SEGUNDA VARIAÇÃO IMPERFEITA SOBRE
OS PEQUENOS PODERES
Vamos distinguir devidamente as coisas. Ou falamos de
poder ou falamos de autoridade.
Não, claro que não
são necessariamente a mesma coisa.
O poder, dizia Jacques Maritain, é uma força que permite
obrigar outros. Diferente, já se vê, da autoridade. Uma autoridade é um direito
que se tem de mandar. Só a autoridade é instância moral de poder.
O poder político é o que é reclamado por quem tem as condições de impor coercivamente a sua vontade. Mas o poder político não foi outorgado, caro leitor, ao seu chefe de secção ou ao seu directorzinho de serviço. Nem um nem outro fazem parte dos eleitos. Esses foram nomeados. Nomeados sabe Deus à custa de quantas pequenas manigâncias ou insignificantes competências técnicas. Só o poder legitimado por uma eleição, quer dizer por uma virtude reconhecida, ainda que eventualmente falsa, parece-me, pode permitir a um sujeito obrigar o comportamento de outros seres livres.
Mas a esse poder deveria ser acrescentada outra categoria
que se chama prestígio. O prestígio pessoal significa mais do que uma
autoridade, ou seja, significa que no sujeito poderoso existe uma qualidade
pessoal real. Não há nenhuma espécie de poder que seja indiscutivelmente moral,
ou inegavelmente suportado por uma base moral. O que é moral não é o poder, é a
autoridade. A autoridade não só é moral como tem na moral a sua finalidade. Não
se fala de uma autoridade meramente técnica, ou de perícia. Fala-se, como é
evidente, de moral. Se uma autoridade não guardar em si a ética, pode descambar
em poder, em acidente. Autoridade e poder podem ser uma contradição. E por
falar em acidente, nenhum poder, a nenhum escalão, é natural, é irrefragável.
Todo o poder é um acidente. O poder é uma delegação de outros poderes, e, no
caso da política, uma delegação de um povo. Que povo entronizou "poderíos" no
prepotente, autoritário e mal criado do meu chefe de serviços?
Mas o meu chefe de serviços recebeu o seu poderzinho por
acidente. E o poder dele, tal como o do rei, carece urgentemente, do
consentimento, pois só pelo consentimento de outros o acidente que é o poder
tem condições para ser exercido.
A autoridade é outra coisa.
A autoridade é um aperfeiçoamento de qualidades humanas
intrínsecas. Reconhece-se e consente-se com mais naturalidade do que um poder.
A autoridade pode ser independente do reconhecimento e do consentimento de
outros, visto que no alcance da autoridade reside o mérito. A autoridade
pessoal é criação. Pode mesmo ser segunda natureza.
Alguns pensadores arriscaram dizer que no poder
“está-se”, enquanto que autoridade é coisa que se “tem” – ou que se “é”. Não há
nada de mais pessoal do que uma autoridade.
Na velha Grécia houve tempo em que o designado cidadão se
transformou em súbdito. Mas é a partir da categoria Homem que as sociedades
nascem.
No meio disto entra uma figura que por largo tempo me
mereceu alguma intelectual simpatia: o déspota esclarecido – não confundir com
o seu chefe de vendas.
Pois é. Ele arranjar déspotas ainda se arranja com
facilidade. O pior é o esclarecido. Esclarecidos é o que custa mais a arranjar
Não fui só eu a simpatizar com a fórmula de poder do
déspota esclarecido. Aristóteles e Platão não iam fora disso. Esse déspota
esclarecido atenderia às liberdades civis e seria ele o corpo visível e
operacional do Estado.
Existirá liberdade no momento em que o Homem não
participa no poder do Estado?
Alguns espíritos defenderam a intervenção, directa ou
indirecta, dos cidadãos no poder do Estado, gente como Locke, Spinoza,
Montesquieu, Kant ou Rousseau; outros, lá entenderam que só a alguns extractos
sociais competia a intervenção no poder do Estado – temos Aristóteles, Marx,
Lenine.
