VARIAÇÃO IMPERFEITA SOBRE OS PEQUENOS
PODERES
Escrevo a pensar naqueles que, como eu, sempre
foram na vida mandados, subordinados, sempre estiveram na vida profissional sob
a alçada descricionária de outros.
A palavra poder pode incomodar-nos. Há
tendência para olhar de través qualquer tema que possa implicar a existência
ou o exercício de um poder, mesmo de um poderzinho, o poderzinho que sai dos
pequenos poderosos e ataca os pequenos subordinados.
Poder. Poder. Qualquer um que ele seja, nem que
só o do chefe de secção, do chefe de repartição, parece demasiadas vezes de
direito divino, digo, um poder nem que seja somente delegado, subdelegado. E
sempre que um desses “poderíos” nos incomoda ou interfere com o nosso bem estar
ou equilíbrio emocional, podemos sempre dizer que foi um poder que “subiu à
cabeça” do seu detentor, que o seu detentor se embebedou de poder, que
engravidou de poder – nem que seja o pobre chefezinho de um escritório ou
repartição de meia dúzia de gatos.
Olhamos muitas vezes os nossos chefes como
ambiciosos, sequiosos também eles de um poder, mesmo que seja pequeno. E
olhamos o colega mais preparado, mais competente ou inteligente do que nós na
presunção de que se ele é tão preparado, competente e inteligente o é por uma
motivação única: a ambição do poder, “o que ele quer é poder, o que ele é é um
mandão”.
E concluímos, e cada vez mais, que muitos dos que detêm um poder sobre
outras pessoas, na verdade, não têm mais objectivo na vida do que esse: ter um
poderzinho sobre os outros. E que até, na maior parte dos casos, não estão
preparados para esse poder, não foram preparados para ter qualquer poder sobre
outros seres vivos.
Noutros casos não é questão de preparação
mental, é mesmo questão de falta de qualidade humana interior, essa que é, na
minha opinião, a primeira das condições para se outorgar um poder a alguém.
Qualidade humana, sentido de justiça, integridade pessoal em primeiro lugar. Só
depois deveriam vir as qualificações técnicas e profissionais.
Mas, tristemente, nos tempos que correm, a
qualidade pessoal – e mesmo intelectual – dos que têm poder sobre nós é
lamentável. E continuo a pensar que essa é uma das razões para o atraso
português a vários títulos, a vários níveis, especialmente no caso dos que têm
um pequeno poder intermédio e que grande parte das vezes, nas instituições, são
mais parte de cada problema do que da sua solução.
Fica bem uma tirada da Electra, de Sófocles: Se bem que a justiça não está no que eu digo
mas no que tu pensas.Todavia, se devo viver em liberdade importa-me obedecer em
tudo a quem manda.
É uma gravíssima encruzilhada na nossa vida
pessoal, e sobretudo profissional… exercer uma liberdade e obedecer em tudo a
quem nos manda… quando poder e liberdade se oprimem, se desencontram
continuamente e frequentemente se anulam.
O saber, em tempos de antanho, foi matéria sujeita a alta reserva e
confidencialidade e posto fora do alcance dos simples, do vulgo. Porquê? Porque
os antigos, os medievos, sabiam-na toda. E como a sabiam toda, sabiam que o
saber proporcionava o poder. E o poder não era coisa para entregar ao primeiro
bicho-careta ambicioso que aparecesse. E se não se lhe podia entregar o poder
era porque não se lhe podia facultar o saber. E vice-versa, claro está.
Na Antiguidade, e nas mentalidades mais
esotéricas, o poder era realmente coisa reservada aos eleitos, a bem dizer, aos
iniciados. A alguns poderia ser facultada a aprendizagem, o saber, o que faria
deles iniciados, o que os tornaria eleitos, e a esses, pela sua qualidade e
sabedoria humanas, poderia ser concedido o poder, na certeza de que o vulgo,
por uma consciência ancestral de vida, tendia a obedecer cegamente àquele que
mostrasse mais sabedoria. E daqui decorrem algumas coisas eventualmente desagradáveis,
como o messianismo, de cujas reflorescências tardias milhões sofreram as
consequências entre 1933 e 1945.
Mas já nos antigos a elite do saber e do poder aspirava
ao domínio total dos corpos e das consciências. E para esse domínio ser mais total,
o que convinha era manter as massas na mais perfeita das ignorâncias. O saber
era guardado em segredo. Quem o detinha ascendia à dominância. Podia à sua
vontade condenar os povos à escravidão.
