CULTURA - PAIXÃO DE ESTADO,
OU PROBLEMA MEU?
José II, imperador austríaco,
oferecia uma festa na corte. O conde de Rosenberg organizara uma representação
com as óperas O Empresário, de Mozart
e o Prima la Música e Poi le Parole,
de Salieri.
E agora podemos “ver” o
imperador nos seus aposentos. Está ao espelho a acabar de se arranjar. O conde
veio ler-lhe a lista dos artistas contratados, mencionando de caminho o cachet que o seu critério atribuíra ao
merecimento de cada um deles. O conde de Rosenberg termina a leitura. Fica
calado. Espera. Silêncio incomodativo. O imperador pede-lhe o papel que ele
acabara de ler, toma a pena e acrescenta um zero a cada uma das gratificações
propostas por Rosenberg. E diz assim: meu
caro conde, esta festa é dada pelo imperador e não pelo conde de Rosenberg.
Política de cultura em democracia? Em liberdade – isto é, em mercado?
Só para não falarmos, ou falarmos menos, dos equívocos aspectos arqueológicos
da política de cultura quando ela era cerzida na propaganda dos regimes
autoritário-ditatoriais, os anos 20, 30, 40, dos lunatcharkis, dos jdanovs, dos
goebbels, dos antónios ferro – política do espírito, ah, que vaporoso…
Só se estamos hoje, em
democracia, liberdade e mercado perante os mesmos problemas de política
cultural, as mesmas vontades, a mesma paixão, o mesmo espírito que urge
politizar – ou politificar. Estaremos? E essa vontade, e essa paixão serão do
mesmo teor? Será ainda a cultura e respectiva política uma paixão de Estado ou
só um problema meu, quer dizer, nosso?
Poder-se-á dizer que
política de cultura, ou cultura de propaganda, é algo que faz cada vez menos
falta aos governos, ao sistema democrático-parlamentar, aos mercados. A
democracia propagandeia-se, promove-se e vende-se por si mesma – quanto mais
não seja por não haver, dizem, alternativa a ela.
Uma política de cultura pode ter
servido à maravilha como propaganda de um partido da grande esquerda ou da mais
imponente direita quando esse partido chegou ao poder por via revolucionária, e
não quando, em democracia, a propaganda é feita a montante do poder, na manobra
eleitoral que conduz ao poder.
Em democracia
representativa a política de cultura não vai confundida com propaganda de
regime. Nem pode ser estratagema para o maior lustro institucional de um
príncipe.
O escritor Bruce Chatwin
é que teve uma conversa com o ministro dos ministros da cultura de todos os
tempos do Ocidente, André Malraux, e dessa conversa ficou-lhe a sensação de que
um ministério de cultura estranhamente lhe cheirava a qualquer coisa de
totalitário.
É que isto da cultura,
assim visto em grandes termos, pode dividir-se em dois (ou mais) ramos: as
formas e modelos artísticos que o Estado institui, induzindo o meu gosto
estético, ou impondo-me a estética dos funcionários ou das cliques imiscuídas
na política de cultura; a cultura vista e apreciada pela subjectiva lente de
cada um de nós, eu, tu, aquele, gente comum, na nossa relação pequena ou
grande, boa ou má, com a arte e as coisas do espírito – uma relação mais de
prazer pessoal do que de obrigatoriedade intelectual ou moda.
Ou uma política
de cultura que não servirá para outra coisa de nobre para além de conceder a
cada um o direito à pluralidade das escolhas, dos prazeres espirituais e por
essa escolha formar o seu próprio gosto, com o Estado a obrigar-se a
possibilitar a cada cidadão o cultivo desse gosto uma vez formado.
Chata e complicada esta
coisa da cultura, não? Também acho. E pelos vistos inútil…
Mas o que acabo de
escrever pode ser um problema do Estado como pode vir a ser um problema meu,
homem comum pagador de impostos. Problema do Estado e dilema do Estado, do
governo, se eles, Estado e governo, na sua paixão cultural entenderem que a
melhor política de cultura é investir nos modos e nas formas estéticas com que
o cidadão mais rápida e facilmente se identifique.
