PORNOMÁFIA
Uma família
importante de mafiosos vai lançar-se numa nova iniciativa cinematográfica
rendosa: a pornografia. E será a família Colombo. Houve quem chamasse à
actividade cinematográfica no ramo da pornografia a “outra Hollywood”.
A Mafia sempre soube onde havia bom
dinheiro para extorquir e boas oportunidades para investir – e vigarizar.
Deviam ser os melhores consultores financeiros que uma firma normal e séria
pudesse ter, mesmo para operar honestamente no mercado – o que depende, claro está,
da ideia que se tenha sobre o que seja operar honestamente, ou moralmente, nos
mercados.
Mas em 1970, a Mafia de Nova York
percebeu que a indústria sem sombra de dúvida florescente no universo das
oportunidades mediáticas era a pornografia. E começou a Mafia a produzir o seu
material pornográfico: somente 5 minutos filmados nos peep shows
existentes nas lojas de sexo de Times Square. E havia um realizador
pornográfico a notabilizar-se, a quem chamavam já o Scorsese do porno, Gerald
Damiano, ex-cabeleireiro de Queen’s, Nova York.
Damiano levava mais longe em
significações a sua estética porno, ou seja, complexificava-a, fazendo-a
transcender da carnalidade para os campos sagrados, povoando os filmes de
iconografia católica. E um dia Damiano teve uma nova ideia para um dos filmes
da sua lavra.
Damiano fora apresentado a uma actriz
porno chamada Linda Lovelace, a qual, no seu trabalho, cultivava certa peculiaridade
no estilo de pornografia, dada a amplitude da sua cavidade bucal. E Damiano
pôs-se a escrever um guião que quadrava bem às características da Lovelace.
Era a história de uma mulher-aberração
da natureza incapaz de atingir satisfação sexual por meios normais. Ou seja, os
pontos mais fulgurantes do prazer dessa ordem por ela experimentado situavam-se
à entrada do esófago.
Damiano expõe a ideia a um financiador.
Damiano tinha a sua própria casa
produtora, a Gerald Damiano Film Productors, 2/3 do capital pertecentes a um
certo Louis Butcher Peraino, cujo pai era membro da família Colombo.
De Louis Peraino não se podia dizer com
propriedade que fosse um mafioso. Era um associado da organização, isso sim,
mas prezava a respeitabilidade e tinha o sonho de se tornar um produtor
cinematográfico reconhecido e respeitado no meio, o que era bizarro até para a opinião
mafiosa, que estranhava muito um filho dilecto de mafioso importante querer ser
cineasta. O gangster Anthony Peraino,
várias vezes acusado e nunca condenado, tinha um filho que não matara ninguém,
não roubara, não extorquira, nunca fizera mal nenhum. Um filho de mafioso com a
paixão do cinema. Um filho de mafioso que queria levar a vida a fazer filmes.
Isto, estando o avô e o pai implicados até às orelhas com alguns dos golpes
mais duros do crime organizado.
De qualquer das maneiras, era opinião de
alguns que desse ele as voltas que desse, por mais que andasse e fugisse,
Louis, o filho de Anthony, não poderia escapar à marca de família e a esse
destino.
Louis pede emprestados ao pai 20.000
dólares para fazer um filme. É o pai, Anthony, escoltado pelos seus homens de
má catadura, quem acompanha a estrela do filme, Linda Lovelace, a Miami, onde o
filme seria rodado em seis semanas. Pôe-se a questão do título.
Porque é que não lhe
chamamos A
Engolidora de Sabres? Não. Damiano, o realizador tem uma ideia melhor: Deep
Throat – Garganta Funda.
Peraino pai não atinava com a Loveace
para o papel, mas o manager da actriz (chamemos-lhes assim, manager
e actriz) a ver o cachet de 1.200 dólares a voar, obriga Linda Lovelace a
certas práticas sexuais quotidianas com o mafioso para não perder o papel.
Lovelace acede, ainda que considere o gangster
um tipo asqueroso, com uma grande cara e constantemente a gritar com alguém.
Linda Lovelace viria mais tarde a
declarar que actuou naquele filme sob pressão, incluso sob ameaça de uma arma
durante as sessões de rodagem. Quem viu o filme pôde apreciar numa ou noutra
cena nódoas negras no corpo da actriz. Eu, não é por me querer armar em rapaz
sériozinho, mas confesso que nunca vi o filme.
Mas comissões do Senado para investigar
isto e aquilo na democracia dos EUA nunca faltaram. Não sei é se são como as
comissões que investigam irregularidades na democracia de cá…
À comissão do Senado encarregada em 1986
de investigar os negócios da pornografia, Linda Lovelace virá a declarar:
- Quando
vocês vêem o filme Garganta Funda
não assistem a mais nada senão a um acto de violação. Acho criminoso que esse
filme ainda ande por aí nos circuitos de exibição.
