domingo, 27 de abril de 2014

            A SOCIEDADE DOS OBESOS ÓBVIOS





- Não sei o que é que o teu pai e a tua mãe te dão a comer… sei é que estás a engordar de dia para dia…
- Este é da qualidade dos que nem precisam de comer para andarem gordos…
- E com respeito a trabalho, vida, bulir… futuro?
- Ando a pedir.
-Vê se tens cuidado ao dizer isso…
-Andas a pedir?
- Ao tempo, tio!
- Mas espera, não é para ele, coitadinho. Meteu-se numa associação… cívica…
- A Sociedade dos Obesos Óbvios…
- Obesos óbvios?

                                            

- Há os Alccólicos Anónimos, não há, tio? Qualquer alcoólico pode ser anónimo… um infeliz tabagista, como o tio, podia ser mais ou menos anónimo… só fumar em casa, às escondidas…
- Até os carteiristas do Metro são anónimos…
- Até muitos heroínomanos e cocaínomanos…
- São anónimos…
- Pois são… e os dealers são completamente anónimos…
- Ele até há gestores públicos anónimos…
- Só um obeso não pode ser anónimo…
- Exactamente.


- Todo o obeso é um óbvio. A obesidade também é uma obviosidade. E uma obviosidade pode ser uma obesidade.
- Obesidade… obviosidade…
- É o  problema deles, coitados.
- Quem olha para nós, tio, está logo a ver tudo…
-Não se podem dar ao luxo do anonimato, coitados…qual é o obeso que pode esconder a sua condição?
-Nenhum, pai, nenhum!
-Uma dieta não seria o melhor?
-Não chegava. Na figura deles estão chapados uma quantidade de hábitos condenados pela sociedade contemporânea, coitadinho, meu pobre menino… gula, intemperança de toda qualidade, vício, vadiagem, avidez, ansiedade, preguicite, cheiro de suor, hipertensão, gulodice, lambarice, diabetes, incontinência alimentar, pouco trabalho, despreocupação, sedentarismo, ausência total de culpa…


-Assim é, tio. A sociedade aponta-nos o dedo e denuncia a nossa maneira escandalosa de encarar a vida. Por isso decidimos associar-nos para a solidariedade…

                                          

-Têm mesmo uma associação?
-Sociedade Portuguesa dos Obesos Óbvios.
-Mas espera… então… então também o nome da sociedade é óbvio… como é que se diz… é uma redundância… já se sabe que todo o obeso…
- Ora bem… é o que eu digo…
- Um pleonasmo que não nos preocupa… eles, os fundadores, quiseram dar mais força ao nome da sociedade… mais dramatismo…
- E é à pala disso, desse dramatismo todo, que andas a pedir?
- É.
- Trabalhar… está quieto…
- Não arranja, coitadinho. Não tem figura para trabalhar…
- Vês algum? Sim… dos peditórios que fazes…
- É tudo solidariedade. Ainda tenho o meu pai para me sustentar. Há outros que não. O peditório é para ajudar os nossos associados obesos a custear as  dietas…
- Que saem caríssimas, nem inaginas… e quando, coitados, estendem a mão na rua toda gente pergunta para onde vai o dinheiro. O mundo está assim.
- Eu não dava esmola a um calmeirão destes, a um gajo anafado como o teu filho… com franqueza!
- Experimente o tio cumprir uma dieta à risca, à séria…
-Este não precisa. Conheço-o há mais de 30 anos e sempre um carga de ossos, magro que nem um cão…


-Legumes, cereais, saladinhas, arrozes integrais, massas integrais, pães inegrais, aves integrais, peixes cozidos, carnes grelhadas, natações, aeróbicas, saunas, massagens, ginásticas, plásticas, manutenção…
- Manutenção da gordura!
- Constante renovação de guarda-roupas, os fatos de treino para aqueles nosssos circuitos de jogging…
- Tudo isso é um dinheirão! Outros frequentam cursos de … como é, Fábio? Budismo. Budismo Zé. A ver se…
- Mas também temos os obesos conformados…
- Esses…
- Desistiram.
- E continuam a ser sócios…
- Desistiram de deixar de ser obesos. Temos que praticar a solidariedade também para com esses…
- Pois é, têm que ter de seu para continuarem a comer que nem umas frieiras. Se emagrecem, são expulsos da associação…

