sábado, 12 de julho de 2014


         AUTOBIOGRAFIA DE UM CÍNICO


Pelos meus vinte anos, os críticos diziam que eu era brutal – disse ele. - Aos trinta diziam que eu era irreverente, aos quarenta diziam que era cínico, aos cinquenta diziam-me competente, e agora, aos sessenta dizem que sou superficial. Fiz o que pude para me amoldar ao padrão desejado.


O que é passatempo para os outros é para o artista cruel preocupação – continua ele a dizer. - O artista cria os seus próprios valores. Os homens julgam-no cínico porque não dá importância às virtudes nem se irrita com os vícios. Aquilo a que os homens chamam virtudes e aquilo a que chamam vício não são coisas pelas quais ele se interesse. Os homens comuns têm toda a razão em indignar-se com ele.
Apesar de não serem palavras minhas, até nem vou muito fora delas. E mais estas:
O egoísmo do artista é chocante. O mundo só existe para que ele exerça os seus poderes de criação. Nunca sente as emoções comuns dos homens com seu ser inteiro, visto que tanto é espectador como actor. Isso faz com que pareça não ter coração. As mulheres põem-se em guarda contra ele. São atraídas por ele, mas sentem que não podem dominá-lo completamente como queriam.


E esta pergunta que no tempo menos fútil dos escritores e dos artistas fazia imenso sentido e ocupava os espíritos de muita gente: Que há com o escritor que ele não é um homem… é muitos? E só porque é todos pode criar tantos e a medida da sua grandeza está no número de eus que ele comporta.
William Somerset Maugham. Inglês. Dramaturgo, novelista e contista de ressonância mundial e de imenso sucesso no seu tempo – será que ainda hoje? – devido às suas intrigas magistralmente urdidas e à pintura tanto de paragens exóticas como de uma certa extracção da sociedade inglesa do virar do século XIX.
Pode nunca ter sido muito apreciado pelos críticos ou pelos teóricos da literatura, mas acham que ele se importou assim tanto com isso? Não creio. (E daí talvez.) Era apreciado pelo público. Óptima consolação. Vendia. Era rico. Os críticos, pff…
É mau viver-se com um artista. Ele pode ser sincero na sua emoção criadora, mas dentro dele há outro que é capaz de rir do exercício da emoção. O artista não merece confiança.
Dizia-se, provavelmente com razão, que Somerset Maugham não tinha o que se chamava propriamente de estilo. Não era de facto uma voz narrativa demasiado sonora. E também eu acho que não. Porquê? Porque as suas personagens eram sempre mais interessantes e mais fortes do que a voz que lhes narrava os feitos. Maugham como que se escondia, como que desaparecia por detrás das suas personagens, anulava-se como autor e deus ex-machina, dava a ideia de serem as personagens a escrever as suas histórias enquanto as iam vivendo. E se se pode falar do estilo de Somerset Maugham, convém dizer-se que era de uma concisão árida, seca, amarga. Como ele próprio.
Não tenho uma natural fé nos outros. Sinto-me sempre mais inclinado a esperar dos outros o mal do que o bem.
O sentido de humor é o que nos leva ao divertimento com as discrepâncias da natureza humana; leva-nos a desconfiar das grandes atitudes e a procurar os motivos indignos que essas grandes atitudes ocultam. A beleza, a verdade e a bondade não oferecem grande alimento ao nosso sentido do ridículo.
Maugham era um mestre da short story. Como outros grandes contistas, não tão apreciado no romance longo como no conto, o que não quer dizer que não os tenha escrito, e bons, ou pelo menos célebres, o autobiográfico A Servidão Humana, e um outro, conhecidíssimo, O Fio da Navalha. Há anos caiu-me nas mãos o seu ensaio autobiográfico Exame de Consciência e aqui há pouco tempo tive ocasião de o reler e de lhe apreciar a moral.
Somerset Maugham, na sua longa vida – passou dos 90, tanto quanto me lembro –, frequentou políticos. Não os achou brilhantes. Achou-os intrigantes. Pensou que não era necessário um certo grau de inteligência para governar os povos. Maugham intrigou-se com a mediocridade intelectual e espiritual dos políticos – e melhor para ele não os ter conhecido actuais… e portugueses.


