OPOSIÇÃO
Uma pessoa leal,
ética, crente e ingénua afirmaria que nada pode funcionar nesta vida e nas
relações humanas sem um substracto moral não escrito, subentendido e aceite,
consueto, que poderá constar de dois ou três princípios muito simples.
Dir-se-ia que os grandes limites à
atávica agressividade do Homem não estão escritos em código nenhum, embora
sejam ponto assente de convivência e façam
barreira às subliminares perversidades contidas em lei escrita.
Dir-se-ia. mas não. As regras éticas do jogo democrático-parlamentar – o menos
imperfeito dos sistemas políticos alguma vez inventados – podem… e o que é mais
picante… devem… ser forçadas, subvertidas até, e sem embaraços morais de maior.
Como. Quando. Porque ponderosas razões.
Pois quando o regular funcionamento do
próprio regime democrático - eleições livres, exercício do poder pela
representação das maiorias sociológicas, poder executivo e poder legislativo
saudavelmente separados, governo responsável perante o parlamento - acaba, ele
mesmo, por pôr em causa esse regimento democrático-parlamentar menos imperfeito
do que os outros.
Quando, respeitando a moral do jogo
político, se corre o risco – democraticamente legítimo – de transformar uma
democracia representativa numa autocracia, numa ditadura, e pior do que todas
as outras ditaduras porque livremente legitimada pelo sufrágio universal fonte
de todo o poder, e quando começa a ser suposto que a alternância do poder é o
instituto realmente estruturante do sistema.
Se há probabilidade de perpetuação de um
partido no poder, suportado por uma maioria parlamentar, e ainda que limpamente
eleito, terá por força de armar-se uma estrangeirinha para o apear do poder, e
sendo que na dita estrangeirinha pode ser bom incluir um certo número de
procedimentos que pouco ou nenhum caso façam dos fundamentos morais básicos do
Estado de Direito. É por ser assim que as oposições em democracia
representativa se tornam tão determinantes na vida da comunidade nacional, por
vezes mais até do que as situações, ou situacionismos, quer dizer, os governos,
a maiorias parlamentares.
Qual é a a vertente de facto estruturante
de um sistema de poder democrático? Deve ser a manifestação livre da vontade
popular. Mas depois pode chegar-se à conclusão de que há outro afluente da
democracia que é a alternância dos partidos no poder. Logo, a vontade popular
livremente expressa só tem força democrática estruturante na condição de não
ser muito constante, na condição de ser volúvel que baste para promover nos
devidos timings as devidas
alternâncias de governo.
Porque razão todos os governos reclamam
das oposições e todos gritam dos seus anseios de ter do outro lado das bancadas
uma oposição responsável?
Deve ser para irem, como quem não quer a
coisa, alertando o eleitorado para o infernal poder que cabe às oposições em
democracia; para os riscos que ameaçam o governo pela existência de uma
oposição que é tão responsável ou tão irresponsável que quer esse poder de
governo para si. E depressa.
Mas também é preciso ver que o partido
mais forte e representativo de qualquer oposição já anteriormente esteve no
governo.
Não esteve? Mas é fatal que venha a estar.
Pela regra incontornável da alternância, claro. Regra que decorrerá da natural
fluidez da opinião pública, do capricho dito imprevisível das massas, um
eleitorado que vota e torna a votar, mas que, por mais que leia jornais e veja
televisão, sabe tanto dos mais macambúzios negócios do Estado como um primeiro ministro há-de saber de
lagares de azeite.
A oposição transporta consigo o peso de uma
tragédia: estar sentenciada a ser governo, e por razão de cumprir a regra
inexorável da democracia, a alternância.
Mas também, se as oposições fossem
boazinhas e muito responsáveis os governos seriam eternos e impunemente
irresponsáveis, dada a inércia irritante dos povos que sempre gostam mais do
que está do que daquilo que pode vir a
estar. E os governos têm a vantagem de ter nas descricionárias mãos os melhores
meios de reprodução ideológica.
A verdade é que não há oposições
imaculadamente responsáveis. Seria mesmo um contra-senso.
Quem deve ser responsável (na medida do
possível em democracia) é quem está no governo. Por definição. Está obrigado a
sê-lo. Ou a parecê-lo, vamos lá. Mas só enquanto lá está. Porque quando pelos
bambúrrios eleitorais o que está no governo for punido por tanta e tão chata
responsabilidade e passar à oposição, vai imediatamente entrar no seu ciclo
diabólico-político de irresponsabilidade. Até ao dia em que for outra vez
sentar-se no cadeirão do poder e lá de cima passar novamente a pedir
responsabilidade à oposição.