Desmentindo-a, o manager negará sempre
que o filme Garganta Funda tenha sido financiado pela Mafia.
- Toda a gente
fala da Mafia, mas o que dizem não passa de parvoíces. Eu fui director de
produção de Garganta
Funda e posso assegurar que não é um
filme do Syndicate – disse o tal manager da Lovelace, que se
chamava Traynor.
A estreia de Garganta Funda teve
lugar em Nova York em Junho de 1972, no New World Theater da 49ª avenida.
Acabava por ser um filme que respondia às solicitações do mercado, um mercado
que reclamava mais e mais liberdade de expressão para os produtos mediáticos.
Em simultâneo com Garganta Funda
eram estreados dois filmes de grande sucesso. De um deles não tenho ideia, mas
o outro era Cabaret. E por sucesso que tenham tido estes dois filmes,
digamos, convencionais, os dois juntos nâo chegaram aos calcanhares de Garganta
Funda em termos de bilheteira.
E todo o Who’s Who do mundo do
cinema correu a ver Garganta Funda. Sammy Davis chegou a alugar uma casa
de espectáculos em Santa Monica, onde organizou projecções privadas para os
amigos da comunidade de Hollywood. Dias depois, Louis Peraino apresenta Linda
Lovelace a Sammy Davis e os dois começam um romance. Sendo porém que, bissexual
como era, Davis também servia ao manager da actriz, o tal Traynor.
Sinatra –tinha que entrar – organizou
também uma sessão privada de Garganta Funda na sua casa de Palm Springs
e especialmente dedicada a alguém que não há muito fora vice-presidente dos
EUA, Spiro Agnew.
Toda a melhor sociedade norte-americana,
o beautiful people, pode dizer-se que se precipitou a ver o filme. Era
um fenómeno daquilo a que o New Tork Times passaria a chamar de porno-chic. O
Variety arriscou a especulação sociológica, escrevendo que numa sessão de 5ª feira à tarde o público
maioritário eram mulheres elegantes não acompanhadas, eram casais já maduros, e
eram duas ou três matronas de cabelo grisalho.
Louis B. Mayer, outrora grande magnate
da Metro, estabelecera uma medida infalível para o sucesso artístico de um
filme.
O sucesso artístico de um filme
só podia ser medido pela quantidade de dinheiro que ele fazia afluir ao box
office. Segundo esse princípio, Hollywood teria de curvar-se perante o
êxito de Garganta Funda. Resulta claro que os estúdios de Hollywood
sempre haviam considerado o cinema essencialmente como um meio de ganhar
dinheiro. Tudo o mais era acessório, inclusivé o potencial artístico que o
filme pudesse conter.
Alguns acreditaram que depois de Garganta
Funda, Hollywood não hesitaria em incluír cenas claramente pornográficas
nos seus filmes mais convencionais. Constou mesmo que a Metro pensara contratar
esse Damiano, o realizador de Garganta Funda. E foi-se ao ponto de dizer
que o contratado Damiano estabeleceria com todo o rigor o número de cenas
pornográficas que um filme seu deveria incluir e a ordem por que elas
apareceriam. E também constou que foi Damiano que recusou esse contrato por não
gostar de trabalhar por encomenda. Outros dirão que ele não aceitou por medo de
abandonar aquele mundo marginal do porno em que se sentia tão bem.
E assim é que, dois anos após a estreia,
Garganta Funda ainda figurava no
11º lugar do box office.
Mas toda aquela gentinha envolvida no
negócio de Garganta Funda tinha os telefones sob escuta, à ordem do FBI.
E é assim que o FBI vem a saber pelo contabilista da família Peraino que na
caixa mafiosa entravam todos os dias 150.000 dólares, e que os Peraino não
sabiam o que fazer a tanto dinheiro.
Quem teve ocasião de entrar nos
escritórios da empresa dos mafiosos testemunhou a balbúrdia dos maços e maços
de notas espalhados por todo o lado – eles só trabalhavam in cash - e as largas somas a saírem, queres um Cadillac? Toma lá para um Cadillac… queres
comprar um vison para a tua mulher? Toma lá para o vison… queres montar um
negócio por tua conta? Quanto é que queres? Etc., etc.. Era só deitar a
mão a um dos maços de notas que estavam por ali e que ninguém se dava sequer ao
trabalho de contar.
O dinheiro que entrava era avaliado ao peso. Entravam os
maços de notas e eram pesados e pelo peso se lhes calculava o valor. Bastava.