Mas houve quem teorizasse que o poder só seria poder se
independente da vontade e da intervenção dos destinatários dele, poder.
Max Weber seleccionou três modos históricos de poder. Um -
o poder tradicional; dois – o poder carismático; três - o poder racional.
Denominador comum e imprescritível: a legitimidade.
Sem legitimidade nenhum poder obtém obediência sem ter
que recorrer à força. Sem confiança ou sem autoridade nenhum poder é outra
coisa senão força.
Outra questão é o reconhecimento de uma legitimidade de
poder. Aliás,uma questão eternamente pendente nas encruzilhadas da História.
O poder tradicional. Era o poder do costume, a violência
dos hábitos. Coisa do passado, esse poder é patriarcal, sacerdotal, feudal.
Porém, ainda coisa do presente em certas regiões distantes da nossa consciência
de empregados urbanos.
O poder carismático. Um poder acrescentado por um estado
de graça. Acreditava-se que um homem pudesse ser dotado de clarividências
extra-humanas, de dons excepcionais, de uma cintilação pessoal própria que
impusesse e induzisse à obediência. Se eu for a ver, o meu chefinho está
secretamente convencido que possui esses dons…
Bom, mas isso era no tempo em que os homens se dedicavam inteiramente
às causas em que acreditavam. Ou, mais próximo, quando ainda havia o homem
providencial para a administração de uma instituição, o homem que tinha uma
ideia, um projecto para aquela instituição e que não chegava à instituição para
lá cumprir os três anos da ordem e depois seguir para outra freguesia e
continuar a sua carreira até ao dia ditoso da sua reforma dourada.
O poder legal, o poder racional. É o poder da burocracia.
É o poder que dispara quase sem ser preciso accioná-lo, automático. É o poder
dos estados modernos, das empresas modernas. Há regras legais previamente
articuladas. Elas funcionam por si, acriticamente. Há apenas que tomar conta
delas e não permitir rupturas ou cortes epistemológicos…
Para este tipo de poder o que é pedido é racionalização
funcional. E tanto faz que lá esteja este como aquele. O mecanismo
jurídico-funcional está montado. E pronto. É preferível estar quieto, não mexer
no sistema. Não há ideias. Não há estilo. Não há golpes de asa. Não há chama
criativa. Recebe-se o salário, deixam-se passar os três anos, é-se nomeado a
seguir para tomar conta do automatismo burocrático de outra instituição e assim
sucessivamente. E é-se feliz.
Claro
que horas e horas de conversa poderíamos ter a respeito de cada um destes
poderes e respectivos enfoques históricos, e quando por vezes, por acidente, as
três categorias se podem fundir num único estilo de mando.
Estilo? Pois estilo, emanação de personalidade é coisa
hoje em dia a evitar a todo o custo. Alguns administradores mais parecem
robots, indivíduos anestesiados, incapazes de proferir uma palavra a mais ou de
tomar uma decisão, nem que ela seja justa e aconselhável.
E aprecie-se a realidade: administradores de empresas
industriais que sobem a ministros da Educação, ministros da Saúde que descem a
presidentes de conselho de administração de bancos. E por aí fora. Acaba por
haver uma unificação no círculo dos poderes de um país, de uma sociedade. Porquê?
Ainda se pergunta? Porque existe uma coincidência de
interesses concretos que unificam as prestações de poder, coincidência que
circula da instituição militar à política, aos bancos, à indústria. Há
coincidência de orígens sociais dos membros do grupo. Há grande afinidade psicológica
entre os indivíduos do grupo. Daqui o caso de um administrador do Hospital
Júlio de Matos poder continuar descansadamente a sua carreira e o seu
currículum como presidente de uma companhia de bailado, ou de um
ex-vice-presidente da Galp poder vir a continuar a sua carreira à frente de uma
estação de televisão.