Cabe às oposições ter como armamento
anímico e arma de arremesso a violência de um argumento improvável; ou de um
sonho, o sonho de governar bem.
Mas é impossível governar bem sem se ser
irresponsável. O melhor que se pode arranjar no confronto com as realidades da
governação é gerir a coisa pública e arbitrar
os desvairados interesses nos limites do menos mal.
À oposição é que cabe a solidez moral de
uma convicção impossível. Dizem ao eleitorado que poderiam fazer melhor do que
os que estão no governo, ainda que no tempo e que foram governo não o tivessem
feito nem pouco mais ou menos.
Mas é por isso que os partidos mudam de
líder. Só para tentar forçar as aparências. Só para tentar forçar a lógica
imbatível dos interesses humanos.
Uma oposição que seja responsável e sóbria
e cristanmente tolerante, não o é. Oposição, perceba-se. Nem
ninguém
acreditará nela como tal. Ou então… ou então estará tão malzinha internamente
que não vê outro remédio senão fazer-se passar por responsável quando na
verdade só é politicamente débil.
A uma oposição é tolerada a bravata, quer
dizer, a alternativa da irresponsabilidade. Mas se for governo e for reinadía e
irresponsável será a catástrofe – tanto quanto possamos ter a noção do que seja
uma catástrofe em política. Os partidos de governo sabem-no bem e por isso as
coisas lá se vão aguentando enquanto a realização da regra da alternância não
fugir dos horizontes de quem é oposição. Porque quando, e se, essa regra fugir
dos horizontes tudo pode passar a ser permitido – desde que não descoberto –
porque a democracia política, e mais tudo o que dela fizeram, é bom terreno
para a hipocrisia. E então, dír-se-ia que a moral democrática, ou o que dela
fizeram com o passar do tempo e com a saturação da vida, é uma moral de
alterne.
Outra coisa, ou seja, a mesma.
Um consórcio de notáveis endinheirados e
influentes que se juntam e penetram razoavelmente as redacções dos jornais, pode,
com o tempo, constituir-se num ou dois partidos de massas, e contando com o
voto popular pode vir a ter nas mãos as alavancas do poder de Estado,
organizando depois uma rotação lá entre eles. Pela força das coisas, podem
chamar a si outros, enfeitiçados com o consórcio que pode ser trampolim para
interesses e carreiras. E está formado um partido, ou dois, com vocação de
governo. De poder.
Tempos houve em que os animais falavam,
ao que se diz, e em que as ideias era o que estava a dar, e em que os homens
constituíam partidos políticos por uma questão de moral e pela força da moral
das suas convicções sobre o que seria a melhor receita política em função do
interesse geral da comunidade.
Terá sido assim? Não terá? Partamos do
princípio de que foi. E de que se chegavam a esses homens e a esses partidos
aqueles que partilhavam com eles valores e princípios para o
serviço
do bem comum.
Eram uns teóricos. Eram uns poetas.
Ficariam à maravilha na oposição, e em desprezo pelos seus interesses pessoais
mais imediatos a clamar sobre o que deveria ser feito pelo governo dos partidos
endinheirados e não era. E estava formado um partido com vocação oposicionista.
E enquanto o consórcio dos endinheirados
era um partido espertíssimo a lidar com as realidades práticas da vida e dos
mais vastos dinheiros, o segundo, o da moral do interesse comum, tinha da
realidade uma ideia, e fundamentava o seu poder opositivo nessa sua moral. Até
ao dia em que os deuses e a regra da alternância quiseram que o partido com
vocação oposicionista, por via da sua moral, se tornasse uma força eleitoral em
ganho de influência, isto é, de poder, e fosse chamado à governação. E que esse,
ao querer contentar todos, tivesse feito menos bem a sua governação, e talvez
por força de alguma conjuntura (ou conjura) tivesse passado outra vez à
oposição. Porém, sem perder a perspectiva de voltar a alcançar o poder, um
poder que soube tão bem aos seus apaniguados e dependentes. Estava contaminado.
Já tinha experimentado o poder e era bom.
Acredito mesmo numa predestinação
partidária bipolar: vocação governamental e vocação moral oposicionista. Uma
predestinação que pode marcar a diferença entre direita e esquerda, e não
obstante esses conceitos de direita e esquerda estarem, hoje por hoje, mais
afastados da imediata cogitação de quem lida com o poder de facto. Porque o poder
são os dois. Porque não há na vida condição mais interactiva do que o poder, o
dos que estão e o dos que não estão mas querem estar e depressa.
