles, os fundadores, quiseram dar mais força ao nome da
sociedade… mais dramatismo…
- E é à pala disso,
desse dramatismo todo, que andas a pedir?
- É.
- Trabalhar… está
quieto…
- Não arranja,
coitadinho. Não tem figura para trabalhar…
- Vês algum? Sim… dos
peditórios que fazes…
- É tudo solidariedade.
Ainda tenho o meu pai para me sustentar. Há outros que não. O peditório é para
ajudar os nossos associados obesos a custear as
dietas…
- Que saem caríssimas,
nem inaginas… e quando, coitados, estendem a mão na rua toda gente pergunta
para onde vai o dinheiro. O mundo está assim.
- Eu não dava esmola a
um calmeirão destes, a um gajo anafado como o teu filho… com franqueza!
- Experimente o tio cumprir
uma dieta à risca, à séria…
-Este não precisa.
Conheço-o há mais de 30 anos e sempre um carga de ossos, magro que nem um cão…
-Legumes, cereais,
saladinhas, arrozes integrais, massas integrais, pães inegrais, aves integrais,
peixes cozidos, carnes grelhadas, natações, aeróbicas, saunas, massagens,
ginásticas, plásticas, manutenção…
- Manutenção da gordura!
- Constante renovação de
guarda-roupas, os fatos de treino para aqueles nosssos circuitos de jogging…
- Tudo isso é um
dinheirão! Outros frequentam cursos de … como é, Fábio? Budismo. Budismo Zé. A
ver se…
- Mas também temos os
obesos conformados…
- Esses…
- Desistiram.
- E continuam a ser
sócios…
- Desistiram de deixar
de ser obesos. Temos que praticar a solidariedade também para com esses…
- Pois é, têm que ter de
seu para continuarem a comer que nem umas frieiras. Se emagrecem, são expulsos
da associação…
- Achamos que a
sociedade tem obrigações para os que preferiram conservar uma obesidade
majestosa… cozidos à portuguesa, feijoadas à brasileira, massas à italiana,
crepes à francesa, molhos americanos, caris à indiana, porco à chinesa, tartes
variadas, cervejame, batatame frito a toda a hora, Haagen Dazs, magnuns a meio
da noite, coca cola sempre, bacalhauzadas, whiskies, gins, vodkas, sumos,
chocolates, sumóis, tintóis…
-E tem que ser tudo à
barba longa. Para os manter gordíssimos, coitados.
- Acima de tudo, evitar
o exercício físico. Não mexer uma palha. Conservar este aspecto repugnante. E
assistência psicológica com vista a uma ausência total de vergonha quanto à
condição física e ao aspecto.
- Também sai caro… parecendo
que não…
-
Por acaso até me parece que sim! E quem é que os financia?
-
Peditórios. É o que o rapaz te está a dizer. Meu pobre filho, que leva os dias
de mão estendida, cafés, restaurantes, transportes, clínicas, vias públicas…
-Empresas…
-Mas
também temos contribuições particulares…
-Os
obesos ricos…
-Executivos
gordíssimos…
-Que
há cada vez menos… não é filho? Não sei onde é que este mundo vai parar…
-
Gestores públicos… deputados… cada vez mais gordos, estou a ver…
-
Não, esses agora andam magros como cães, andam cheios de dinheiro para as
dietas e para o squash. Mas também há magros a contribuir, uma loucura!, nem
imaginas...
-
Escanifobéticos escanzelados e caritativos…
-
Havias de ver… paus-de-virar-tripas esclarecidos!
-
Oferecem dinheiro, jóias de família, coisas de muito valor. Só por exorcismo…
-
Cada vez ando a perceber menos esta vida, isso é que eu sei. Porque é que Deus
não me leva? Antes que eu comece a dar em doido varrido!
-
E quem te garante que já não deste?
-
Os magríssimos dão… só para ver se Deus não os castiga um dia fazendo-os
engordar. As senhoras mais esticadinhas do jet set ajudam-nos muito…
-
Má consciência!
-
Pois é…
-
Quando lhes apetece o seu bolito. Quando se excedem numa daquelas festas…
-
O grande problema é todos quererem saber para onde vai o dinheiro quando
contribuem. Essa é que é essa…
- Já ninguém pratica a
caridade desinteressada. Não sei para onde vai o mundo…
- Para onde vai mas é o
dinheiro…
- Parece que todos têm
medo de estar a financiar a boa vida dos nossos corpos gerentes.
-
Vêem o mal em tudo!
-
Eu estendo a mão, primeiro que nada, aos meus irmãos de condição, os baixotes
com mais de 100 quilos. Mas até esses desconfiam.
-Calcula
tu… os gordos… antes uns tipos tão pacholas… agora até eles andam desconfiados.
Não se lhes pode falar em dinheiro.
-Só
dizem que vai para aí muita pouca vergonha.
-
E não vai?
-
Não sei, tio… sei é que primeiro que se desfaçam de uma mísera nota querem
saber quanto ganham os nossos corpos gerentes, quanto ganha o presidente,
quanto ganha o secretário…
-
O tesoureiro, antes de mais nada. Não é, filho?
-
É.
-
E quanto ganham?