Desgraçadamente, a nossa experiência quotidiana dos
tempos mais presentes pouco consegue, por muito que se esforce, desencantar uma
instância superior de saber no íntimo de uma instância de poder.
Uma pulsão de poder só muito a custo decorre de uma
serenidade de saber.
E não se duvide que o nosso chefe exerce mais ou menos a
sua descricionaridade quanto mais for sabedor. Ou seja: quanta mais informação
tiver. O que também pode ser entendido por… quanto mais informadores ele tiver
na secção.
Não há poder que dure sem informação. É sabido. E da
maneira como as coisas estão já não importa muito que essa pretensa informação
não passe de boato ou de má língua. Uma mentira dita 50 vezes é uma verdade inquestionável. De forma que se os informadores do meu chefe lhe
segredarem aos ouvidos qualquer negativa coisa a meu respeito, mesmo que seja
redonda mentira, o meu chefe – se não for de boa qualidade humana - vai passar
a olhar para mim e para o meu trabalho em função do que lhe segredarem os
informadores que ele teve. Não tenho a mais pequena dúvida sobre isso. E o mais
aborrecido é que as minhas possibilidades de defesa contra o falso segredo que
o meu chefe guarda a meu respeito são poucas. São nenhumas. Faça eu o que
fizer.
Quem poderá traduzir eficazmente para o entendimento do
vulgo o sentido da linguagem do poder?
E quando arrepelo os cabelos ao descobrir que o meu
pequeno chefe é um tatebitate que não diz uma para a caixa, que não produz um
discurso claro e convincente, porque é ignorante e desajeitado na palavra e na
relação humana, não há nada a fazer. Se eu ainda pensar à antiga, que poder é
linguagem…
É verdade. Houve tempo em que a palavra falada era
instrumento de poder, alavanca de domínio. Pelo discurso se chegava ao poder.
Pelo discurso se mantinha um poder. Pedia-se: autenticidade (real ou fingida,
já se vê) na fala; rigor na demonstração das ideias, clareza nas motivações.
Por aí se dominavam os homens.
Hoje? Hoje nada disso serve ao poder. Ou antes: quanto
menos disso melhor, porque os poderes já não precisam muito da razão
verbalizável para se execerem.
Eu tenho uma parcela, ainda que ínfima, de poder. Porque
tenho o direito de poder mudar o homem que exerce o poder político nacional e
que é a expressão de um sistema político. Através do meu voto periódico. É
pouco, mas é o que se pode arranjar. Não tenho é a mais pequena hipótese de
participar na mudança do homem ou homens a quem, no mais concreto da minha vida
prática, devo obediência profissional. O meu chefezinho. O meu directorzinho.
Ou mesmo o meu presidente ou director-geral. Aí, a minha opinião não conta para
nada. Nem ma pedem. Eles não são sujeitos a escrutínio. São técnicos. Em grande
parte dos casos não fazem a mínima ideia dos modos de conduzir homens e
mulheres, de gerir conflitos, de estimular e congregar vontades criativas. Em
certos casos e actividades, a estes chamam-se capatazes.
E além do mais, a democracia ou a democraticidade é coisa
que se atenuou, ou deixou mesmo de existir nos locais de trabalho.
Ao correr da História foi de direito mudar violentamente o
homem no poder. O chamado tiranicídio. Era legítimo o assassínio se não fosse
possível arredá-lo por outros meios da sua tirania. E é claro que hoje não é
fácil antever-me a assassinar o tiranete que é o meu chefe de serviço, esse
dono e senhor da maior parte do meu tempo acordado e senhor do mais pequeno de
todos os poderes absolutos.
Na sua Summa
Theologica, o bom do S. Tomás de Aquino até disse: Um governo tirânico não é justo por orientado não para o bem comum, mas
para o interesse privado do governante. Não há sedição quando se ataca um
governo desta espécie, salvo no caso de a revolta ser tão desordenada que os
súbditos sofram maior dano do que o causado pelo governo do tirano.