Os partidos, se formos a ver, nasceram à
medida dos homens que os formaram e formam. E como os homens – e como dizia a
Hermínia Silva – têm a sua sina nas
linhas traçadas na palma da mão, ou nas mãos dos seus dirigentes. Alguns
ficam hirtos ao administrarem as tábuas da lei talhadas por outros; há quem
fique encalacrado pelo destino ao ter de vociferar no hemiciclo contra o
governo constituído, e esses porque conhecem bem a maquinaria do poder e
pretendem demonstrar uma responsabilidade; outros nasceram para o poder e temem
pela sua moral quando no papel de oposição; ainda outros são os inibidos ao
prometerem o irrealizável, sabendo que mais dia menos dia, pela regra da
alternância, estão outra vez caídos no poder.
Pois é, devia ser assim…pensarem na cara
com que ficariam quando, chegados ao poder, renegassem tudo o que haviam dito
enquanto oposição, os mundos e fundos próprios de conto das Mil e Uma Noites.
Devia ser assim mas não é. Como todos
sabemos.
Há partidos que nasceram para o governo; há
partidos que nasceram para dizer mal do governo.
No meio estão os media. Para esclarecer o
povo. Para equilibrar o jogo. Ou para o desequilibrar por completo e confundir
tudo mais do que está. A opinião, quando livremente expressa, está perto de ser
um reconhecido, autorizado e encorajado estado de embriaguês institucional.
É pelos media que os políticos fazem chegar
ao povo as suas promessas redentoras – e mais redentoras ainda se eles são
oposicionistas de longa duração, como os desempregados, que é na verdade o que
são, desempregados da política…
Mas todos proclamam que fazem oposição
construtiva. E são os cínicos que perguntam se há coisa mais irresponsável,
desconstrutiva e irrealista em política do que una promessa eleitoral, seja ela
qual for e venha de onde vier.
Quem tem moral e condições em política para
prometer?
Quem tem mais jeito para promessas do que
os partidos da oposição que esperam (e desesperam) vir a ser governo mais dia
menos dia, segundo a regra da alternância democrática?
E qual é o político, oposicionista ou
governamental, que em campanha não faz promessas? Esse é um irresponsável
desprovido da sagrada ambição do poder. Esse, a bem dizer, nem é político, nem
é homem, nem é nada. Porque não pensa profundamente desta maneira: agora estão
lá os outros, e se eu quiser lá meter os nossos tenho que fazer promessas aos
papalvos para eles porem a cruz no boletim como deve ser.
Se um político ou um partido, por uma
questão de honestidade, não fazem promessas irresponsáveis é porque se estão
nas tintas para a regra da alternância. Logo, para a democracia. Logo, para o
povo. Não servem. A ninguém. Ao sistema, antes de mais.
É este o jogo. É esta a moral.
E haja alegria no forrobodó das
alternâncias, das alternadeiras e alternadeiros da política. É esta a moral ao
mais alto nível das nações.
E depois ainda nos admiramos dos
cambalachos do futebol, com o que hoje é mentira e amanhã é verdade, com a
fraca extracção cultural daquela gente, com o baixo nível das exibições e das
arbitragens, com as ligas e as federações e respectivos juristas de futebol,
com a estupidez clubista de alguns comentadores, com os números das
transferências, com a risível incontinência verbal dos dirigentes, com os
empresários a mandar nos clubes e nas selecções, com as desculpas mal
enjorcadas dos treinadores quando perdem, com os jogadores a dizer que estão de
parabéns e que é preciso levantar a cabeça quando perdem, com a informação e
com a contra-informação...
Mas continuará sempre a haver o adepto
façanhudo que paga religiosamente as quotas – como os incondicionais dos
partidos – os que vão ao estádio faça chuva ou faça sol, e na paupérrima
certeza de que também eles ganham ou perdem moralmente alguma coisa com o seu
clube, e quando afinal são sempre eles que perdem, quanto mais não seja o
dinheiro do bilhete ou da quota.
O que é que isto da bola tem a ver com os
partidos, as situações, as oposições, os campeões, os vencedores, os vencidos, as
alternâncias? Omessa! Tem tudo.
Só o Joel para chamar aos partidos da oposição, que nunca foram (nem provavelmente serão...) governo
ResponderEliminar"desempregados de longa duração". Faz bem ao espírito ler estas crónicas.