Sempre houve gente ansiosa por conhecer de perto as celebridades. Não tem outro intuito senão o de contar aos amigos que se conheceu de perto A ou B. Mas as celebridades não se mostram. Adoptam uma máscara. É o que mostram ao público e aos curiosos, ocultando a sua verdadeira realidade.
Como seria de esperar de um ficcionista, Maugham interessou-se sempre pelo género humano. Mas nunca por simpatia para com o género humano. Apenas por amor da sua obra. Claro! O Homem não era um fim em si mesmo, era material que lhe poderia servir ou não. E sempre preferiu conhecer os homens obscuros em detrimento dos mais conhecidos. Os obscuros, como nunca estiveram expostos, não viam necessidade de se ocultar. Revelavam algumas das suas originalidades porque nunca lhes passaria pela cabeça que pudessem ser originais. Maugham preferia passar um mês numa ilha deserta com um veterinário do que com um 1º ministro.
Cá está ele em discurso directo: um longo hábito tornou mais cómodo falar de mim por intermédio de personagens da minha invenção. Ninguém pode dizer toda a verdade a respeito de si, e quando sei uma coisa não tenho a mais pequena necessidade de a partilhar com os outros.
E falou abundantemente da pecha que os críticos lhe apontavam. O estilo. O grande estilo, diz, impressiona mais do que o singelo. Muita gente pensou que um estilo que não chamasse as atenções não era estilo.
Uso a palavra “artista” sem atribuir ao que ele produz algum valor especial. Não encontro palavra melhor. Criador?  - Maugham acha “criador” uma designação pretenciosa. Artífice também não lhe chega, porque um carpinteiro é um artífice, e mesmo que em qualquer sentido possa ser um artista não dispõe da liberdade de acção que, como ele diz, o mais incompetente dos escribas possui.
O artista pode fazer o que quiser da sua vida. O médico, o jurista, por exemplo, escolhido o caminho, adeus liberdade, as regras da profissão sujeitam-no e impõem-lhe padrões de conduta.
Só artista e o criminoso podem fazer o que quiserem da sua vida.
E sempre a questão social, a classe, a casta. Maugham, não obstante tudo, é um inglês. E conta-nos que Goethe, em jovem, não podia admitir ser filho de um advogado da classe média. Teria por força de ter sangue azul, de descender de algum aristocrata, algum príncipe passara pela cidade e conhecera e amara sua mãe e era ele o fruto de um rápido romance de amor. Ao que nos pode levar a presunção.
 Maugham comenta: quantos jovens românticos e imaginativos não terão brincado com a ideia de não ser filhos do seu medíocre e respeitável pai?
O grande Goethe? Bem, bem, não seria por escrever grandes  obras que um homem deixaria de ser um homem.
É bom não esperarmos muito dos outros. Se assim fizermos, ficaremos agradecidos se nos tratarem bem e imperturbáveis se nos tratarem mal.
Só pode ser a falta de imaginação o que impede as pessoas de ver as coisas de um ponto de vista que não seja o seu.
Somerset Maugham foi médico antes de ser escritor. Exerceu medicina muito jóvem em Londres, em hospitais de pobres e em ambulatório pelo bairro então miserável de Lambeth. Foram riquíssimas as experiências que colheu na sua clínica e que aqui, naturalmente, não posso referir por mais extenso – leiam o livro. Mas há uma reflexão que acho de uma verdade e de um cinismo tocantes perante o desespero ou a ilusão de um doente condenado. Vi o desafio que faz com que um homem acolha um diagnóstico de morte com um gracejo irónico por ser demasiado orgulhoso para deixar ver o terror da sua alma.


O medo destrói qualquer defesa – Maugham em palavras literais – e até a vaidade se sente enfraquecida pelo medo.


Somerset Maugham, não sei bem porquê, o nome, a obra, o tempo dele, sugerem-me sonoridades pianísticas. Deve ter a ver com um conto que li dele na minha tenríssima juventude e me deu muito que pensar, e que tratava o tema das vocações artísticas, sendo a personagem central um jovem pianista.
Aprendi que os homens eram movidos por um selvagem egoísmo, e que o amor era uma cilada que a natureza nos montava somente para prover à propagação da espécie.
Aquilo a que chamava a histeria do mundo repugnava a Maugham. Detestava ser tocado. Ficava horrorizado se algum amigo enfiava o braço dele no seu. Amara bastante, pelo que diz, mas não tivera aa experiência do beijo do amor correspondido. E por acaso até sabia que isso era das melhores coisas que a vida podia oferecer.
Quando alguém me amava sentia-me confundido. Nunca soube o que fazer com essas situações. E só para não ferir sentimentos alheios representei muitas vezes uma paixão que não sentia.
O mundo dos meus vinte anos era um mundo de meia idade, e a juventude era algo que teria de ser atravessado rapidamente para se poder atingir a idade madura.
Confessava-se incapaz de uma completa rendição. E como não sentira jamais algumas das fundamentais emoções do homem comum achava improvável que pela obra dele passasse aquele toque sereno e animal que só os maiores escritores podem oferecer.
Considerava-se não um escritor natural, mas um escritor feito, construído para um objectivo. Chama como exemplo os cantores, os naturais e os que aprendem bem uma técnica. Analisa o passado e descobre que trabalhara subconscientemente com vista a um fim. E o fim era desenvolver a personalidade e corrigir as deficiências do seu ser natural.