Mas melhor do que o vulgar tiranicídio era a tomada do
poder pela revolução.O tiranicídio afastava o homem do poder, verdade, todavia
mantinha desse poder o sistema de governo. E também o tiranicídio, as mais das
vezes, era incidente passado em bastidores, entre a cúria dos notáveis que
invejava do tirano a tirania e a prosseguia sob o mesmo sistema de valores.
Se no tempo da ditadura a classe dirigente era limitada
ao único partido existente e os bons eram mesmo bons (ainda que poucos), os
maus estavam de uma maneira ou de outra circunscritos, e era sempre à
obediência ao regime que se devia, achavamos nós, a sua qualidade de chefes ou
directores de alguma coisa.
Com a democracia – e a níveis de função pública ou
empresas do Estado - começou a haver escassez de pessoal que, não sendo desde logo
de considerar político, é pessoal que faz falta às encomendas do mando, faz
falta aos partidos para nomeações quando chega a vez desses partidos estarem no
poder e proceder ao controlo dos aparelhos do Estado.
E está claro que a margem de escolha dos melhores em
democracia -ainda por cima portuguesa – encolheu substancialmente.
Todos sabemos que Portugal ocupa um lugar cimeiro no
concerto dos países que, por mediocridade generalizada e falta de ofertas
aliciantes, deixam fugir os seus melhores para o estrangeiro.
Depois há os que são mesmo bons. Têm que entrar para um
partido dos de poder, senão nada feito…
Depois há os mesmo bons que não estão para se incomodar.
Não aparecem e por isso não são facilmente nomeáveis.
Depois há os mesmo bons que desprezam os caciques dos
partidos e a sua lógica. Não podem ser nomeados para nada.
Depois há os mesmo bons que correm para o sector privado.
Depois há os mesmo bons que se dispõem a tornar-se
medíocres por pura e irreprimível ambição. Podem ser nomeados, sob certas
condições.
A maioria são de dar vontade de rir de mediocridade,
ignorância e avidez pelo dinheiro e pelo mando – nem que seja pouco.
Imediatamente nomeados seja para o que for.
Acho que o crescimento louco da massa dos ambiciosos deu
cabo da virtual qualidade da nossa democracia. Querem ganhar dinheiro, muito
dinheiro, depressa, querem ter um estatuto depressa, querem fazer carreira
depressa. São pessoas manuseáveis, manobráveis, obedecem cegamente a quem manda
se lhes acenam com um naco de carne ou um torrão de açúcar. Nunca levantam
problemas. Os partidos deitam-lhes a mão muito depressa. São nomeados para
chefes e directores disto e daquilo muito depressa. E a gente que os ature. E a
gente que lhes sofra as consequências da incompetência ou da impreparação para
o comando, da vaidade da ambição, e… quantas vezes, da idiotia.
Ele há fartos candidatos aos poderes, grandes e pequenos,
tantos que aquele que o ambicione verdadeiramente para si não se pode prender
com picuínhas, tem de ser implacável, competitivo, impiedoso, seguro, senhor do
seu tempo e do seu gesto. E assim, quer nas manobras necessárias à obtenção do
poder como nos processos indispensáveis para o perpetuar.
Outro acicate não
possuo para os flancos picar de meu intento senão esta ambição – um tirada do Macbeth.
Mas o poder do nosso chefe de secção –nem que seja o
maior déspota – não sofre das usuras que costumam sofrer os poderes superiores
de Estado e de governação, os poderes dos eleitos. Todo o poder destes está,
desde o primeiro dia da sua vigência – e pelo menos teoricamente - ameaçado. Lá
está: faz parte. É o segmento de consentimento de que cada poder precisa, o
vírus devastador que o começa a minar desde o primeiro dia de expectativas.
Os poderes de Estado, de governo, têm a obrigação de
curar dos seus sustentáculos, a chamada base social de apoio. Mas esses sustentáculos
são frágeis. O poder do meu chefe de secção, como depende do arbítrio de um
director, de um administrador, e tem nele o seu sustentáculo, não é tão frágil
como foi o poder do general De Gaulle em 1958, ou em 1968. Por exemplo.
