quinta-feira, 3 de julho de 2014

      OPOSIÇÃO


        Uma pessoa leal, ética, crente e ingénua afirmaria que nada pode funcionar nesta vida e nas relações humanas sem um substracto moral não escrito, subentendido e aceite, consueto, que poderá constar de dois ou três princípios muito simples.
       Dir-se-ia que os grandes limites à atávica agressividade do Homem não estão escritos em código nenhum, embora sejam ponto assente de convivência e façam  barreira às subliminares perversidades contidas em lei escrita. Dir-se-ia. mas não. As regras éticas do jogo democrático-parlamentar – o menos imperfeito dos sistemas políticos alguma vez inventados – podem… e o que é mais picante… devem… ser forçadas, subvertidas até, e sem embaraços morais de maior.
       Como. Quando. Porque ponderosas razões.


       Pois quando o regular funcionamento do próprio regime democrático - eleições livres, exercício do poder pela representação das maiorias sociológicas, poder executivo e poder legislativo saudavelmente separados, governo responsável perante o parlamento - acaba, ele mesmo, por pôr em causa esse regimento democrático-parlamentar menos imperfeito do que os outros.
                                                                                                        
                                             

Quando, respeitando a moral do jogo político, se corre o risco – democraticamente legítimo – de transformar uma democracia representativa numa autocracia, numa ditadura, e pior do que todas as outras ditaduras porque livremente legitimada pelo sufrágio universal fonte de todo o poder, e quando começa a ser suposto que a alternância do poder é o instituto realmente estruturante do sistema.  
                 

    
    Se há probabilidade de perpetuação de um partido no poder, suportado por uma maioria parlamentar, e ainda que limpamente eleito, terá por força de armar-se uma estrangeirinha para o apear do poder, e sendo que na dita estrangeirinha pode ser bom incluir um certo número de procedimentos que pouco ou nenhum caso façam dos fundamentos morais básicos do Estado de Direito. É por ser assim que as oposições em democracia representativa se tornam tão determinantes na vida da comunidade nacional, por vezes mais até do que as situações, ou situacionismos, quer dizer, os governos, a maiorias parlamentares.


       Qual é a a vertente de facto estruturante de um sistema de poder democrático? Deve ser a manifestação livre da vontade popular. Mas depois pode chegar-se à conclusão de que há outro afluente da democracia que é a alternância dos partidos no poder. Logo, a vontade popular livremente expressa só tem força democrática estruturante na condição de não ser muito constante, na condição de ser volúvel que baste para promover nos devidos timings as devidas alternâncias de governo.


       Porque razão todos os governos reclamam das oposições e todos gritam dos seus anseios de ter do outro lado das bancadas uma oposição responsável?


       Deve ser para irem, como quem não quer a coisa, alertando o eleitorado para o infernal poder que cabe às oposições em democracia; para os riscos que ameaçam o governo pela existência de uma oposição que é tão responsável ou tão irresponsável que quer esse poder de governo para si. E depressa.
       Mas também é preciso ver que o partido mais forte e representativo de qualquer oposição já anteriormente esteve no governo.



Não esteve? Mas é fatal que venha a estar. Pela regra incontornável da alternância, claro. Regra que decorrerá da natural fluidez da opinião pública, do capricho dito imprevisível das massas, um eleitorado que vota e torna a votar, mas que, por mais que leia jornais e veja televisão, sabe tanto dos mais macambúzios negócios do Estado  como um primeiro ministro há-de saber de lagares de azeite.   


A oposição transporta consigo o peso de uma tragédia: estar sentenciada a ser governo, e por razão de cumprir a regra inexorável da democracia, a alternância.
Mas também, se as oposições fossem boazinhas e muito responsáveis os governos seriam eternos e impunemente irresponsáveis, dada a inércia irritante dos povos que sempre gostam mais do que está do que daquilo que pode  vir a estar. E os governos têm a vantagem de ter nas descricionárias mãos os melhores meios de reprodução ideológica.

                                                     

A verdade é que não há oposições imaculadamente responsáveis. Seria mesmo um contra-senso.        
Quem deve ser responsável (na medida do possível em democracia) é quem está no governo. Por definição. Está obrigado a sê-lo. Ou a parecê-lo, vamos lá. Mas só enquanto lá está. Porque quando pelos bambúrrios eleitorais o que está no governo for punido por tanta e tão chata responsabilidade e passar à oposição, vai imediatamente entrar no seu ciclo diabólico-político de irresponsabilidade. Até ao dia em que for outra vez sentar-se no cadeirão do poder e lá de cima passar novamente a pedir responsabilidade à oposição.