Estava capaz de afirmar que não posso passar uma hora na companhia de uma pessoa que não consiga material para uma história a seu respeito.
O devaneio é o campo de trabalho da imaginação criadora. É um privilégio do artista. E para o artista, tal devaneio não é, como para os outros, um caminho de fuga à realidade, é o caminho pelo qual consegue atingi-la. E é o que lhe dá a certeza da sua própria liberdade.
Maugham estabelece que o valor da cultura – muito importante - é o efeito que possa provocar sobre o carácter. Tem uma utilidade para a vida. O alvo não é a beleza. É a bondade.
Não leio um livro por amor do livro, mas por mim mesmo. Não é meu objectivo julgá-lo mas absorvê-lo.


As pessoas vivas, reais, como campo de trabalho do romancista. Somerset Maugham, com experiência longa e própria no ramo, alarga-se sobre a matéria. Nunca um escritor pode saber o suficiente sobre as suas personagens. As pessoas são difíceis de conhecer. Custa muito tempo levá-las a contar aquele pormenor especial a seu respeito que possa ser útil ao ficcionista. E, pior, acrescenta Maugham, não podemos olhá-las e pô-las de lado como fazemos com os livros. Temos de ler todo o volume, a maior parte das vezes para ficarmos a saber que não tinha muito para nos revelar.
O escritor, na solidão do seu espírito, constrói um mundo que é diferente do dos outros homens. O que faz dele escritor é o que o separa dos outros homens. E temos o paradoxo: seja o objectivo do escritor descrever verdadeiramente os outros, é o seu próprio dom que o impede de os conhecer como realmente são.
An? Como? Não sei se me expliquei bem. Ele que fale: muito bem…como se ele, escritor, quisesse ver urgentemente uma coisa e o acto simples de olhar essa coisa lançasse na frente dele um véu que a encobrisse.


O escritor pode ficar fora da acção em que está envolvido. Como o comediante que nunca se anula de todo no seu papel por ser ao mesmo tempo actor e espectador de si próprio.
Actores? Bom, o romancista, se for honesto, não pode negar uma afinidade com os actores. O carácter deles é, como o seu, uma harmonia implausível. Eles são todas as pessoas que podem representar. O romancista é todas as pessoas que pode criar.


As grandes verdades são demasiado importantes para serem novas. E as boas ideias não crescem nas moitas. Poucas pessoas numa geração podem descobrir novas.
Maugham fala dos ingleses – os ingleses, sejam eles  quem forem, não perdem pitada para falar de si mesmos: o que quer que eles possam ter sido na era isabelina não faz deles uma raça amorosa. O amor dos ingleses é sentimental, mais do que apaixonado. E são suficientemente sexuais para os fins da reprodução da espécie, mas não podem dominar aquele sentimento instintivo de que o acto sexual é repugnante. São mais atreitos a entender o amor como afecto ou benevolência do que como paixão.
Drama é ficção, pensa ele na sua vertente de dramaturgo, não lida com a verdade mas com o efeito. A verdade para o dramaturgo – e eu arriscaria dizer que também para o romancista – não pode passar de verosimilhança.
Outro aforismo  directamente apanhado de Somerset Maugham: os adultos revelam-se consciente ou inconscientemente aos muito jovens como nunca o fazem aos outros adultos. A criança tem consciência do seu ambiente, da casa em que vive, das ruas, da cidade, com uma objectividade que nunca mais torna a conseguir depois que uma multidão de passadas impressões embotou a sua sensibilidade.
Um escritor, terminado um livro, pode publicá-lo, em parte para ganhar a vida, claro, mas também porque não sabe o que é o seu livro antes que ele seja impresso. Só descobrirá os erros pela opinião dos amigos e da crítica.
Grande verdade esta.


Para Maugham, que enriqueceu pelos seus livros, o luxo com que o artista se gosta de rodear é apenas uma diversão. Casa, automóveis, jardins, quadros: brinquedos para lhe distraír a fantasia; sinais do seu poder. Sem contudo poderem penetrar a sua solidão essencial.
Quanto a mim, posso dizer que adquiri as boas coisas que o dinheiro pode comprar, mas poderia sem pena desfazer-me de tudo. Vivemos tempos incertos. Tudo o que temos ainda nos pode ser tomado. Alimentos simples, quarto próprio, os livros da biblioteca pública, pena e papel. Se tivesse apenas isso não lamentaria nada.


