domingo, 28 de setembro de 2014

                           O REI ESTÁ A MORRER


        Não, não se trata da peça do Ionesco… Le Roi se meurt… não, só se trata do testemunho a que achei piada de um psicanalista inglês, Ronald Fairbairn, ao tratar três dos seus pacientes nas vésperas da morte do rei Jorge V de Inglaterra, Janeiro de 1936, e as perturbações psíquicas que a iminência da morte do soberano provocou nesses três pacientes.

                                                                              

        Um jovem de 18 anos. É filho único até lhe nascer um irmão seis anos mais novo do que ele; e ainda, e de novo, filho único depois da morte desse irmão seis anos depois.
Não podia suportar a separação da mãe sem ser acometido de fortes ataques de ansiedade. Isso e mais uma situação hipocondriaca: sentia-se padecer de grave doença de coração. E com crises frequentes de palpitações violentas, e pânico ante a perspectiva de morrer.
A questão cardíaca radicava no medo de que a figura interiorizada da mãe o matasse; ou mais: que depois de o matar a mãe lhe devorasse o coração. Em sonhos vê um coração em cima de um prato e vê a mãe levantar uma colher.


Faltavam quatro meses para a morte do rei. Os boletins médicos começavam a ser emitidos do Palácio de Buckingham acentuando as complicações com o coração do rei. E foi então que os sintomas do paciente se exacerbaram depois de algum tempo de quietação. 
Mas não podia ligar o rádio. Se o fizesse ficava em pânico. Perturbações do sono, também. E a telefonar constantemente ao psicanalista em busca de alívio.
O rei Jorge V morre no dia 20 de Janeiro e o paciente só sabe da notícia na manhã seguinte. A noite que se segue é dormida por ele em sobressalto devido ao sonho em que ele próprio disparava uma pistola sobre um homem que identificava com o seu próprio pai; em que ele entrava numa sala e conversava com a mãe, e explicava à mãe o motivo por que atirara sobre o homem identificado como seu pai, e não era por detestá-lo, não, era por temer pela sua própria vida; e porque ao matar aquele homem matara-se a si mesmo e só lhe restava sujeitar-se a ser preso por seis anos; e é quando aparece uma jovem, e essa jovem passa a ser a pessoa que ele tinha matado, que de repente lhe parece ser o irmão – a morte real que lhe pesara na consciência por seis anos - mas que era a mãe, e a mãe representada como objecto de desejo sexual.  
Estaria perante a destruição de toda a sua família.
E na outra noite, outro sonho: a mãe, de pé no alto de uma escada, a adverti-lo para o perigo de comer geleia.

                                                                                 

Um homem de 31 anos, solteiro, segundo caso, com dois anos e meio de análise à data da morte do rei.
Fora ao psicanalista por causa de uma vontade permanente de urinar, uma vontade que lhe ocupava todo o tempo de vida consciente – quer dizer, desperto.
Mas era um tipo mais ou menos inválido, ou meio inválido, desde os cinco anos, qualquer coisa forte no tórax, um empiema (acumulação de pus na cavidade pleural – Wikipédia), e antes dos sintomas urinários já ele revelava ansiedades pelos sintomas do torax.
Depois de algum tempo de análise, consegue-se que a ansiedade urinária desapareça, mas a ansiedade toráxica recorre. E um pavor de poder ser envenenado pela comida, e daí em diante a aparecerem-lhe sintomatologias gástricas. Que se atenuaram para dar espaço à ansiedade quanto ao funcionamento da garganta, uma amigdalite, nada de mais. Faltava pouco para a morte do rei.
E o rei morre e ele deprime-se e reverte para a morte do pai, irritando-se pelo excesso noticioso sobre a morte de Jorge V. Preocupa-se mais com a saúde, subvalorizando todos os interesses normais que pudesse ter na vida. Havia uma congestão geral a ocupar-lhe o corpo da cintura para cima e alguma força nociva começava a nascer dentro dele.


Passados quinze dias sobre a morte de Jorge V, o paciente tem um sonho. Vê os charutos do rei. Roubam-lhe o carro. Telefona à polícia. Recebe uma novidade: o pai acaba de chegar de uma longa viagem. Muito bem. Convida o pai para um jantar lauto. É quando o ladrão aparece com o carro e ele, paciente, se atira a ele, ladrão, e lhe deita as mãos ao pescoço. E eis o anuncio: os charutos do rei estavam à venda por 147£ a unidade.
O psicanalista Fairbairn fala à colação do caso no tema da reparação do objecto, reparação do pai, reparação do pénis do pai na simbologia onírica dos charutos e no sentido de uma satisfação oral do paciente.
O tema da reparação sobrevém algumas noites mais tarde. O paciente sonha que está a nadar com o próprio rei Jorge V. Não numa piscina, não numa praia, tudo se passa num espaço inundado no exterior do Palácio de Buckingham. O rei mantinha a cabeça debaixo de água por muito tempo. O sonhador queria salvar o rei e não conseguia. O rei afogava-se. E outra cena, em que surgem uns quantos polícias a retirar uns baús de um coche oficial, o que lhe sugeria um funeral, mas ao mesmo tempo o julgamento num tribunal. O sonhador seguia depois numa carruagem. Ao lado do rei. E muito feliz porque o rei recuperara a vida e a saúde.