Ou então criavam-se escolas. Escolas em torno
de um iluminado. E lá se preparavam os espíritos para conter os saberes mais
reservados – cultura é isto: preparação do espírito para receber o
conhecimento. Esses iriam ser os chefes.
O saber dos chefes inevitavelmente haverá de
conduzi-los a convicções malsãs, entre elas a da sua superioridade face ao
comum dos que lhe obedecem. Mas enfim, não é preciso ir à Idade Média. Isso é o
que se vê hoje todos os dias nos locais de trabalho. A superioridade arrogante
e avassaladora de muitos dos que nos chefiam, as suas certezas absolutas, a sua
infalibilidade na gestão do pessoal, enfim, uma série de condições que criam no
subordinado um espírito de rebelião - muitas vezes ódio. O que não aproveita a
ninguém.
Os homens
acabam sempre por se revelar maus, se a necessidade não os obriga a ser bons, lá dizia o velho Maquiavel.
Bem entendido que, acerca destas coisas do
poder, quer do grande quer do mais pequeno, o velho Maquiavel é uma fonte
inexaurível, e basta lê-lo com atenção para perceber… das duas, uma: ou a
qualidade de um tecnicamente bom chefe – o que não significa exactamente a boa
qualidade da pessoa dele; ou a deficiente qualidade técnica e operacional de um
chefe quando não cumpre determinados preceitos do mando – o que até poderá
querer dizer que ele nem é má pessoa, sendo por isso mesmo mau chefe.
Ah, sim, estou convencido de que a verdadeira
natureza de um homem vem ao de cima em muitas situações limite, e uma delas é
porem-no a mandar noutros homens. É difícil resistir à revelação da verdade
sobre si próprio quando se tem algum mando. É o que diz o povo: se queres ver o vilão põe-lhe o pau na mão.
Os homens
são tão simples e tão obedientes às necessidades do momento que quem engana
encontra sempre quem se deixe enganar -
outra das patetices do velho Maquiavel.
O poder pode… segundo um senhor chamado Talcott
Parsons, ser um subsistema económico, na medida em que se levantam paralelos
óbvios entre uma ciência política e uma ciência económica. O poder seria então
qualquer coisa igual a moeda. O modelo definidor de um poder pode ser a moeda.
Donde, o poder não ser mais do que um instrumento de troca nos subsistemas
políticos.
(Compreende-se, não? Basta ler os jornais e ver
a televisão.)
Como a moeda, o poder circula, é móvel, é
activo, desloca-se incessantemente, aumenta e diminui. Pode criar-se um crédito
político. Podem-se acrescentar parcelas à quantidade de um poder. A vitória
numas eleições coloca os políticos eleitos na posição de um banqueiro. A
vitória numa eleições é uma concessão feita de poder, um depósito feito pelos
eleitores que será a todo o momento revogável. O crédito que é o poder
sujeita-se, como o crédito monetário, às variações. Há inflacção e deflacção no
poder.
Pois é. O poder é simbólico. Como o dinheiro.
Tal como uma moeda, o poder tem valor de troca
mas não tem valor de uso. O poder vale pelo que permite obter - e nunca nos
esqueçamos disto nestes dias conturbados e nos que estarão para vir.
Como intermediário simbólico generalizado e
reconhecido instrumento de troca, como o dinheiro, o poder é, por isso…
legítimo.
Estive há dias, por acaso, a ler um livro de
Luis Nandim de Carvalho. Teoria e Prática da Maçonaria. (Maçonaria não podia
faltar a uma conversa sobre o poder). Fiquei a saber que é o entendimento e o aprofundamento da percepção de
Deus, a Sua relação com o universo e com os seres humanos o que constitui a
essência da organização maçónica. É
bonito. E julguei ter percebido que é a posse desse entendimento que constitui
em si mesma uma fonte de poder. Sim, mas um poder que não é laico, racional. Um
poder que não é temporal. Um poder que é espiritual, e que todavia subordina,
define, ajuíza e legitima todo o poder temporal.
Segundo Nandim de Carvalho, todo o poder
material será sujeito à aferição racional da sua legitimidade e da sua justiça
pelo poder espiritual – e o cidadão comum perguntar-se-à a que poder espiritual
reportam os abusos e as arbitrariedades dos seus chefes e directores, que são
os primeiros poderes a que o cidadão, para ganhar a sua vida honradamente, está
sujeito a obedecer.
Segundo os maçons (quais deles?), o poder, na
sua essência, é ético. O poder é ético por sujeito a regras intemporais e
universais muito anteriores à própria estrutura humana de vida. Um poder que se
exime a toda a contestação profana, temporal. A outorga desse poder espiritual
e ético seria feita somente após uma iniciação que conduzisse os candidatos ao
poder a uma interiorização espiritual e a uma vivência profunda.