                                                                       

- Achamos que a sociedade tem obrigações para os que preferiram conservar uma obesidade majestosa… cozidos à portuguesa, feijoadas à brasileira, massas à italiana, crepes à francesa, molhos americanos, caris à indiana, porco à chinesa, tartes variadas, cervejame, batatame frito a toda a hora, Haagen Dazs, magnuns a meio da noite, coca cola sempre, bacalhauzadas, whiskies, gins, vodkas, sumos, chocolates, sumóis, tintóis…


-E tem que ser tudo à barba longa. Para os manter gordíssimos, coitados.
- Acima de tudo, evitar o exercício físico. Não mexer uma palha. Conservar este aspecto repugnante. E assistência psicológica com vista a uma ausência total de vergonha quanto à condição física e ao aspecto.
- Também sai caro… parecendo que não…
- Por acaso até me parece que sim! E quem é que os financia?
- Peditórios. É o que o rapaz te está a dizer. Meu pobre filho, que leva os dias de mão estendida, cafés, restaurantes, transportes, clínicas, vias públicas…
-Empresas…
-Mas também temos contribuições particulares…
-Os obesos ricos…
-Executivos gordíssimos…
-Que há cada vez menos… não é filho? Não sei onde é que este mundo vai parar…
- Gestores públicos… deputados… cada vez mais gordos, estou a ver…
- Não, esses agora andam magros como cães, andam cheios de dinheiro para as dietas e para o squash. Mas também há magros a contribuir, uma loucura!, nem imaginas...
                                                                       
                                                                    

- Escanifobéticos escanzelados e caritativos…
- Havias de ver… paus-de-virar-tripas esclarecidos!
- Oferecem dinheiro, jóias de família, coisas de muito valor. Só por exorcismo…


- Cada vez ando a perceber menos esta vida, isso é que eu sei. Porque é que Deus não me leva? Antes que eu comece a dar em doido varrido! 
- E quem te garante que já não deste?
- Os magríssimos dão… só para ver se Deus não os castiga um dia fazendo-os engordar. As senhoras mais esticadinhas do jet set ajudam-nos muito…


- Má consciência!
- Pois é…
- Quando lhes apetece o seu bolito. Quando se excedem numa daquelas festas…
- O grande problema é todos quererem saber para onde vai o dinheiro quando contribuem. Essa é que é essa…
- Já ninguém pratica a caridade desinteressada. Não sei para onde vai o mundo…
- Para onde vai mas é o dinheiro…
- Parece que todos têm medo de estar a financiar a boa vida dos nossos corpos gerentes.
- Vêem o mal em tudo!

                                                           

- Eu estendo a mão, primeiro que nada, aos meus irmãos de condição, os baixotes com mais de 100 quilos. Mas até esses desconfiam.
-Calcula tu… os gordos… antes uns tipos tão pacholas… agora até eles andam desconfiados. Não se lhes pode falar em dinheiro.
-Só dizem que vai para aí muita pouca vergonha.
- E não vai?
- Não sei, tio… sei é que primeiro que se desfaçam de uma mísera nota querem saber quanto ganham os nossos corpos gerentes, quanto ganha o presidente, quanto ganha o secretário…
- O tesoureiro, antes de mais nada. Não é, filho?
- É.
- E quanto ganham?
- Não são cargos remunerados.
- Mas ninguém acredita nisso! Diz-me cá… em que mundo vivemos, amigo?
 - Em que mundo vivemos, tio ?
- Quem é que vai acreditar que alguém se dedique a uma causa humanitária sem olhar a dinheiro? Vocês não queiram fazer de mim mais parvo ainda do que eu já sou…
- Em que mundo estamos, tio ?
- Também tu ? Será que já ninguém acredita no amor ao próximo?
- Evidentemente que não!
- Mas ó tio, ali ninguém recebe ordenado. O nosso presidente apenas tem direito a um subsídiozito de três mil euros mensais. Para acorrer às pequenas despesas dele, os transportes, e assim. Mais nada.
- Um subsídiozito?
- É uma ridicularia, tio, não esteja com essa cara!
- Dois mil por mês? Uma ridicularia?
- Da maneira como a vida está tens que que admitir que é.
- Temos que ser compreensivos.
-Estou a ver que vocês são mesmo muito compreensivos…
- Fora disso, não recebe um tostão.
- Em que mundo vivemos, meu Deus!
- E mais ninguém recebe. A não ser os subsídios de alimentação, o subsídios de residência para quem não é de cá, as ajudas de custo nas viagens que tiverem de fazer ao serviço da sociedade. O normal.