Pois é, acho que a
cultura é mesmo problema meu, homem da rua. E que por ser também problema meu
caberá ao Estado mitigar-me a premência desse problema, desse urgente desejo
estético. Quero ter ópera barata – o Estado terá que ma servir de bandeja e
produzida ao melhor nível.
Quero ouvir música electrónica até me tornar um tipo
psicótico – compete ao Estado encomendá-la aos especialistas, e pagá-la, pois
então, para eu a ouvir bem instalado no meu desassossego. Quero mais edições
baratas das obras de… Alexandre Herculano… bom, aí já mete comércio e complexas
redes de interesses privados, direitos, concorrências, preços. O Estado
recuará. Ou avançará. É conforme.
Mas não, afinal o que eu quero é mais
estátuas nos jardins da droga – o Estado tem que as encomendar e pagar e velar
pela protecção delas contra o vandalismo.
Será que compete ao
Estado incentivar e proteger as artes que estão moribundas e que não
despertaram capazmente a vivíssima gula dos comerciantes? Será que compete ao
Estado fazer com que as coisas culturais existam, e até incentivar as artes que
não me interessam para que eu hoje ou amanhã possa vir a interessar-me?
Será
que compete ao Estado dar fogo a artes ou formas ou estéticas de que eu não sei
se gosto porque não tive contacto com elas e por isso o Estado deveria pôr-me
em contacto com elas para eu saber se gosto ou não gosto?
Eu sei lá.
Neste momento preciso
da História da vida humana, momento globalizado e selvaticamente (des)capitalizado, perguntar-se-á que importância têm de facto estas coisas
bizantinas, as artes, as letras, coisas que para pouco servem, a menos que dêem
bom dinheiro a ganhar a alguém.
E porque é que o bom
Estado liberal e mercantilista há-de ter a obrigação histórica de pagar e gerir
artes e letras que não servem para nada? Nada de lucrativo, bem entendido – ou imediatamente,
ou altamente lucrativo. Ao menos os concertos de rock sempre dão bom dinheiro a ganhar aos empresários e promotores,
e por isso não precisam do Estado para coisíssima nenhuma - pelo menos
aparentemente. Ao contrário da ópera, do bailado, do teatro dito sério, do
cinema de arte, dos museus, da música sinfónica… pois é, coisas que parece não
interessam já a ninguém e que, se ainda interessam a alguém, foi porque o Estado,
numa qualquer viragem da História das vidas lhes deu vida.
O Estado tem (terá?) a
vocação, ou mesmo a obrigação de pagar as actividades culturais de interesse
histórico, tradicional, mesmo que nas presentes encruzilhadas da História, da
cultura e das tradições tais actividades tenham deixado de interessar à grande
maioria do público e por isso já não sirvam para nada? Ou será que no tempo que
passa quanto mais o Estado nas coisas intervém menos essas coisas existem – ou
servem?
Aduzirão alguns que a
categoria filosófica Estado sempre foi cultural. E que o Estado, fosse qual
fosse o cariz e o espírito que tivesse ao correr das épocas (principesco,
absolutista, totalitário, democrático), foi o muito estimável patrão das artes.
Tempos que já lá vão, claro. Os Medici, os Sforza, os Gonzaga, os Visconti aplicavam
a sua munificência individual de príncipes e sobrepunham-se aos considerandos
da comunidade, para a qual, aliás, se estavam bem nas tintas, porque era o
lustro deles próprios que comemoravam em competição com outros príncipes.
Parecendo que não, e por
insignificantes que pareçam, estas coisas da cultura trazem os seus problemas.