Só se o meu chefe
de secção entrar em conflito aberto com os seus maiores. Situação em
que, no geral, eles não caem – a menos que sejam pessoas excepcionais. Que no
geral não são.
Só se o chefe de secção entrar em perda de prestígio aos
olhos do director que o protege. Mas também só se ele for parvo – e for justo,
simpático e dialogante com o pessoal – é que desgasta o seu pequeno poder e a
sua graciosa imagem junto da administração.
Mas não se pense que o noso antipático chefe de serviços
vai dar de mão do seu pequeno estatuto de poder, ou sequer mudar de atitude, só
porque os subordinados não gostam dele, ou porque algum subordinado até já se
queixou dele com razão ao nível hierárquico superior.
A propósito, alguém deu saída àquela minha queixa, tive
alguma resposta? Alguém me deu alguma explicação ou satisfação? Ora aí está. O
poderzinho que os chefinhos exercem na nossa democracia é olímpico. Mas se
ninguém deu saída à minha reclamação sobre os actos do meu chefe, bom, isso
quer dizer que eu tinha razão na minha queixa. Foi esse o meu erro: ter razão
perante os meus chefes.
A democracia portuguesa dos empregos não perdoa a quem
tem razão e não seja chefe de alguma coisa. Oxalá que não venha eu a pagar a
razão que tive com língua de palmo…
Se há animal político nesta vida é o animal que detém um
poder. Por pequeno que seja. Uma questão de instinto. Porque nestas matérias os
instintos são dois, e entrecruzáveis e complementares um do outro, e o primeiro
deles é o instinto que o meu pequeno chefe tem de mandar, sendo o segundo
instinto aquele que eu tenho de lhe obedecer. E é, entre outras coisas, por
instinto, que o poder tende a fortalecer-se e a reproduzir-se.
Dizia Montesquieu: o
poder chega até onde o detêm. E não serei eu, que sou homem comum e
simples, a ter o poder de deter o poder do meu pequeno chefe.
Fala-se aqui de pequenos chefes – e não de chefes tout court – porque estamos em Portugal
e em Portugal, infelizmente, está-se em pequeno e tudo se torna cada dia mais
pequeno ao ponto de ser mais o chefinho ou o directorzeco quem mais directamente
perturba a vida de cada um de nós do que o ministro ou o chefe de Estado – ou a
hierarquia de Bruxelas, claro.
Pequenino, pequenino, meu querido Portugal. Small is beautiful. É o que nos tem
valido.
Porque o nosso problema de gente comum, relativamente aos
poderzinhos que nos amargam a vida, é eles estarem livres de fiscalização a
sério. Desde logo porque quem deu o poderzinho ao meu chefinho foi o
directorzinho por quem ele bebe os ares e de quem ele conhece as fragilidades.
Embora, teoricamente, todo o poder em democracia esteja
sujeito a fiscalização… a gente sabe como é. Teoricamente. Virtualmente. E
restaria saber a qualidade de quem fiscalizava quem.
Não quero com isto dizer que não haja bons e grandes
chefes no nosso pequeno mundo do trabalho, mas foi por estas e por outras que
se fizeram revoluções. Foi quando os poderes, em certo sentido tirânicos, se
fortaleceram e se multiplicaram a tal ponto que reclamaram a intervenção de
outros poderes ainda mais tirânicos.
O que por vezes esquecemos no nosso figadal conflito com
o nosso chefe de secção, ou director de serviços, ou administrador de pelouro,
é que o poder de todos eles é um elo da mesma cadeia. Eles são solidários nos
interesses. Integram o mesmo grupo de interesses. Um grupo a que se ouviu
chamar em tempos mais contestatários de classe dirigente.