Em termos
esotéricos, seria um poder que dimanasse de uma prévia experiência de morte e de renascimento;
uma purificação vivida pelo homem comum. Só por esses meios o candidato a um
poder ascenderia aos mistérios sagrados do universo. E este seria o poder do
Ser, oposto ao poder do Ter. O Ser poder como qualidade espiritualmente oposta
ao mero Ter poder.
Ao poder deveria corresponder uma proporção de
responsabilidade. Deveria. Mas a quantos actos arbitrários, incompetentes ou
disparatados de um poder, mesmo pequeno, corresponde alguma consequência
castigatória?
Quer dizer que o poder, mesmo o do chefe de
secção de uma chafarica (é desses que preferencialmente falo), configura alguma sacralização, algum do tal direito
divino, sou chefe porque sim, sou chefe porque sou eu, e enganar-se qualquer um
se engana, e errar é humano, desde que seja eu a errar, sou chefe, sou
inamovível, sei coisas a respeito dos que me nomearam chefe que me permitem ser
chefe impunemente por muito e muito tempo, e mesmo porque aqueles que me
conferiram este poder não são melhores do que eu e nem serão muito capazes de
reconhecer os meus erros e as minhas insuficiências, e nem eles têm moral para
me tirar o poder que me deram a não ser para me alcandorarem a outro poder
maior, posto que eu sei de sobra as razões por que eles chegaram ao poder que
têm…
E nestes considerandos subjectivos estará
também alguma da razão do atraso da democracia portuguesa.
Claro que conforme o escalão do poder a
responsabilidade vai apertando. Formalmente, digamos. Porque também a
impunidade é mais presente. E no topo, está a dita responsabilidade política, e
sobre essa, estamos conversados…
Nos escalões baixos e intermédios do poder é
onde talvez se pratiquem mais os abusos, e até porque esses poderzinhos são
cobertos por outros poderzinhos ligeiramente maiores que se solidarizam com os
pequenos poderzinhos num esquema magistral e diabolicamente montado de
encobrimentos, de abusos, culpas e responsabilidades – e impunidades.
Divertimento sem consequências para quem comete
os abusos do pequeno poder, mas coisas por vezes humilhantes para quem sofre e atura
as consequências desse pequeno poder devastador e impune.
Do que eu gostei mesmo, por exemplo, no 25 de
Abril, foi que de um dia para o outro, literalmente de um dia para o outro,
deixou de haver chefes. E ainda mais, deixou de haver chefes tirânicos,
prepotentes. De um dia para o outro todos os nossos chefes de serviços e de
secção se reclamaram de democratas, de muito humanos e nos recordaram aquela
vez no passado, em que estivemos doentes, em que chegámos sistematicamente
atrasados ao serviço e as boas maneiras (mentira) com que sempre nos trataram.
Ninguém pode obrigar um pobre chefe de
repartição a ter uma coluna vertebral saudável.
E quando começaram a ser saneados, foi o bom e
o bonito. Eram todos comunistas. Todos amigos do povo. Todos – mesmo os que
pacoviamente haviam antes usado brasão - tinham ascendência operária.
Mas é claro, tudo isso tinha que acabar. E
acabou. Nem os pequeníssimos poderes dos mais insignificantes chefes podiam cair
na rua da amargura dos eternos e mentalmente destituídos subordinados.
É velha esta, mas é imbatível, e é inevitável
em quaisquer variações retóricas, mesmo imperfeitas, que se ensaiem em torno do
poder. Trata-se da famosa carta de Platão.
Vi que o
género humano não mais será libertado do mal se não forem ligados ao poder os
verdadeiros filósofos, ou se os hierarcas do Estado não forem tornados, por
favor divino, verdadeiros filósofos.
Alguma vez o hipotético leitor descobriu no seu
directorzeco de serviços uma vocação filosófica, um ritmo filosofal de
pensamento, palavra e acção?
Haverá algum sentido mágico-teológico no poder?
Ah, claro que sim. Eu acredito nisso. Por isso se diz que o poder sobe à
cabeça. E sobe à cabeça como o poder mágico de uma droga, e como uma droga pode
bem o poder provocar alterações de consciência.
Mas será que a própria sacralidade do lugar de
poder desencadeia sintomas de terror e pânico nos que obedecem ao ponto de nem
para si mesmos o questionarem?
