AUTOBIOGRAFIA DE UM CÍNICO
Pelos
meus vinte anos, os críticos diziam que eu era brutal – disse ele. - Aos trinta diziam que eu era irreverente, aos quarenta diziam que era
cínico, aos cinquenta diziam-me competente, e agora, aos sessenta dizem que sou
superficial. Fiz o que pude para me amoldar ao padrão desejado.
O
que é passatempo para os outros é para o artista cruel preocupação – continua ele a dizer. -
O artista cria os seus próprios valores. Os homens julgam-no cínico porque não
dá importância às virtudes nem se irrita com os vícios. Aquilo a que os homens
chamam virtudes e aquilo a que chamam vício não são coisas pelas quais ele se
interesse. Os homens comuns têm toda a razão em indignar-se com ele.
Apesar de não serem palavras
minhas, até nem vou muito fora delas. E mais estas:
O
egoísmo do artista é chocante. O mundo só existe para que ele exerça os seus
poderes de criação. Nunca sente as emoções comuns dos homens com seu ser
inteiro, visto que tanto é espectador como actor. Isso faz com que pareça não
ter coração. As mulheres põem-se em guarda contra ele. São atraídas por ele,
mas sentem que não podem dominá-lo completamente como queriam.
E esta pergunta que no tempo menos
fútil dos escritores e dos artistas fazia imenso sentido e ocupava os espíritos
de muita gente: Que há com o escritor que
ele não é um homem… é muitos? E só porque é todos pode criar tantos e a medida
da sua grandeza está no número de eus
que ele comporta.
William Somerset Maugham. Inglês.
Dramaturgo, novelista e contista de ressonância mundial e de imenso sucesso no
seu tempo – será que ainda hoje? – devido às suas intrigas magistralmente
urdidas e à pintura tanto de paragens exóticas como de uma certa extracção da sociedade
inglesa do virar do século XIX.
Pode nunca ter sido muito
apreciado pelos críticos ou pelos teóricos da literatura, mas acham que ele se
importou assim tanto com isso? Não creio. (E daí talvez.) Era apreciado pelo
público. Óptima consolação. Vendia. Era rico. Os críticos, pff…
É
mau viver-se com um artista. Ele pode ser sincero na sua emoção criadora, mas
dentro dele há outro que é capaz de rir do exercício da emoção. O artista não
merece confiança.
Dizia-se, provavelmente com razão,
que Somerset Maugham não tinha o que se chamava propriamente de estilo. Não era
de facto uma voz narrativa demasiado sonora. E também eu acho que não. Porquê?
Porque as suas personagens eram sempre mais interessantes e mais fortes do que
a voz que lhes narrava os feitos. Maugham como que se escondia, como que desaparecia
por detrás das suas personagens, anulava-se como autor e deus ex-machina, dava a ideia de serem as personagens a escrever as
suas histórias enquanto as iam vivendo. E se se pode falar do estilo de
Somerset Maugham, convém dizer-se que era de uma concisão árida, seca, amarga.
Como ele próprio.
Não
tenho uma natural fé nos outros. Sinto-me sempre mais inclinado a esperar dos
outros o mal do que o bem.
O
sentido de humor é o que nos leva ao divertimento com as discrepâncias da
natureza humana; leva-nos a desconfiar das grandes atitudes e a procurar os
motivos indignos que essas grandes atitudes ocultam. A beleza, a verdade e a
bondade não oferecem grande alimento ao nosso sentido do ridículo.
Maugham era um mestre da short story. Como outros grandes
contistas, não tão apreciado no romance longo como no conto, o que não quer
dizer que não os tenha escrito, e bons, ou pelo menos célebres, o
autobiográfico A Servidão Humana, e
um outro, conhecidíssimo, O Fio da
Navalha. Há anos caiu-me nas mãos o seu ensaio autobiográfico Exame de Consciência e aqui há pouco
tempo tive ocasião de o reler e de lhe apreciar a moral.
Somerset Maugham, na sua longa
vida – passou dos 90, tanto quanto me lembro –, frequentou políticos. Não os
achou brilhantes. Achou-os intrigantes. Pensou que não era necessário um certo
grau de inteligência para governar os povos. Maugham intrigou-se com a
mediocridade intelectual e espiritual dos políticos – e melhor para ele não os
ter conhecido actuais… e portugueses.
Sempre houve gente ansiosa por
conhecer de perto as celebridades. Não tem outro intuito senão o de contar aos
amigos que se conheceu de perto A ou B. Mas as celebridades não se mostram.
Adoptam uma máscara. É o que mostram ao público e aos curiosos, ocultando a sua
verdadeira realidade.