- É preciso ver o tempo que as pessoas perdem com a sua dedicação à causa…
- E esses?
- E esses o quê?
- Quanto recebem?
- O secretário e o tesoureiro? Um bocadinho menos. Oitocentos e mil euros, respectivamente.
- Por mês?
- Mensais, sim. O nosso orçamento não dá para mais. Coitados, eles já perdem muito do seu tempo com a sociedade, vão lá todos os 15 dias.
-E  tudo livre de impostos…
- Naturalmente, tio, tudo livre de impostos. A sociedade não tem fins lucrativos.
- E tu Aduzindo, não queres ajudar aqui o meu Fábio Diogo?
 - Eu?
- Não tens ninguém lá dos teus conhecimentos aí com 130 quilos?

                                                    

- Por acaso até conheço alguém…
- Podia fazer-se sócio.
- E se não quisesse fazer-se sócio, por uma questão de solidariedade, visto o mundo estar como está, podia dispensar-nos um pequeno óbulo…
- É uma questão de falar…
- Não há nada como a gente falar…
- E isto é a gente a falar, tio. O tio sabe por acaso se essa pessoa não terá para lá esquecido entre os trastes velhos do seu avôzinho assim um… um Miró… qualquer insignificância assim, sem importância… que queira doar?
- Um Miró?
- Ó homem, quem diz um Miró, diz um…
- Vocês devem estar a mangar comigo…
- Chagall… Monet… Dali… a gente agradece infinitamente…
- Já agora… um Picasso…
- Pode ser mesmo um Van Gogh. Também serve. Não interessa a cor. Todos dão abatimentos  ao IRS. Mas o melhor era o Miró…
- Agora pergunto eu, quem é esse Miró?


- Não interessa para agora… combinamos um encontro no belíssimo palacete que nos foi cedido pelo Estado e onde funciona a nossa sede provisória e lá tratamos de todos os pormenores legais de tão generosa doação.
- Agora que me estão a falar nisso de pinturas… há uma senhora ainda aparentada com os sogros do meu Ferdinando que herdou há tempos um quadrito autêntico do… sei lá agora o nome dele…
- Goya!
- Velasquez!
- Miró!
- Dali!
- Um daqui serve…
- Gris!
- Deve ser Renoir!
- É capaz de ser Gauguin!
- Calem-se! Será um desses…
- Hurra!
- Já ganhaste o dia, meu filho, os meus parabéns. Hurra!


- Um momento, tio… combinamos já uma data…
- Ó rapaz, mas eu não sei…
- É só ver aqui a minha agenda.
- Não te preocupes, o Fábio vai falar com essa tal senhora gorda…
- Ela não é gorda…
- Então?
- Pesa uns 40 quilos, mas é muito vaidosa e tem uma crise de coração de cada vez que pensa que pode engordar…
- Essas são a especialidade do Fábio. O Fábio convence-a em duas penadas!


- Esta semana já não pode ser, tio, vou amanhã para Paris… trocar experiências com a comunidade gorda de lá. Na outra semana também é mau. Tenho que ir a Nova York trocar experiências. Os executivos de lá estão a ir de cana, parece que afinal… o mundo está assim.
- Mas que grande berbicacho que vocês me estão a arranjar…

                                               

- E para o mês que vem… para o mês que vem vou visitar os nossos irmãos balofos brasileiros, os que vivem naquelas pobres favelas de Búzios e de Angra dos Reis… as coisas por lá não andam bem…
- Há quem diga que é das caipirinhas falsificadas.
- Para o outro mês são as minhas férias.
- Vai até às Bahamas, coitadinho. Que é que queres, ele também tem que se distraír…

- Bahamas! Calcule o tio que eu, já há tanto tempo a pedir, e ainda não conheço as Bahamas…    


1 comentário:

  1. Que bela sátira a tanta "caridadezinha" e voluntariado encapotado em cínico oportunismo...
    Muito obrigada, caro Joel.

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