Interroga-se Carl Gustav Jung, se uma aspiração
à autoridade – ou ao poder, acrescentaria eu – é algo de não específico em
colisão com o reverso da alma, um sintoma de regressão; ou se a mesma aspiração
à autoridade é de carácter secundário. O poder do Eu. A aspiração à autoridade,
diz Jung, é um demónio tão grande como Eros, e é tão velha e tão original como
esse mesmo Eros.
Evidente, senhores. O poder é uma erótica.
Claro que é. Olhemos bem para o nosso chefe ou director, distingamos-lhe no suor frio os
traços da sensualidade irreprimível quando nos dá pressa a um
determinado serviço.
Amor e perfeição de comportamento: meios
excelentes para alcançar uma autoridade, para se ascender a um poder. E a
vontade? A vontade, ainda segundo Jung, é a alavanca que força o reconhecimento
dos outros.
É bem inquietante o que diz Jung sobre a
autoridade – eu chamar-lhe-ia poder, se quisesse manter a tensão dicotómica
entre uma coisa e outra, autoridade versus poder. E note-se a autoridade, ou o
poder, exercido pela criança sobre os pais…
O poder da criança sobre os pais leva-nos ao
comportamento daquele nosso colega de escritório engraxador e manteigueiro dos
chefes por tão ambicioso em lhes ocupar o lugar. Eis a criança: atenciosa e
obediente para os pais se tiver na ideia uma benesse que deles dependa. E essa
é uma sofisticadíssima forma de poder.
A criança pode manobrar os poderes de pai e de
mãe e usá-los em seu benefício, pondo-os um contra o outro nesta ou naquela
coisa que deseja para si. A manifestação do amor pode ser a maneira óptima de
atingir uma posição. E fica sempre bem. E é interpretada em geral como positiva
quando afinal foi um acto inflexível de poder.
Aliás, deixemo-nos de coisas, o amor contém em
si mesmo finalidades. Finalidades que uma vez obtidas fazem decrescer a
quantidade e a qualidade de amor, ou a exuberância da manifestação desse amor.
Talvez aí um dos sentidos do actual desgaste do casamento e da célula familiar,
observadas as coisas de certa e ímpia maneira. O amor e as suas mais evidentes
demonstrações podem não ser a música celestial que lhes costumamos associar. O
amor pode ser – acho que geralmente é – uma categoria, ou uma das manifestações
do poder humano.
Mas o poder é uma neurose.
No diagnóstico de Jung, não há melhor numa casa
de família – eu diria mesmo num local de trabalho – do que uma neurose
manifesta para a obtenção de acréscimos de poder sobre os outros. E os
neuróticos sabem-no bem. Tenho conhecido alguns neuróticos que à pala das
crises neuróticas e de temperamento com que flagelam os superiores acabam por
conseguir o que querem mesmo que a isso tenham menos direito do que os outros,
os menos neuróticos.
A neurose é também um belo meio de tiranizar
uma casa de família, um atelier, uma oficina, um escritório ou um grupo
profissional. A neurose, através das suas crises visíveis, reais ou simuladas,
gera a compaixão, compaixão que pode ser usada também como alavanca de poder. Uma
crise neurótica bem administrada no tempo, no modo e no espaço convenientes,
confere ao neurótico um poder tirânico sobre os que lhe estão próximos.
Apanhados numa posição moralmente cimeira de
autoridade no seio da família ou no local de trabalho, um neurótico não tem
contemplações e exerce um verdadeiro poder, e mais nefasto por não ser um poder
de direito, operacional, oficial, por ser apenas um poder psicológico, moral,
que desencadeia obrigações e sujeições por parte dos outros.
Emmanuel Mounier entendia que o poder de um
tirano engendrava uma ordem que era falsa.
De um autoritarismo nasce uma falsa ordem de
vida e de funções.
Um individualismo exacerbado no exercício de um
poder tende para a criação de uma anarquia.
Há séculos que o poder deixou de ser
concentrado, monolítico, monocéfalo – como diria Foucault. Cada vez mais o
poder é parcelar. Difuso. Exacto: é nessa balbúrdia que jogam os nossos chefinhos
para se aguentarem no balanço.
Os poderes são erigidos sobre continuidades e
descontinuidades de consenso. E certos centros de poder conjunturalmente se
agigantam por sobre o consentimento ou a debilidade de outros poderes.
Até há pouco tempo era impensável conceber
sequer que um chefe de qualquer sector ou instituição pudesse ser um idiota.
Mas ainda um destes dias, olhando para a montra de uma livraria, surpreendi um
título. Não me lembro já bem, mas era mais ou menos “como lidar com um idiota”.