Como seria de esperar de um
ficcionista, Maugham interessou-se sempre pelo género humano. Mas nunca por
simpatia para com o género humano. Apenas por amor da sua obra. Claro! O Homem
não era um fim em si mesmo, era material que lhe poderia servir ou não. E
sempre preferiu conhecer os homens obscuros em detrimento dos mais conhecidos. Os
obscuros, como nunca estiveram expostos, não viam necessidade de se ocultar.
Revelavam algumas das suas originalidades porque nunca lhes passaria pela
cabeça que pudessem ser originais. Maugham preferia passar um mês numa ilha
deserta com um veterinário do que com um 1º ministro.
Cá está ele em discurso directo: um longo hábito tornou mais cómodo falar de
mim por intermédio de personagens da minha invenção. Ninguém pode dizer toda a
verdade a respeito de si, e quando sei uma coisa não tenho a mais pequena
necessidade de a partilhar com os outros.
E falou abundantemente da pecha
que os críticos lhe apontavam. O estilo. O
grande estilo, diz, impressiona mais
do que o singelo. Muita gente pensou que um estilo que não chamasse as
atenções não era estilo.
Uso
a palavra “artista” sem atribuir ao que ele produz algum valor especial. Não
encontro palavra melhor. Criador? - Maugham acha “criador” uma
designação pretenciosa. Artífice também não lhe chega, porque um carpinteiro é
um artífice, e mesmo que em qualquer sentido possa ser um artista não dispõe da
liberdade de acção que, como ele diz, o
mais incompetente dos escribas possui.
O artista pode fazer o que quiser
da sua vida. O médico, o jurista, por exemplo, escolhido o caminho, adeus
liberdade, as regras da profissão sujeitam-no e impõem-lhe padrões de conduta.
Só artista e o criminoso podem
fazer o que quiserem da sua vida.
E sempre a questão social, a
classe, a casta. Maugham, não obstante tudo, é um inglês. E conta-nos que
Goethe, em jovem, não podia admitir ser filho de um advogado da classe média.
Teria por força de ter sangue azul, de descender de algum aristocrata, algum
príncipe passara pela cidade e conhecera e amara sua mãe e era ele o fruto de
um rápido romance de amor. Ao que nos pode levar a presunção.
Maugham comenta: quantos jovens românticos e imaginativos não terão brincado com a ideia
de não ser filhos do seu medíocre e respeitável pai?
O grande Goethe? Bem, bem, não
seria por escrever grandes obras que um
homem deixaria de ser um homem.
É
bom não esperarmos muito dos outros. Se assim fizermos, ficaremos agradecidos
se nos tratarem bem e imperturbáveis se nos tratarem mal.
Só
pode ser a falta de imaginação o que impede as pessoas de ver as coisas de um
ponto de vista que não seja o seu.
Somerset Maugham foi médico antes
de ser escritor. Exerceu medicina muito jóvem em Londres, em hospitais de
pobres e em ambulatório pelo bairro então miserável de Lambeth. Foram
riquíssimas as experiências que colheu na sua clínica e que aqui, naturalmente,
não posso referir por mais extenso – leiam o livro. Mas há uma reflexão que
acho de uma verdade e de um cinismo tocantes perante o desespero ou a ilusão de
um doente condenado. Vi o desafio que faz
com que um homem acolha um diagnóstico de morte com um gracejo irónico por ser
demasiado orgulhoso para deixar ver o terror da sua alma.
O
medo destrói qualquer defesa – Maugham em palavras literais – e até a vaidade se sente enfraquecida pelo medo.
Somerset Maugham, não sei bem porquê,
o nome, a obra, o tempo dele, sugerem-me sonoridades pianísticas. Deve ter a
ver com um conto que li dele na minha tenríssima juventude e me deu muito que
pensar, e que tratava o tema das vocações artísticas, sendo a personagem
central um jovem pianista.
Aprendi
que os homens eram movidos por um selvagem egoísmo, e que o amor era uma cilada que a natureza nos montava somente para
prover à propagação da espécie.
Aquilo a que chamava a histeria do
mundo repugnava a Maugham. Detestava ser tocado. Ficava horrorizado se algum
amigo enfiava o braço dele no seu. Amara bastante, pelo que diz, mas não tivera
aa experiência do beijo do amor correspondido. E por acaso até sabia que isso
era das melhores coisas que a vida podia oferecer.
Quando
alguém me amava sentia-me confundido. Nunca soube o que fazer com essas
situações. E só para não ferir sentimentos alheios representei muitas vezes uma
paixão que não sentia.
O
mundo dos meus vinte anos era um mundo de meia idade, e a juventude era algo
que teria de ser atravessado rapidamente para se poder atingir a idade madura.
Confessava-se incapaz de uma
completa rendição. E como não sentira jamais algumas das fundamentais emoções
do homem comum achava improvável que pela obra dele passasse aquele toque
sereno e animal que só os maiores escritores podem oferecer.