Cabe às oposições ter como armamento anímico e arma de arremesso a violência de um argumento improvável; ou de um sonho, o sonho de governar bem. 
Mas é impossível governar bem sem se ser irresponsável. O melhor que se pode arranjar no confronto com as realidades da governação é gerir a coisa pública e arbitrar  os desvairados interesses nos limites do menos mal.

                                                      

À oposição é que cabe a solidez moral de uma convicção impossível. Dizem ao eleitorado que poderiam fazer melhor do que os que estão no governo, ainda que no tempo e que foram governo não o tivessem feito nem pouco mais ou menos.
Mas é por isso que os partidos mudam de líder. Só para tentar forçar as aparências. Só para tentar forçar a lógica imbatível dos interesses humanos.


Uma oposição que seja responsável e sóbria e cristanmente tolerante, não o é. Oposição, perceba-se. Nem
ninguém acreditará nela como tal. Ou então… ou então estará tão malzinha internamente que não vê outro remédio senão fazer-se passar por responsável quando na verdade só é politicamente débil.
       A uma oposição é tolerada a bravata, quer dizer, a alternativa da irresponsabilidade. Mas se for governo e for reinadía e irresponsável será a catástrofe – tanto quanto possamos ter a noção do que seja uma catástrofe em política. Os partidos de governo sabem-no bem e por isso as coisas lá se vão aguentando enquanto a realização da regra da alternância não fugir dos horizontes de quem é oposição. Porque quando, e se, essa regra fugir dos horizontes tudo pode passar a ser permitido – desde que não descoberto – porque a democracia política, e mais tudo o que dela fizeram, é bom terreno para a hipocrisia. E então, dír-se-ia que a moral democrática, ou o que dela fizeram com o passar do tempo e com a saturação da vida, é uma moral de alterne.


       Outra coisa, ou seja, a mesma.
Um consórcio de notáveis endinheirados e influentes que se juntam e penetram razoavelmente as redacções dos jornais, pode, com o tempo, constituir-se num ou dois partidos de massas, e contando com o voto popular pode vir a ter nas mãos as alavancas do poder de Estado, organizando depois uma rotação lá entre eles. Pela força das coisas, podem chamar a si outros, enfeitiçados com o consórcio que pode ser trampolim para interesses e carreiras. E está formado um partido, ou dois, com vocação de governo. De poder.
                                       
                                                   

       Tempos houve em que os animais falavam, ao que se diz, e em que as ideias era o que estava a dar, e em que os homens constituíam partidos políticos por uma questão de moral e pela força da moral das suas convicções sobre o que seria a melhor receita política em função do interesse geral da comunidade.
Terá sido assim? Não terá? Partamos do princípio de que foi. E de que se chegavam a esses homens e a esses partidos aqueles que partilhavam com eles valores e princípios para o
serviço do bem comum.
       Eram uns teóricos. Eram uns poetas. Ficariam à maravilha na oposição, e em desprezo pelos seus interesses pessoais mais imediatos a clamar sobre o que deveria ser feito pelo governo dos partidos endinheirados e não era. E estava formado um partido com vocação oposicionista.


E enquanto o consórcio dos endinheirados era um partido espertíssimo a lidar com as realidades práticas da vida e dos mais vastos dinheiros, o segundo, o da moral do interesse comum, tinha da realidade uma ideia, e fundamentava o seu poder opositivo nessa sua moral. Até ao dia em que os deuses e a regra da alternância quiseram que o partido com vocação oposicionista, por via da sua moral, se tornasse uma força eleitoral em ganho de influência, isto é, de poder, e fosse chamado à governação. E que esse, ao querer contentar todos, tivesse feito menos bem a sua governação, e talvez por força de alguma conjuntura (ou conjura) tivesse passado outra vez à oposição. Porém, sem perder a perspectiva de voltar a alcançar o poder, um poder que soube tão bem aos seus apaniguados e dependentes. Estava contaminado. Já tinha experimentado o poder e era bom.


Acredito mesmo numa predestinação partidária bipolar: vocação governamental e vocação moral oposicionista. Uma predestinação que pode marcar a diferença entre direita e esquerda, e não obstante esses conceitos de direita e esquerda estarem, hoje por hoje, mais afastados da imediata cogitação de quem lida com o poder de facto. Porque o poder são os dois. Porque não há na vida condição mais interactiva do que o poder, o dos que estão e o dos que não estão mas querem estar e depressa.