Quando de normal escriturário o meu colega Lopes é nomeado
chefe de sector, não tenho dúvidas, eternamente subordinado que sou, que ao
acolher o pobre do Lopes no seu novo gabinete alguém lhe disse: “Bom dia Lopes,
bem vindo à classe dirigente desta casa”. A partir daqui não lhe vale a pena
fingir-me o grande amigo que nunca fui do Lopes, não vale a pena falar-lhe do
seu Sporting, não vale a pena aconselhar paternalmente o Lopes sobre o serviço
enquanto tomo a bica com ele…
Nem vale a pena, por mais razão que tenha, queixar-me
superiormente das decisões do meu chefe e ex-colega Lopes. Tudo o que ele faz
passa a estar bem feito e é encoberto e apadrinhado pelo grupo a que passou a
pertencer, a classe dirigente. Não tardará muito e o pobre do Lopes começará ridiculamente
a jogar golfe e a ir à ópera com a feiosa da mulher dele – da qual, aliás, se
divorciará em breve para se enrolar com a secretária.
Toda a classe dirigente, seja no seu pequeno escritório
de loja de ferragens, seja no armazém de secos e molhados, seja na General
Motors ou na Microsoft, tem por
objectivo primeiro, além de auto-aumentar o seu vencimento, proteger-se das
críticas e das queixas seja de quem for, e sobretudo das dos subordinados.
Todo o real poder é exercido não por pessoas singulares
mas por um grupo dirigente. O indivíduo poderoso é só a ponta de um iceberg
director. Não vale a pena dizer mal dele. Ele passou a ser um dos da elite.
Quem detém afinal o poder real nas sociedades modernas?,
apetece perguntar.
Uma tese elitista: o poder só pode pertencer a um escol
de indivíduos, a tal elite; um escol muito homogéneo, muito unido, quase
impossível de arredar. Outros falarão de uma tese mais plural. Nâo há uma
classe dirigente como nos tempos arcaicos e sacerdotais. Há diversas categorias
dirigentes que tanto podem colaborar como combater-se, mas que, também por
isso, acabam por se equilibrar. Só os malandros dos marxistas é que continuam a
pensar que existe uma classe de sacerdotes ungidos para o mando e falam de uma
classe dirigente emanada de uma classe dominante burguesa e capitalista.
Nos tempos recentes assistimos à chegada à instituição
onde trabalhamos de um novo gestor. Acreditamos que agora sim, as coisas vão de
facto entrar nos eixos, que é aquele o homem que vem trazer à instituição
ideias novas, processos modernos, justiça laboral, força de endireitar o que há
muito anda torto na casa. Deixemos passar um mês, dois, três…
Ao cabo de uns meses de acção – mais frequentemente
inacção – concluímos que esse novo dirigente não era messias nenhum, não trazia
na manga qualquer solução, não tinha na mente a mais pequena ideia, nova ou
velha, e que foi para ali por acaso, nomeado por alguém para preencher o seu
currículum e prosseguir a sua carreira até que alguém, alguma entidade, o
coloque noutro sítio, onde ele continuará por acaso, sem fazer ondas, o seu
curriculum, onde prosseguirá a sua carreira.
Uma vez perguntei a alguém muito tido e achado nas
gestões e administrações e que chegou a ser gestor: qual é a primeira coisa que
um administrador faz ou pretende saber no primeiro dia em que toma contacto com
uma empresa. Responderam-me: discutir a marca e o modelo do carro a que o lugar
lhe dá direito.
Uma das inevitabilidades do poder é que esse mesmo poder
se define e se afirma pela possibilidade dada a quem o detém de abusar dele.
Abusos do poder, corrupção do poder (ou pelo poder), e
outras coisas que tais. Por princípio eram práticas que nos quiseram convencer
estar confinadas aos regimes políticos ditatoriais, autocráticos, fascistóides.
O desenvolvimento da nossa democracia permitiu-nos perceber, e em certos casos
experimentar na pele, que não era totalmente assim e que na democracia os
nichos de poder abusivo e as práticas abusivas dos poderes grandes e pequenos
podiam ser uma praga que acabasse por corroer a credibilidade desse sistema
perfeitíssimo que nos convenceram de ser a democracia parlamentar
representativa.