Considerava-se não um escritor
natural, mas um escritor feito, construído para um objectivo. Chama como
exemplo os cantores, os naturais e os que aprendem bem uma técnica. Analisa o
passado e descobre que trabalhara subconscientemente com vista a um fim. E o
fim era desenvolver a personalidade e corrigir as deficiências do seu ser
natural.
Estava
capaz de afirmar que não posso passar uma hora na companhia de uma pessoa que
não consiga material para uma história a seu respeito.
O
devaneio é o campo de trabalho da imaginação criadora. É um privilégio do
artista. E para o artista, tal devaneio não é, como para os outros, um caminho
de fuga à realidade, é o caminho pelo qual consegue atingi-la. E é o que lhe dá
a certeza da sua própria liberdade.
Maugham estabelece que o valor da
cultura – muito importante - é o efeito que possa provocar sobre o carácter.
Tem uma utilidade para a vida. O alvo não é a beleza. É a bondade.
Não
leio um livro por amor do livro, mas por mim mesmo. Não é meu objectivo
julgá-lo mas absorvê-lo.
As pessoas vivas, reais, como
campo de trabalho do romancista. Somerset Maugham, com experiência longa e
própria no ramo, alarga-se sobre a matéria. Nunca um escritor pode saber o suficiente
sobre as suas personagens. As pessoas são difíceis de conhecer. Custa muito
tempo levá-las a contar aquele pormenor especial a seu respeito que possa ser
útil ao ficcionista. E, pior, acrescenta Maugham, não podemos olhá-las e pô-las de lado como fazemos com os livros. Temos
de ler todo o volume, a maior parte das vezes para ficarmos a saber que não
tinha muito para nos revelar.
O escritor, na solidão do seu
espírito, constrói um mundo que é diferente do dos outros homens. O que faz
dele escritor é o que o separa dos outros homens. E temos o paradoxo: seja o
objectivo do escritor descrever verdadeiramente os outros, é o seu próprio dom
que o impede de os conhecer como realmente são.
An? Como? Não sei se me expliquei
bem. Ele que fale: muito bem…como se ele,
escritor, quisesse ver urgentemente uma coisa e o acto simples de olhar essa
coisa lançasse na frente dele um véu que a encobrisse.
O escritor pode ficar fora da
acção em que está envolvido. Como o comediante que nunca se anula de todo no
seu papel por ser ao mesmo tempo actor e espectador de si próprio.
Actores? Bom, o romancista, se for
honesto, não pode negar uma afinidade com os actores. O carácter deles é, como
o seu, uma harmonia implausível. Eles são todas as pessoas que podem
representar. O romancista é todas as pessoas que pode criar.
As
grandes verdades são demasiado importantes para serem novas. E as boas ideias
não crescem nas moitas. Poucas pessoas numa geração podem descobrir novas.
Maugham fala dos ingleses – os
ingleses, sejam eles quem forem, não
perdem pitada para falar de si mesmos: o que quer que eles possam ter sido na
era isabelina não faz deles uma raça amorosa. O amor dos ingleses é
sentimental, mais do que apaixonado. E
são suficientemente sexuais para os fins da reprodução da espécie, mas não
podem dominar aquele sentimento instintivo de que o acto sexual é repugnante. São
mais atreitos a entender o amor como afecto ou benevolência do que como paixão.
Drama é ficção, pensa ele na sua
vertente de dramaturgo, não lida com a verdade mas com o efeito. A verdade para
o dramaturgo – e eu arriscaria dizer que também para o romancista – não pode
passar de verosimilhança.
Outro aforismo directamente apanhado de Somerset Maugham: os adultos revelam-se consciente ou
inconscientemente aos muito jovens como nunca o fazem aos outros adultos. A
criança tem consciência do seu ambiente, da casa em que vive, das ruas, da
cidade, com uma objectividade que nunca mais torna a conseguir depois que uma
multidão de passadas impressões embotou a sua sensibilidade.
Um
escritor, terminado um livro, pode publicá-lo, em parte para ganhar a vida,
claro, mas também porque não sabe o que é o seu livro antes que ele seja
impresso. Só descobrirá os erros pela opinião dos amigos e da crítica.
Grande verdade esta.
Para Maugham, que enriqueceu pelos
seus livros, o luxo com que o artista se gosta de rodear é apenas uma diversão.
Casa, automóveis, jardins, quadros: brinquedos para lhe distraír a fantasia;
sinais do seu poder. Sem contudo poderem penetrar a sua solidão essencial.