Pensa ele que muitos escritores precisam absolutamente do aguilhão da necessidade económica para escrever. Mas não será por isso que se possa dizer que escrevem por dinheiro. Haverá poucas ocupações em que, com tanta habilidade e aplicação, não possam ganhar mais dinheiro do que escrevendo. 
Quando, pela pena, o escritor não pode ganhar dinheiro que chegue deverá ter outro trabalho, sedentário de preferência. Um lugar numa repartição pública. Mas Maugham desvia o tema para a fulcral questão da língua em que o escritor se exprime como primeira condição para ganhar ou não ganhar a vida, e bem, pelo exclusivo trabalho da sua pena. A sorte dele foi escrever em inglês.


O afortunado escritor de língua inglesa poderá viver razoavelmente da pena. Embora Maugham afirme que o cultivo das artes é um pouco desprezado nos países de língua inglesa – mal agradecido, ele sabia lá do que estava a falar, digo eu, devia ter conhecido outros países. Mas enfim, nota ele que para os ingleses escrever ou pintar não seria bem um trabalho de homem. Era preciso força de vontade para, em Inglaterra, exercer uma profissão que expunha um homem a um certo grau de degradação moral. Ao contrário, diz ele, da França ou Alemanha, onde escrever é ocupação deveras honrosa. Muitos escritores resolveram-se pelo jornalismo para acorrer ao problema da subsistência. Achava perigoso.
Há no jornalismo uma impersonalidade que afecta o escritor. Os que escrevem para jornais parece que perdem a faculdade de ver as coisas por si mesmos. Vêem-nas de um ponto de vista geral, nunca com a idiossincrasia que pode dar só uma pintura pessoal dos factos, mas que é colorida pela personalidade do observador
Ouvi contar a alguém – agora falo eu, e falo das coisas daqui – que hoje em dia as “tias” da linha, quando se encontram, já não perguntam uma à outra “o que está a menina a ler?”. Agora perguntam-se “o que está a menina a escrever?”.
É verdade. De repente, não há cão nem gato que não escreva e que não tenha conhecimentos editoriais que lhe permitam publicar qualquer insignificante patacoada que escrevam. Maugham diz a isso: a técnica de escrever não é menos difícil do que a das outras artes, e, mesmo assim, só porque é capaz de ler e escrever uma carta, há quem se julgue capaz de escrever um livro. Escrever parece ser a distracção favorita da raça humana. Há quem corra para a pena como quem corre para a garrafa.


O êxito. Maugham não é da opinião de que o êxito deprave as pessoas, que as torne egoístas e vaidosas e complacentes consigo mesmas. É discutível isto, claro, há para todos os géneros. Mas neste ponto há uma coisa que ele diz e em que lhe dou inteira razão: mais do que o êxito é o fracasso que torna as pessoas amargas e cruéis.
Apesar da sua presunção e vaidade, o autor nunca está livre de dúvidas quando compara a sua obra acabada com o que pretendia que ela fosse.


O artista produz para libertação da sua alma. É da sua natureza criar como é da natureza da água correr vertente abaixo.


A criação artística é uma actividade específica que se satisfaz com o seu próprio exercício.


Sempre lúcido e desassombrado, Maugham refere amargamente o que os editores diziam quanto à vida de um romance. Não ia além dos noventa dias.


E depois conformamo-nos com facto de um livro  em que gastámos, mais do que o nosso ser inteiro, vários meses de ansioso trabalho, possa ser lido em três ou quatro horas e depois esquecido…
Pois é. Tanta conversa sobre escritores e tanta análise inteligente e tanta genialidade de observação e profundidades da alma… para que o resultado do trabalho desses seres seja esquecido e arrumado, ou deitado fora como um pacote imprestável de um produto de cozinha que se consumiu e no qual não se pensa mais.
Termino com uma última amarga e cínica asserção de Somerset Maugham na primeira pessoa: não tenho ilusões acerca da minha posição literária. Só dois críticos importantes do meu próprio país se deram ao trabalho de me tomar a sério, e quando os jovens esclarecidos escrevem sobre ficção contemporânea também não se dão ao trabalho de me tomar a sério. Não me sinto com isso.

1 comentário:

  1. Como sempre, uma muito interessante apresentação de um autor tão rico e complexo e provavelmente desconhecido dos mais novos...Talvez alguém, dessas faixas etárias leia estas linhas e tenha curiosidade. Quem sabe?
    Obrigada, Joel.

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