As estimativas especializadas apontam
para um lucro total de Garganta Funda na ordem dos 600 milhões. 600
milhões para um investimento de 22.000
dólares. E desses 600 milhões, 127 milhões rendeu a exploração do filme na
América do Norte e 86 milhões no resto do mundo. Faltam 385 milhões, que foram
gerados pelo aluguer e venda do filme em cassetes vídeo (3 milhões de cópias
vendidas).
E se no filme a garganta de Linda
Lovelace era funda, mais funda ainda, no âmbito da Mafia, era a garganta da
família Colombo, que absorvia metade dos lucros.
Mas também houve gente para afirmar que
a realidade lucrativa de Garganta Funda ultrapassava de largo todos
estes números…
A comercialização do filme não teve um
distribuidor, um intermediário daqueles que se pudesse dizer regulares,
oficiais, e o controlo das bilheteiras era feito por pessoal a mando da família
Peraino, pessoal que em todas as sessões anotava uma por uma as cabeças dos
espectadores e logo calculava a percentagem que lhe cabia, e logo corria à
bilheteira com os seus sacos de couro a recolher o lucro de cada sessão. Foi
uma esperteza saloia dos mafiosos, visto que esses controladores também
vigarizavam sobre o número de espectadores nas contas que apresentavam ao
produtor e também roubavam muito dinheiro.
O tal realizador Damiano tinha 1/3 do
capital da sociedade que produziu Garganta Funda. Então, tocar-lhe-ia
evidentemente 1/3 dos lucros. Mas quando Damiano vai ter com os Peraino para
sacar a sua parte, é-lhe dito que receberá unicamente o cachet a que tem
direito como realizador, 15.000 dólares.
- Melhor ainda, amigo, do que as duas
pernas partidas se levantares cabelo.
E Damiano vendeu à família Peraino a sua
parte nos lucros do filme pela ridicularia de 25.000 dólares. Os jornais sabem
do caso e um repórter vai ter com Damiano.
- Então
porque é que você aceitou um negócio desses?
- Não me diga
que gostava de me ir visitar ao hospital estando eu com as duas pernas
partidas.
Mas, bem vistas as coisas, a atitude dos
mafiosos para com o seu realizador também não andava assim tão afastada, ao que
leio, dos procedimentos correntes dos magnates de Hollywood. Pagavam ao
realizador o seu cachet e estava feito. A menos que esse realizador
tivesse talento e estatuto para negociar com eles à cabeça uma participação no
box office.
A partir do fenómeno Garganta Funda as
famílias mafiosas ficaram de antenas no ar. Perceberam muito depressa que
melhor do que investir dinheiro no escuro da produção de um filme, que pode
render ou pode não render, era piratear os filmes pornográficos com mais
potencialidades comerciais. E a indústria do filme pornográfico abria-se à gula
das famílias da Mafia. Iriam ganhar milhões sem investir um chavo.
E rapidamente o dono de um cinema de Hartford (Connecticut) vai
apresentar uma queixa de um cinema concorrente que estava projectar uma cópia
pirata de certo filme pornográfico. E logo no dia seguinte é avisado de que ou
se calava ou uma bomba poderia dar-lhe cabo do estabelecimento.
A santísisma e absolutíssima liberdade
de mercado pode compreender situações tão democráticas e justas como estas. Ou
como a daqueles dois irmãos de S. Francisco que produziram um filme
pornográfico. Estando ele acabado, receberam a visita dos representantes da
família Gambino, que queriam ver o filme distribuído pela sua sociedade sediada
na Florida. As receitas seriam fifthy-fifthy. Foi-lhes explicado que o
filme já andava em circulação nas salas. E os Gambino retorquiram: ou os irmãos
franciscanos (de S. Francisco, Califórnia, claro) lhes passavam para a mão o
original do filme, ou dentro de uma semana o mercado ficaria saturado de cópias
piratas até ao ponto de já ninguém saber o que era original e genuíno e o que
era cópia pirata. Os franciscanos, pronto, não cederam e como a Mafia não
brinca em serviço, pronto, foi isso mesmo o que aconteceu. Cópias ilegais desse
filme – que se chamava Atrás da Porta Verde – foram projectadas numa
imensa quantidade de salas em toda a América e dessas projecções os irmãos de S.
Francisco não viram um tusto.
Em 1974, um projeccionista suspeito de
ter copiado um filme porno de grande sucesso, O Diabo em Miss Jones, foi
encontrado morto no Ohio, dentro do próprio carro.
Dizem que Garganta Funda foi
o filme mais falsificado e pirateado da História do Cinema. Inclusivé a Mafia
pirateava a sua própria pirataria. E até as campanhas de marketing dos filmes pirateados eram copiadas das
campanhas publicitárias pagas pelos produtores e distribuidores legais dos
filmes.