Quanto
a mim, posso dizer que adquiri as boas coisas que o dinheiro pode comprar, mas
poderia sem pena desfazer-me de tudo. Vivemos tempos incertos. Tudo o que temos
ainda nos pode ser tomado. Alimentos simples, quarto próprio, os livros da
biblioteca pública, pena e papel. Se tivesse apenas isso não lamentaria nada.
Pensa ele que muitos escritores
precisam absolutamente do aguilhão da necessidade económica para escrever. Mas
não será por isso que se possa dizer que escrevem por dinheiro. Haverá poucas ocupações
em que, com tanta habilidade e aplicação, não possam ganhar mais dinheiro do
que escrevendo.
Quando, pela pena, o escritor não
pode ganhar dinheiro que chegue deverá ter outro trabalho, sedentário de
preferência. Um lugar numa repartição pública. Mas Maugham desvia o tema para a
fulcral questão da língua em que o escritor se exprime como primeira condição
para ganhar ou não ganhar a vida, e bem, pelo exclusivo trabalho da sua pena. A
sorte dele foi escrever em inglês.
O afortunado escritor de língua
inglesa poderá viver razoavelmente da pena. Embora Maugham afirme que o cultivo
das artes é um pouco desprezado nos países de língua inglesa – mal agradecido,
ele sabia lá do que estava a falar, digo eu, devia ter conhecido outros países.
Mas enfim, nota ele que para os ingleses escrever ou pintar não seria bem um
trabalho de homem. Era preciso força de vontade para, em Inglaterra, exercer
uma profissão que expunha um homem a um certo grau de degradação moral. Ao
contrário, diz ele, da França ou Alemanha, onde escrever é ocupação deveras
honrosa. Muitos escritores resolveram-se pelo jornalismo para acorrer ao problema
da subsistência. Achava perigoso.
Há
no jornalismo uma impersonalidade que afecta o escritor. Os que escrevem para
jornais parece que perdem a faculdade de ver as coisas por si mesmos. Vêem-nas
de um ponto de vista geral, nunca com a idiossincrasia que pode dar só uma
pintura pessoal dos factos, mas que é colorida pela personalidade do observador
Ouvi contar a alguém – agora falo
eu, e falo das coisas daqui – que hoje em dia as “tias” da linha, quando se
encontram, já não perguntam uma à outra “o que está a menina a ler?”. Agora
perguntam-se “o que está a menina a escrever?”.
É verdade. De repente, não há cão nem gato que não escreva e que
não tenha conhecimentos editoriais que lhe permitam publicar qualquer
insignificante patacoada que escrevam. Maugham diz a isso: a técnica de escrever não é menos difícil do que a das outras artes, e,
mesmo assim, só porque é capaz de ler e escrever uma carta, há quem se julgue
capaz de escrever um livro. Escrever parece ser a distracção favorita da raça
humana. Há quem corra para a pena como quem corre para a garrafa.
O êxito. Maugham não é da opinião
de que o êxito deprave as pessoas, que as torne egoístas e vaidosas e
complacentes consigo mesmas. É discutível isto, claro, há para todos os
géneros. Mas neste ponto há uma coisa que ele diz e em que lhe dou inteira
razão: mais do que o êxito é o fracasso que torna as pessoas amargas e cruéis.
Apesar
da sua presunção e vaidade, o autor nunca está livre de dúvidas quando compara
a sua obra acabada com o que pretendia que ela fosse.
O
artista produz para libertação da sua alma. É da sua natureza criar como é da
natureza da água correr vertente abaixo.
A
criação artística é uma actividade específica que se satisfaz com o seu próprio
exercício.
Sempre lúcido e desassombrado,
Maugham refere amargamente o que os editores diziam quanto à vida de um
romance. Não ia além dos noventa dias.
E
depois conformamo-nos com facto de um livro
em que gastámos, mais do que o nosso ser inteiro, vários meses de
ansioso trabalho, possa ser lido em três ou quatro horas e depois esquecido…
Pois é. Tanta conversa sobre
escritores e tanta análise inteligente e tanta genialidade de observação e
profundidades da alma… para que o resultado do trabalho desses seres seja
esquecido e arrumado, ou deitado fora como um pacote imprestável de um produto
de cozinha que se consumiu e no qual não se pensa mais.
Termino com uma última amarga e
cínica asserção de Somerset Maugham na primeira pessoa: não tenho ilusões acerca da minha posição literária. Só dois críticos
importantes do meu próprio país se deram ao trabalho de me tomar a sério, e
quando os jovens esclarecidos escrevem sobre ficção contemporânea também não se
dão ao trabalho de me tomar a sério. Não me sinto com isso.
Como sempre, uma muito interessante apresentação de um autor tão rico e complexo e provavelmente desconhecido dos mais novos...Talvez alguém, dessas faixas etárias leia estas linhas e tenha curiosidade. Quem sabe?
ResponderEliminarObrigada, Joel.