domingo, 19 de outubro de 2014

                          O FILHO DE ESTALINE
   
                                                                            

         Só em 1980, através de um artigo publicado no Sunday Times, se ficou a saber em que circunstâncias morreu Iakov, o filho de Estaline. Prisioneiro de guerra durante a Segunda Guerra Mundial, encontrava-se detido num campo onde também havia oficiais ingleses. As latrinas eram comuns. O filho de Estaline deixava-as sempre sujas. Os ingleses não gostavam de ver as suas latrinas cheias de merda, mesmo que a merda fosse do filho daquele que era então o homem mais poderoso do universo. Ralharam com ele. O filho de Estaline ficou ofendido. Os oficiais ingleses voltaram a repreendê-lo e obrigaram-no a limpar as latrinas. Zangou-se, discutiu com eles e agrediu-os. Por fim, pediu para ser recebido pelo comandante do campo. Mas o alemão estava demasiado imbuído da sua importância para se deixar envolver numa discussão sobre merda. O filho de Estaline não pôde suportar tal humilhação. Lançando aos céus as pragas russas mais tremendas, correu em direcção ao arame farpado e electrificado que cercava o campo. Atirou-se contra os fios. Aí ficou suspenso o corpo que nunca mais havia de sujar as latrinas britânicas.


                                                             
                                 

         
       O filho de Estaline não teve uma vida fácil. O pai engendrou-o com uma mulher que conforme tudo indica, acabou por mandar fuzilar. O jovem Estaline era, portanto, ao mesmo tempo, filho de Deus (porque o seu pai era venerado como um deus) e maldito por ele. As pessoas temiam-no duplamente: podia prejudicá-los tanto pelo poder que ainda tinha (sempre era o filho de Estaline) como pela sua amizade (o pai podia mandar castigar os amigos em vez do filho).

                                                                         

         Maldição e privilégio, felicidade e infelicidade – nunca ninguém sentiu tanto na própria pele o ponto a que essas oposições são intermutáveis e como é estreita a margem entre os dois pólos da existência humana.
         Logo no princípio da guerra foi capturado pelos alemães e eis que outros prisioneiros, membros de uma nação pela qual sempre sentira uma antipatia visceral, porque lhe parecia incompreensivelmente fechada, o acusavam de ser porco. Ele, que carregava às costas o drama mais sublime que possa ser concebido (ser ao mesmo tempo filho de Deus e anjo caído em desgraça), tinha agora que suportar ser julgado, e não por coisas nobres (a respeito de Deus ou dos anjos), mas por causa da merda? O drama mais nobre e o incidente mais trivial estarão assim tão vertiginosamente próximos um do outro?


         Vertiginosamente próximos? Então a proximidade também pode causar vertigens?
         Claro que pode. Quando o pólo norte se aproximar do pólo sul quase a ponto de o tocar, o nosso planeta desaparecerá e o homem terá à sua volta um tal vazio que ficará aturdido e cederá à sedução da queda.
         Se a maldição e o privilégio são uma e a mesma coisa, se não há diferenças entre o nobre e o vil, se o filho de Deus pode ser julgado por causa da merda, a existência humana perde as suas dimensões e torna-se de uma leveza insustentável. Então, o filho de Estaline corre em direcção ao arame farpado para lançar contra ele o corpo, como se estivesse a lançá-lo para o prato de uma balança que miseravelmente subisse soerguido pela infinita leveza de um mundo sem dimensões.

                                                                                  

         O filho de Estaline deu a vida pela merda. Mas morrer pela merda não é uma morte absurda. Os alemães que sacrificaram a vida para aumentar o território do império para leste, os russos que morreram para que o poder do seu país se estendesse mais para ocidente, esses sim, morreram por um disparate e a sua morte não tem qualquer espécie de sentido nem de valor geral. Em contrapartida, a morte do filho de Estaline foi a única morte metafísica no meio da estupidez universal da guerra.

                                                        MILAN KUNDERA
                                              A Insustentável Leveza do Ser

                                                       (Trad. Joana Varela)



1 comentário:

  1. Arame farpado... electrificado? A sério?? Nos anos 40?!


    E agora a História aprende-se assim, em artiguinhos do "Sunday Times"? Ok.


    A História real desta criatura e da sua morte pode ter a ver, quanto a mim, muito menos com "merda" física e muito mais com o facto de os Alemães terem proposto a Estaline a troca deste enjeitado por um General alemão e o progentior do bicho ter recusado a oferta. O que, isso sim, me parece uma bela merda...


    Mas, para os jornais (também os ocidentais), qualquer coisa que não seja "vera", mas que seja "bene trovata" é sempre negócio. Ui, ui, e que negócio...

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