O sucesso de Garganta Funda, no
dizer da polícia de Los Angeles, levou muitas figuras de proa da Mafia de Nova
York a instalarem-se na California. A família Colombo já em 1975 tinha
quartel-general em Beverly Hills. Os Peraino, com base no muito dinheiro ganho
em Garganta Funda, montaram em Hollywood uma sociedade de produção de
filmes, digamos, normais, que ultrapassaria as próprias majors, a
Bryanston Film Distributors – produção e distribuição de filmes. Dez longas
metragens num primeiro ano de actividade era o alvo dos Peraino. Toda a gente sabia que a Bryanston era
governada por pessoal do crime organizado, mas Louis Peraino era tipo
considerado na comunidade do cinema, nem que um qualquer particular soubesse
que quando negociava com ele podia estar a negociar a própria vida em vez de um
filme.
Da proveniência dos dinheiros da
Bryanston quem é que queria saber? Ninguém. Nem os empregados. Mas se o
histórico da Bryanston, ligado como estava à pornografia, não era coisa que
encorajasse os produtores a associar aquele nome aos seus filmes, a saída seria
descobrir um novo filão de especialização: os filmes de violência, ou de
horror, ou, vá lá, de alguma ficção científica. Carne Para Frankenstein,
por exemplo; ou os filmes de Bruce Lee, por exemplo, direitos comprados por um
milhão de dolares, lucros de 30 milhões.
As autoridades sabiam de sobra que
Hollywood nunca perdera o sono a tentar
saber de onde vinha o dinheiro que a financiava. E tal não era exclusivo da
pornografia. Era assim naquela altura como sempre tinha sido: prática de todos
os estúdios para todos os géneros de filmes.
Os do FBI bem tentaram investigar sobre
a ligação de certos produtores ao crime organizado, mas nunca um único sector
da indústria colaborou com as autoridades neste ponto. Uma verdadeira sociedade
secreta. Qualquer investigação sobre o cinema era encarada pela indústria como
uma ameaça ao regime há muito – desde sempre – instalado de ganhar muito
dinheiro com um mínimo de investimento – como em qualquer negócio, vamos lá.
É num filme de horror da Bryanston, cujo
título aportuguesado andaria perto de A Chuva do Diabo, que John
Travolta faz a sua primeira aparição nos écrans. Uma outra película, Coonskin,
financiada pela Paramount e produzida por Al Ruddy, ficou com a fama de ter
sido oferecida pela Paramount como prova de reconhecimento à Mafia pela sua
colaboração em O Padrinho.
No princípio do
ano de 1976, a Bryanston estava no topo da lista das empresas suspeitas de
serem controladas pela Mafia. Na primavera desse mesmo ano, Louis Peraino,
o pai, Anthony, e o irmão, Joseph, são
presos por transporte de material pornográfico. Anthony saiu sob caução e fugiu
para a Europa. Louis e Joseph Peraino foram julgados e condenados. Um ano de
prisão e multa.
Mas a sociedade
Bryanston tão vertiginosamente como apareceu, desapareceu de Beverly Hills.
Devia milhões a fornecedores e 750.000 dólares ao fisco. Não falando já dos
actores e realizadores que nunca chegaram a ver a cor do dinheiro que julgaram
ter ganho a trabalhar para a Bryanston.
Os Peraino
saem da enxovia, tencionam voltar ao
cinema, mas são de novo presos em 1980 por distribuição ilegal de filmes e
posse de material pirateado, coisas como A Guerra das Estrelas, Kramer
Contra Kramer, O Padrinho 1 e 2. E
então, o mafioso que nunca fizera mal a ninguém apanha uma talhada de seis anos
e vem a morrer de cancro em 1999.
Mas a voga da
pornografia vê entrar os anos 80 já muito falha do impacto inicial. Parecia ter
deixado de interessar às faixas etárias e sociológicas que a havia consumido.
As feministas tinham feito uma campanha feroz contra a pornografia acusando-a
de ultraje à condição feminina – e eu até ousaria perguntar, porque não também
a condição masculina?
As declarações de
Linda Lovelace quanto às condições em que participara em Garganta Funda,
como atrás referi, também contaram para o descrédito do porno. E outra
circunstância de peso: a vulgarização da vídeo-cassette pornográfica, a roubar
margem de lucro: da centena de dolares que custava a cassette pornográfica,
passou aos 4 dólares, pouco menos. E a Mafia abandonou o negócio.
Por fim, enquanto
machadada indirecta no ramo do porno, foi o aparecimento e a vulgarização da
SIDA que aterrorizou seriamente a indústria.
O filme que viria
seguidamente a competir com Garganta Funda no galarim das vendas e dos
lucros tinha quase tudo a ver com a entidade que mais lucrara com a
pornografia, a Mafia. E esse filme foi chamado O Padrinho. Já falámos dele que chegasse.
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