                                             

E cá está - interpretação psicanalítica – a restituição do pai do paciente correlacionada com uma inundação, água, água que corre, o regresso à ansiedade urinária permanente. 
No terceiro caso pode estar-se em presença de uma mulher. E pode estar porque havia que contar com o defeito genital da (ou do) paciente, que deixava dúvidas sobe o sexo real do indivíduo.
Mas admitamo-lo como mulher. Cinquenta anos. Professora, embora não em serviço por ter abandonado a carreira. Razão para o abandono? Esgotamentos nervosos todos os três meses, ansiedade, depressões, pensamentos suicidas.
Do ponto de vista técnico, o Dr. Fairbairn fala de uma fase inicial maníaca em que ela começa a utilizar o mecanismo da projecção, ainda que suprimindo sintomas paranoicos pelos sintomas maníaco depressivos e mais tendências sado-anais recalcadas – é muito técnico para as minhas posses…
Mas adiante.
Na noite de 20 de Janeiro (o rei Jorge V estava a morrer exactamente nessa noite), a paciente vai-se deitar, ouve o rádio, ouve o boletim clínico, o rei piorava. E a paciente tem um sonho, um sonho em que o seu próprio pai morre.
Sabe da morte do rei ao acordar na manhã seguinte. Passa o dia muito perturbada, zangada mesmo. Não vai à consulta marcada com o psicanalista. Desmarca e marca para o dia seguinte. Sentia-se responsável pela morte do rei Jorge V.


Nessa noite sonha em catadupa. Primeiro sonho, uma emoção desmesurada, todavia sem conteúdo particular, só terrores, infelicidade, desespero. Tacteava no escuro. Sentia-se enlouquecer. E ia ficando gelada a partir dos pés; dentro em pouco estaria toda ela feita um bloco de gelo e estaria definitivamente acabada. 

                                                                 
E agora vive numa casa onde tudo é perfeito; entra numa das salas e leva a mãe só para lhe mostrar aquela perfeição toda; subitamente, fica horrorizada, duas grandes ervas daninhas cresciam através de uma magnífica carpete em tons vermelhos; baixa-se, vai-se às ervas para as arrancar, mas não, não arranca coisa nenhuma, era muito difícil arrancar aquelas ervas...


 E de repente, estando em casa, sente-se num jardim público, sentada em cima de uma caixa que tem dentro um animal. aparece uma mulher com um cão; ouve-se um grito: “tire daqui esse cão!”, e há gente que corre atrás do cão, sem resultado, o cão foge, excitadíssimo, quase feroz; a paciente sonhadora, sempre sentada na caixa, ouve um rosnido próximo, era o cão, que procurava apanhar o animal que estava dentro da caixa e mordê-lo até o matar.

                                                                        

 A sonhadora teme pela própria segurança; ouve bater à porta de casa, corre para abrir, abre, dois polícias à chuva na noite escura, façam o favor de entrar, os polícias entram, ajudam-na a acender o candeeiro que está ao pé da porta e a luz do candeeiro sai vermelha, sinal de perigo, e é quando os dois polícias deixam de o ser e passam a ser três mulheres, e explicam-lhe a razão da visita, e ela a princípio não compreende o que dizem, mas sente que alguma coisa horrível acabou de acontecer a um homem a quem chamam Pequeno David, Little David… e é quando acorda.


Quando acorda pensa em quem poderá ser esse Little David e que relação poderá ter com ela.
Informa-se então que Little David era o petit nom familiar do rei acabado de entronizar sob o nome de Eduardo VIII. A coisa desgraçada acontecida a Little David fora a morte do pai, o rei Jorge V. E as figuras que a tinham visitado na noite escura, iluminada de vermelho pelo candeeiro junto da porta, eram os enviados do Super Ego, o que significava ser ela a responsável pela morte do rei.
Um parricídio. Mas como um parricídio se ela, quando recebe no sonho a notícia, nem sabe quem é Little David?

                                                                         

O analista interpreta. E interpreta o facto de ela se sentar na caixa contendo um animal que o cão pretende matar como a protecção que ela tenta fazer ao pai, um pai interiorizado pela sua líbido sado-oral, uma ameaça ao seu próprio Ego.
Uma interiorização do objecto decorrente da morte do rei.
Uma interiorização do objecto que é típica de uma crise depressiva, não guarda como finalidade a salvação, ou a protecção do objecto. Fico sabendo. (Pode ser que um dia, no futuro, me venha a ser útil saber isto.) Porque o dano já fora provocado quando a defesa da interiorização se desencadeou. O objectivo de uma interiorização destas é assimilar uma corrente de sadismo libertada pelo que o analista chama de “cheiro do sangue”.
Mas é assim mesmo. Parece que uma experiência que sugira a perda do real objecto amado depoleta o terror íntimo de perder também o mesmo objecto, porém na forma interiorizada.
Que engenhoso. Mas que querem, acho graça ao engenho das interpretações psicanalíticas. E é como dizia o outro, se non è vero è bene trovato…




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