E por falar em príncipes
munificentes, há a dizer que a igreja de Roma não se deixou ficar na competição
cultural principesca. Leão X, aliás Giovanni Lorenzo de Medici, o último papa
que não foi padre, estoirou com as finanças vaticanas por não estar habituado a
passar mal culturalmente na sua abastada Florença natal. Vai daí, elevado ao
trono de Pedro, e como um Medici da melhor cepa (filho do grande Lorenzo de
Medici), achou por bem rodear-se do bom, do melhor e do mais caro que em
poetas, músicos, actores, cantores, pintores e escultores havia pelas itálias,
e por causa disso arranjou um trinta e um de alto lá com ele. Com os cofres à
míngua e com a Igreja falida, a ver se ganhava algum, Leão X inventou as bulas
papais que limpavam as almas mais branco do que o TIDE. Vendeu então a salvação
das almas a alto preço e lá foi equilibrando a contabilidade. Mas o diabo, como
sempre nestas coisas que metem religião e cultura, estava à espreita. Com a
venda das bulas Leão X irritou o obscuro frade alemão Martinho Lutero e deu
fogo à peça da Reforma que deixaria a Europa a ferro e fogo por mais de um
século. E tudo por causa de uma paixão de Estado, quer dizer, de príncipe, pela
cultura.
Bem, mas também a criação artística
é, ou pode ser, a manifestação do resto de religiosidade (profana embora, mas
não interessa) ainda possível de desencantar na alma de um homem, um último
alento de divindade recebido pelo Homem do supremo criador de tudo, Deus.
Sabe-se lá se o bom Leão X não pensou assim…
No léxico artístico-cultural não
são poucas as fórmulas sacrais. E se, para Marx, a religião não passava de um
ópio para os povos, que dizer das virtualidades da arte nesse campo opiáceo?
Malraux até comparava as casas de cultura por ele acabadinhas de inaugurar a
modernas catedrais. Ou talvez que o ministério adstrito aos assuntos culturais
assuma, quem sabe, veleidades de actividade pastoral, magistério sagrado,
gestão das almas, múnus salvífico, e tendo em vista a actual e profunda crise
da fé – digo, da paixão.
Poderá a cultura, como queria
Nietzsche, assumir o encargo de domesticar a besta humana?
Ou será destino da arte e da
cultura em geral problematizar a vida humana para lá do evidente, inquietar a
tranquilidade amorfa da espécie, desvelar o Homem a si próprio, revelar-lhe a
natureza verdadeira daquilo que lhe empana a felicidade, discutir, criticar-lhe
as instituições, desmascarar-lhe os reis nús?
Por agora, fico-me mais pela
segunda hipótese. Que por sinal explica alguma coisa sobre o sinal que os
tempos actuais nos dão.
O porquê de um desinvestimento dos
estados na cultura? O porquê de ser cada vez mais
difícil podermos ver estreado nos cinemas um daqueles grandes filmes que já não
se fazem, não só porque ficam caros para os critérios culturais de agora, mas
também, et pour cause, porque já não
vão aparecendo os grandes artistas para os fazerem?
O porquê de não se verem jeitos de
aparecer o grande romance que fosse para o séc. XXI o que A Montanha Mágica, A Náusea, O Som e a Fúria, O Estrangeiro, o Quarteto de Alexandria, o Por Quem Os Sinos Dobram, O Grande Gatsby,
A Condição Humana ou os Cem Anos de Solidão foram para o séc.
XXI?
O porquê de não se vislumbrarem as guernicas do séc. XXI?
O porquê de não estarem a aparecer
no séc. XXI os poemas que se equiparassem em profundidade e importância
civilizacional a Os Cantos Pisanos, a
Residencia en la Tierra ou The Waste
Land (por exemplo); ou as peças teatrais que dessem sequência ao Rei Ubu, À Espera de Godot, ao Círculo
de Giz Caucasiano, ao Soulier de Satin, à Morte de Um
Caixeiro Viajante, à Longa Jornada
para a Noite, a Um Eléctrico Chamado
Desejo, à Visita da Velha Senhora (por
exemplo)?
O porquê de não aparecerem na
grande música do séc. XXI os émulos da transcendência musical do séc. XX, a Noite Transfigurada, a Sinfonia dos Mil,
Wozzeck, a Sagração da Primavera?
O porquê de as iniciativas e formas
culturais estarem obrigados, se quiserem ver a luz do dia, a oferecer às
maiorias acéfalas e infantilizadas, antes de mais e de tudo, divertimento e
mais divertimento?
O porquê…
A magna questão está no pensar.