Um livro que era um daqueles manuais à americana, rápidos, para ensinar a fazer
qualquer coisa de prático. E logo na capa se colocava a eventualidade de o
nosso chefe – ou patrão - poder ser um idiota e nós termos toda a vantagem de
aprender a lidar com ele.
Em certa época de vida tive um chefe que não
era exactamente um idiota – não era nem deixava de ser, porque era um tipo
importante. E se eu lhe apresentava, por hipótese, um texto destinado a ser
cortado e eu me inclinava para uma dada passagem que poderia ser suprimida, ele
discordava automaticamente – ele era o chefe. Quando, pelo contrário, eu
entendia que certo parágrafo era essencial, pois logo ele repontava que não,
que se havia alguma coisa a cortar deveria ser aquele parágrafo que eu achava
indispensável. É que não se tratava de saber se era eu ou ele quem tinha razão.
Tratava-se de marcar que ali o chefe era ele. Nada havia então a fazer para
além de albardar o burro à vontade do dono. Até ao momento em que, a
contra-gosto, comecei a entrar-lhe no jogo idiota e a dizer desnecessárias algumas
passagens que considerava importantes. Só para ele discordar e as manter. E ele
discordava e mantinha-as.
Este é um episódio clássico do tipo mais
comezinho do chefe inseguro de si e dos seus poderes, sobretudo os
intelectuais.
Pois. Diz-se com toda a facilidade mal do chefe
ou do director, ou de seja quem for que tenha uma migalhinha de poder
descricionário, mas ninguém fala do calvário das invejas que esse pobre
desgraçado do chefe que não foi contemplado com o carisma, com o talento, com a
iniciática, ou com o favor dos deuses, terá de aguentar ao longo da sua vida
profissional da parte daqueles que afinal apenas o invejam, que afinal o que
querem é o lugar que ele ocupa. Mas também, cuidado com a inveja de um chefe
por um subordinado. Amigos, é fogo!
Porém… no fundo das nossas justificadíssimas
razões de queixa do nosso chefezinho de serviço, lá mesmo bem no fundo, não
poderemos negar uma fugaz e vesga sombra de inveja pelo lugar que ele ocupa. E
não é só por causa do vencimento melhorado. É por coisas mais profundas. Ou
mais incompreensíveis.
Se eu mandasse fazia, se eu mandasse acontecia,
eu é que havia de mandar naquilo… então é que tu ias ver como era…
Cada um de nós, no âmago da nossa falsa modéstia,
oculta no seio a vibração de um tirano, não tenhamos ilusões. Cada um de nós
abriga no seu gesto o fulgor de um regenerador, muitas vezes de um salvador.
Porque é que os chefes não vêem as coisas com a clarividência com que nós as
vimos, e quando a nossa visão é a melhor, é a única possível?
Livremo-nos, torno a dizer, de, pelos nossos
talentos naturais, despertarmos a inveja de um chefe…
Falas de uma peça de Sartre, As Moscas. Júpiter fala com Egisto e
diz-lhe: Odeias-me, mas somos
aparentados; foi à minha imagem que te criei: um rei é um deus sobre a terra,
nobre e sinistro como um deus. Ambos fazemos reinar a ordem. Tu em Argos e eu
no mundo: o mesmo segredo nos pesa no coração, o doloroso segredo dos deuses e
dos reis: os homens são livres, Egisto, tu sabe-lo. Eles, homens, é que não
sabem.
E Egisto replica: é verdade; há 15 anos que represento esta comédia para esconder dos
homens o seu próprio poder.
E na
mesma peça de Sartre, Júpiter, o deus dos deuses, sintetizando o princípio do
poder, dirá que há 100 mil anos que dança diante dos homens. É preciso que os homens me olhem. Enquanto
tiverem os olhos pregados em mim esquecem-se de olhar para si próprios.
Não olhemos demasiado para o nosso chefe. Não
nos esqueçamos de nós mesmos.
A menos que aspiremos um dia a ser chefes,
evitemos copiar o padrão de gravatas e o estilo dos fatos do nosso chefe.
O
chefe, mesmo que seja só de escritório, também existe para isso, para ser
olhado, e acha a sua lógica de ser no mísero facto de os seus pobres
subordinados o procurarem imitar.
Poder ou a mais primitiva potência de acção e possibilidade existencial de vida...
ResponderEliminarhttp://www.taurusarmed.net/forums/attachments/firing-line/66593d1382311696-bye-bye-ppk-monkeygun.jpg