-
Não são cargos remunerados.
-
Mas ninguém acredita nisso! Diz-me cá… em que mundo vivemos, amigo?
- Em que mundo vivemos, tio ?
-
Quem é que vai acreditar que alguém se dedique a uma causa humanitária sem
olhar a dinheiro? Vocês não queiram fazer de mim mais parvo ainda do que eu já
sou…
-
Em que mundo estamos, tio ?
-
Também tu ? Será que já ninguém acredita no amor ao próximo?
-
Evidentemente que não!
- Mas ó tio, ali ninguém
recebe ordenado. O nosso presidente apenas tem direito a um subsídiozito de três
mil euros mensais. Para acorrer às pequenas despesas dele, os transportes, e
assim. Mais nada.
- Um subsídiozito?
- É uma ridicularia, tio,
não esteja com essa cara!
- Dois mil por mês? Uma
ridicularia?
- Da maneira como a vida
está tens que que admitir que é.
- Temos que ser
compreensivos.
-Estou a ver que vocês
são mesmo muito compreensivos…
- Fora disso, não recebe
um tostão.
- Em que mundo vivemos,
meu Deus!
- E mais ninguém recebe.
A não ser os subsídios de alimentação, o subsídios de residência para quem não
é de cá, as ajudas de custo nas viagens que tiverem de fazer ao serviço da
sociedade. O normal.
- É preciso ver o tempo
que as pessoas perdem com a sua dedicação à causa…
- E esses?
- E esses o quê?
- Quanto recebem?
- O secretário e o
tesoureiro? Um bocadinho menos. Oitocentos e mil euros, respectivamente.
- Por mês?
- Mensais, sim. O nosso
orçamento não dá para mais. Coitados, eles já perdem muito do seu tempo com a
sociedade, vão lá todos os 15 dias.
-E tudo livre de impostos…
- Naturalmente, tio,
tudo livre de impostos. A sociedade não tem fins lucrativos.
- E tu Aduzindo, não
queres ajudar aqui o meu Fábio Diogo?
- Eu?
- Não tens ninguém lá
dos teus conhecimentos aí com 130 quilos?
- Por acaso até conheço
alguém…
- Podia fazer-se sócio.
- E se não quisesse
fazer-se sócio, por uma questão de solidariedade, visto o mundo estar como
está, podia dispensar-nos um pequeno óbulo…
- É uma questão de
falar…
- Não há nada como a
gente falar…
- E isto é a gente a
falar, tio. O tio sabe por acaso se essa pessoa não terá para lá esquecido
entre os trastes velhos do seu avôzinho assim um… um Miró… qualquer
insignificância assim, sem importância… que queira doar?
- Um Miró?
- Ó homem, quem diz um
Miró, diz um…
- Vocês devem estar a
mangar comigo…
- Chagall… Monet… Dali… a
gente agradece infinitamente…
- Já agora… um Picasso…
- Pode ser mesmo um Van
Gogh. Também serve. Não interessa a cor. Todos dão abatimentos ao IRS. Mas o melhor era o Miró…
- Agora pergunto eu,
quem é esse Miró?
- Não interessa para
agora… combinamos um encontro no belíssimo palacete que nos foi cedido pelo
Estado e onde funciona a nossa sede provisória e lá tratamos de todos os
pormenores legais de tão generosa doação.
- Agora que me estão a
falar nisso de pinturas… há uma senhora ainda aparentada com os sogros do meu
Ferdinando que herdou há tempos um quadrito autêntico do… sei lá agora o nome
dele…
-
Goya!
- Velasquez!
- Miró!
- Dali!
- Um daqui serve…
- Gris!
- Deve ser Renoir!
- É capaz de ser
Gauguin!
- Calem-se! Será um
desses…
- Hurra!
- Já ganhaste o dia, meu
filho, os meus parabéns. Hurra!
- Um momento, tio…
combinamos já uma data…
- Ó rapaz, mas eu não
sei…
- É só ver aqui a minha
agenda.
- Não te preocupes, o Fábio
vai falar com essa tal senhora gorda…
- Ela não é gorda…
- Então?
- Pesa uns 40 quilos, mas
é muito vaidosa e tem uma crise de coração de cada vez que pensa que pode
engordar…
- Essas são a
especialidade do Fábio. O Fábio convence-a em duas penadas!
- Esta semana já não
pode ser, tio, vou amanhã para Paris… trocar experiências com a comunidade gorda
de lá. Na outra semana também é mau. Tenho que ir a Nova York trocar
experiências. Os executivos de lá estão a ir de cana, parece que afinal… o
mundo está assim.
- Mas que grande
berbicacho que vocês me estão a arranjar…
- E para o mês que vem…
para o mês que vem vou visitar os nossos irmãos balofos brasileiros, os que
vivem naquelas pobres favelas de Búzios e de Angra dos Reis… as coisas por lá
não andam bem…
- Há quem diga que é das
caipirinhas falsificadas.
- Para o outro mês são
as minhas férias.
- Vai até às Bahamas,
coitadinho. Que é que queres, ele também tem que se distraír…
- Bahamas! Calcule o tio
que eu, já há tanto tempo a pedir, e ainda não conheço as Bahamas…