Pensar ou não pensar. A conveniência e a inconveniência de pensar. Quem pode
pensar e quem não pode pensar. Para quem é útil pensar e para quem é perigoso
pensar.
Para que o dinheiro triunfe em toda
a linha como valor civilizacional máximo e pensamento único será bom
evitarem-se pensamentos outros, e plurais.
Nos momentos trágicos que vivemos o
alvo é o Homem. Há que destruí-lo na sua inteireza espírito/matéria. Há que
reconstrui-lo sob um primado único e material.
É obrigatório que as massas deixem
de pensar. O Homem não pode tornar a interrogar-se como o fez no pós-II Guerra
ou nos idos de 60, em pleno Vietnam, em cheiro de guerra fria. É obrigatório
infantilizar a cidadania, reduzi-la ao acto de consumir, e de se endividar para
melhor cultuar o dinheiro e consumir mais e mais; de se endividar para cair no
incumprimento e na pobreza por forma a que o preço do trabalho diminua até à
insignificância, e que a alienação aumente até à indiferença.
Não pensar. Não afinar a
sensibilidade. Não cultivar o espírito – na contrapartida de cultivar até ao
grotesco o corpo. Porque o homem que pensa levanta inevitavelmente problemas e
não mais que problemas. O homem que pensa pergunta. E não resolve os problemas
nem obtém as respostas às perguntas que faz. E se obtém respostas é garantido
que elas não agradam à sua condição de homem e de cidadão. O dinheiro não tem
boas respostas para os que persistem em conservar esses estatutos – de homem e
de cidadão.
E o homem sem respostas às
perguntas que faz ao mundo e à vida pode revoltar-se. O homem que procura o
conhecimento incomoda o dinheiro, porque já de si o conhecimento dá respostas
incómodas. E o homem que obtém algum conhecimento aspira sempre a novo
conhecimento. E o homem que conhece pode indignar-se. E o homem que conhece
pode revoltar-se. E as consequências da acção de um homem revoltado são
imprevisíveis e ameaçam a sacro-santidade de toda a ordem dos equilíbrios.
Pois são muitos, variegados e
desvairados os problemas colocados pelo que se vulgarizou sob o genérico nome
de cultura. E quem coloca as questões são os que lêem (ou leram) os grandes
livros e os grandes poemas, viram os grandes filmes e o grande teatro doutros
tempos, ouviram a grande música, contemplaram os grandes quadros. São esses os
que ainda colocam no ar as interrogações incómodas para o equilíbrio das taxas
de juro, dos movimentos da Bolsa, do mundo laboral, interrogações incómodas, em
suma, para a dominação total dos sistemas partidário e bancário – às vezes, a
brincar a brincar, as coisas andam ligadas...
Investir na cultura é doravante risco
elevado para as novas idades do ouro. Não é paixão que chegue ao sensível
coração dos estados. É somente problema meu.
Os estados e os governos dependem
em periclitância dos tais equilíbrios da finança e do intocável bem-estar dos
investidores. Exactamente os que criam a estabilidade/instabilidade do
emprego/desemprego; os que criam a estabilidade/instabilidade das maiorias
governantes, alimentando os partidos e conduzindo-os ciclicamente à vitória/derrota
eleitoral; os que criam, enfim, a realidade para que eu a viva na ilusão de que
ainda me resta a cultura.
O outro é que a dizia bem: quando
ouço falar de cultura puxo logo pela pistola.
Cultura como paixão de Estado autocrático
a que se pode dar o nome alternativo de propaganda ideológica. Cultura como paixão
do Estado demo-liberal a que se pode dar o nome de inércia (Dona Inércia, lá
está!) ou indiferença, que é quando ela, cultura, passa a ser um problema
exclusivamente meu.
É isso, pessoal. Pensamento único.
Divertimento e imbecilização – até o futebol já foi, de longe, mais sério e
respeitável do que é hoje. Alta rotatividade dos capitais. Racionalização de
custos. Liberdade de escolha entre desemprego absoluto e fome absoluta, ou sub-emprego,
salário de miséria e fome relativa. E cara alegre.
Sim, cultura é isto. Não sei se hoje
é só isto, mas que também é isto, ai isso é.