Nenhum sistema político tem, porém, o exclusivo do abuso
de poder.
Na democracia capitalista, o príncipe é o partido - e o respectivo aparelho. E o
esmagador poder económico engendrou outros poderes, reforçou-os, tornou-os
influentes, decisivos, desorientou a balança dos equilíbrios e criou a confusão
entre o que seja um poder real e efectivo e um poder apenas aparente.
Ora uma das preocupações magnas dos teóricos da
democracia deveria, a meu ver, residir no apuramento cada vez mais efectivo de
mecanismos atenuadores do abuso de poderes, seja da parte de instâncias do
Estado e instituições ou empresas, seja da parte de individualidades ou pequenos
funcionários. Mas não. Parece que quem influencia e goza de algum estatuto se
dá muito bem no reino da arbitrariedade e minimiza o problema. E já se percebe
que um primeiríssimo pontapé de saida para obviar à questão dos abusos de poder
seria o convite à melhorada e mais ampla participação das possíveis vítimas dos
abusos de poder nas decisões desse poder.
E já se percebe que outro pontapé de saída seria o da
fiscalização constante e efectiva - e penalizadora! - dos actos do poder, mesmo
pequeno. Porque nenhum poder, de esquerda, de direita, de presidente, de
ministro, ou de chefe de serviços deve deixar de ser efectiva e imparcialmente
fiscalizado.
Bom, mas isso já significaria a entrada num estádio
superior de cidadania e de democracia política que cada vez parece mais
distante. Para não dizer utópico.
Muitos dos que já foram por alguma razão postos fora
desta problemática, provavelmente nem sonham o quanto, hoje, a empresa, as
instituições públicas, enfim, o local de trabalho, é factor de fundas angústias
existênciais, causas de suicídio, ou, enfim, agravos da saúde mental de tantos
cidadãos trabalhadores. Muitos – a maioria? - dos problemas pessoais de quem
trabalha são gerados no emprego e são reflectidos e desenvolvidos posteriormente
em casa, no segredo do casal, na privacidade da família, na aspiração quase
dolorosa de uma aposentação antecipada, ou com os resultados drásticos, ou
bastas vezes trágicos, que se lêem nos jornais.
A grande neurose da descrença e da improdutividade
nacionais fortalece-se nos locais de trabalho e tem por causadores muitos
pequenos chefes e directores que, sem prejuízo das capacidades e competências
técnicas que tenham, não possuem a mínima sensibilidade para a direcção de
seres humanos. É o problema ingente, colossal, do poder.
E o problema do poder não é para ser exclusivamente posto
ao nível do Estado e das instâncias oficiais mais visíveis e mais intocáveis.
Também deveria pôr-se no plano da apreciação dos pequenos actos e critérios
arbitrários, injustos e algumas vezes incompetentes dos chefezinhos e
directorzinhos de muita instituição. Inclusivé das que vivem do dinheiro do
Estado democrático, sim...
E enfim, todos nós temos as nossas experiências. Se
fossemos a falar de todo o tipo de experiências e de todas as implicações delas…
nunca mais acabávamos…
Magnífico o seu discurso (quem me dera que fosse ao vivo, que saudades dos seus programas...)
ResponderEliminarMas, se nós nem o pequeno poder do voto exercemos...E pensam cada vez mais.. E para quê?
A autoridade decorre do poder, tratando-se de uma sublimação moral do poder primitivo, instintivo e não justificativo. Da autoridade, como forma desenvolvida de poder na dimensão humana, exige-se delimitação e contenção de acesso e expressão do poder, como justificação funcional ligada a um quadro decisório operativo conceptualizado e formatado em termos de consciência moral omnipresente (matizado na Lei).
ResponderEliminarDo prestígio convirá dizer que entronca na raíz da nomenclatura goécia donde se extrai a prestidigitação...