Os partidos, se formos a ver, nasceram à medida dos homens que os formaram e formam. E como os homens – e como dizia a Hermínia Silva – têm a sua sina nas linhas traçadas na palma da mão, ou nas mãos dos seus dirigentes. Alguns ficam hirtos ao administrarem as tábuas da lei talhadas por outros; há quem fique encalacrado pelo destino ao ter de vociferar no hemiciclo contra o governo constituído, e esses porque conhecem bem a maquinaria do poder e pretendem demonstrar uma responsabilidade; outros nasceram para o poder e temem pela sua moral quando no papel de oposição; ainda outros são os inibidos ao prometerem o irrealizável, sabendo que mais dia menos dia, pela regra da alternância, estão outra vez caídos no poder.

                                                   

Pois é, devia ser assim…pensarem na cara com que ficariam quando, chegados ao poder, renegassem tudo o que haviam dito enquanto oposição, os mundos e fundos próprios de conto das Mil e Uma Noites.
Devia ser assim mas não é. Como todos sabemos.
Há partidos que nasceram para o governo; há partidos que nasceram para dizer mal do governo.


No meio estão os media. Para esclarecer o povo. Para equilibrar o jogo. Ou para o desequilibrar por completo e confundir tudo mais do que está. A opinião, quando livremente expressa, está perto de ser um reconhecido, autorizado e encorajado estado de embriaguês institucional.
É pelos media que os políticos fazem chegar ao povo as suas promessas redentoras – e mais redentoras ainda se eles são oposicionistas de longa duração, como os desempregados, que é na verdade o que são, desempregados da política…
Mas todos proclamam que fazem oposição construtiva. E são os cínicos que perguntam se há coisa mais irresponsável, desconstrutiva e irrealista em política do que una promessa eleitoral, seja ela qual for e venha de onde vier.

                                           

Quem tem moral e condições em política para prometer?
Quem tem mais jeito para promessas do que os partidos da oposição que esperam (e desesperam) vir a ser governo mais dia menos dia, segundo a regra da alternância democrática?
E qual é o político, oposicionista ou governamental, que em campanha não faz promessas? Esse é um irresponsável desprovido da sagrada ambição do poder. Esse, a bem dizer, nem é político, nem é homem, nem é nada. Porque não pensa profundamente desta maneira: agora estão lá os outros, e se eu quiser lá meter os nossos tenho que fazer promessas aos papalvos para eles porem a cruz no boletim como deve ser.
Se um político ou um partido, por uma questão de honestidade, não fazem promessas irresponsáveis é porque se estão nas tintas para a regra da alternância. Logo, para a democracia. Logo, para o povo. Não servem. A ninguém. Ao sistema, antes de mais.
É este o jogo. É esta a moral.


E haja alegria no forrobodó das alternâncias, das alternadeiras e alternadeiros da política. É esta a moral ao mais alto nível das nações.

   

                                              

E depois ainda nos admiramos dos cambalachos do futebol, com o que hoje é mentira e amanhã é verdade, com a fraca extracção cultural daquela gente, com o baixo nível das exibições e das arbitragens, com as ligas e as federações e respectivos juristas de futebol, com a estupidez clubista de alguns comentadores, com os números das transferências, com a risível incontinência verbal dos dirigentes, com os empresários a mandar nos clubes e nas selecções, com as desculpas mal enjorcadas dos treinadores quando perdem, com os jogadores a dizer que estão de parabéns e que é preciso levantar a cabeça quando perdem, com a informação e com a contra-informação...


Mas continuará sempre a haver o adepto façanhudo que paga religiosamente as quotas – como os incondicionais dos partidos – os que vão ao estádio faça chuva ou faça sol, e na paupérrima certeza de que também eles ganham ou perdem moralmente alguma coisa com o seu clube, e quando afinal são sempre eles que perdem, quanto mais não seja o dinheiro do bilhete ou da quota.
            
                                                  


O que é que isto da bola tem a ver com os partidos, as situações, as oposições, os campeões, os vencedores, os vencidos, as alternâncias? Omessa! Tem tudo.

1 comentário:

  1. Só o Joel para chamar aos partidos da oposição, que nunca foram (nem provavelmente serão...) governo
    "desempregados de longa duração". Faz bem ao espírito ler estas crónicas.

    ResponderEliminar