A CULPA DE DOSTOIEVSKI
Textos Essenciais Sobre Literatura, Arte e
Psicanálise: é o nome do livrinho onde bebi as informações que seguem. Autor:
Siegmund Freud. Edição Europa-América
nos idos de 70, e um texto que aliás volto a ler num posfácio a Os Irmãos
Karamazov da editora Relógio D’Água de 2012.
Foi o tema
do parricídio que interessou especialmente o Dr. Freud na obra de Dostoievski.
E com é costume há tendências e pulsões humanas que lidas através da lente de
Freud não só intrigam como inquietam os espíritos menos cautos. O parricídio
está nessa linha - e como não havia de estar…
Porque
Dostoievski, segundo Freud, era umas poucas de complicadas coisas: escritor,
neurótico, moralista, pecador.
Da parte do
escritor estamos conversados. Freud senta-o numa carteira não muito atrás de
Shakespeare e toma Os Irmãos Karamazov
como o mais importante romance que alguma vez se escreveu.
Mas há
também o moralista. Só respira as aragens mais rarefeitas da moralidade aquele
que mais abaixo desceu na escada da imoralidade humana. É uma ideia, está bem.
Outra é que o sujeito moral reage às tentações que o assaltam e não se deixa
vencer por elas.
Não pensemos no que peca e se arrepende, peca e se arrepende,
continuadamente, e se oferece à censura do mundo pela comodidade que reveste o
seu conceito de moral. Mas é a renúncia o motivo condutor de uma moral pessoal.
Diz ele, Freud. Os mais bárbaros dos
antigos povos escaqueiravam o mundo, assassinavam a torto e direito e
consolavam-se na penitência. Diz ele, Freud. E entre os exemplos avulta um, por
sinal russo. Ivan, o Terrível. Cada penitência, cada contrição, autorizava
automaticamente, moralmente, um novo assassinato.
Em
Dostoievski havia a forte pulsão destrutiva. Podia ter sido um célebre
criminoso se não tivesse toda a vida orientado essa pulsão contra si mesmo,
expressa em masoquismos e sentimentos de culpa. Ainda assim, a tendência do
grande homem para a irritabilidade e o gosto que o grande homem tinha em
atormentar quem lhe fosse próximo, podem indicar a componente sádica da
personalidade. Mas se se mostra sádico para os outros, também o é para si
mesmo, o que Freud faz desembocar na condição de masoquista.
Neurose?
Sim, não, talvez. Há masoquistas encartados que não são neuróticos. Não sabia.
Eu. Quer dizer, não sabia nem deixava de saber. Acontece que Dostoievski era as
duas coisas, masoquista e neurótico. Fico a saber. E mais que a neurose
apresenta-se tão forte quanto maior for o combate do ego contra a complexidade
que o oprime. Diz ele, Freud.
Dostoievski
era um epiléptico. Dostoievski eram ataques graves, perdas de consciência,
espasmos e profundo mal-estar e abatimento logo a seguir. Uma neurose
classificável como histero-epilepsia, ou histeria grave. Diz ele, Freud.
Mas os
acessos de um status epilepticus,
provocados por causas de tipo físico, podem nascer de uma causalidade psíquica.
Diz ele, sim. O epiléptico pode aparentar apatia, pode sofrer de um deficiente
desenvolvimento que poderá beirar a idiotia, a deficiência cerebral, e sem que
isso se possa avaliar como sendo o essencial do quadro patológico. E daqui o
caso do acesso epiléptico poder configurar um sintoma de histeria, e pela
histeria adaptado e modificado, havendo portanto a distinguir entre uma
epilepsia orgânica e uma epilepsia afectiva.
Nessa conformidade, o epiléptico
pode padecer de doença cerebral, ou ser “simplesmente” um neurótico. Se doença
cerebral, a vida psíquica do epiléptico sofre uma perturbação que lhe é
exterior; se neurótico, o epiléptico exprime somente os acidentes dessa sua
vida psíquica. Talvez Dostoievski fosse um destes.
Freud
elabora suficientemente a este respeito. Passemos isso por alto e detenhamo-nos
no que mais directamente me interessa para agora. O parricídio. O parricídio
como o mais principal crime da Humanidade. E também o mais antigo.
O
parricídio, ensina ele, Freud, é a nascente essencial de todo o sentimento de
culpa – talvez não a única, concede ele, Freud, porque as investigações do
tempo dele não tinham chegado a conclusões exactas sobre a causa psíquica da
culpa e da subsequente necessidade de expiação.
E cá estamos
no inevitável Édipo. Estava-se mesmo a ver. A relação do jovem com o pai, a
ambivalência, o ódio, a vontade de eliminar o rival que vê no pai. E o quantum de ternura que da mesma penada
pode sentir por ele. E a identificação. O rapaz quer estar no lugar do pai,
admira-o, quer ser como ele e quer afastá-lo do seu caminho. Só a angústia da
punição, que virá pela castração, e a vontade de preservar a masculinidade
afasta (recalca) do jovem o desejo de eliminar o pai e possuir a mãe. Enquanto
tal desejo lhe ocupar o inconsciente é o sentimento de culpa que vai crescendo
dentro dele.
Entretanto,
o jovem descobre a necessidade de aceitação do castigo, a castração, se quiser
ser amado pelo pai. E porque o pai só poderá vir a amá-lo como se ele fosse uma
mulher. Diz ele, Freud.
E daqui de
parte para o tema da bissexualidade como uma das condições da neurose. Freud
aceita sem pestanejar que em Dostoievski existiria uma predisposição do género bissexualidade, ou latência de uma homossexualidade. Como? Porquê? Pela
importância que as amizades masculinas tiveram na vida dele, Dostoievski, pela
singular ternura que manifestava pelos que com ele rivalizavam no plano
amoroso.
(A
relevância ou não destas interpretações é com ele, Freud, não é comigo,
ignorante e céptico, que acho sempre tudo isto muito engenhoso e romanesco. E
fascinante.)
E se o o
super-ego se torna sádico, o ego resvala no masoquismo, na passividade
efeminada. Resta ao ego a necessidade da punição. Ou a submissão a um destino
que até engendra satisfações no mau tratamento que o super-ego lhe inflige, e
porque todo o castigo configura psiquicamente uma castração, e porque todo o
castigo concretiza a anterior atitude passiva perante o pai – e porque o
destino não é senão uma posterior projecção do pai.
O ego pode
encarar os sintomas de morte (ataques epilépticos) como satisfação do desejo
masculino, tanto quanto uma satisfação masoquista. Enquanto o super-ego verá
nisso a satisfação punitiva, a felicidade sádica. E tanto uma coisa como outra
só prolongam a presença e a função do pai.
Dostoievski,
enquanto desterrado político na Sibéria em condições miseráveis, não sofria os
seus costumados ataques de epilepsia. Porquê? Ele, Freud, explica: os ataques
eram tomados pelo inconsciente como o castigo, e se agora, desterrado na
Sibéria, sofria o castigo objectivo e suficiente, deixava de precisar de outro,
já estava a ser punido pela sua culpa.
E assim
viveu Dostoievski aqueles anos humilhantes e miseráveis sem se sentir muito
abalado. Fora condenado injustamente por delito político, mas aceitou o castigo
que o pai-czar lhe aplicara enquanto substituto da punição que o seu delito
contra o verdadeiro pai estava a pedir. Não se auto-puniu, deixou-se punir pelo
representante do pai.
A intenção
de matar o pai. Essa intenção formou-lhe aquela má consciência que nunca lhe
daria sossego. Em face do Estado e perante Deus comportou-se ele diante da
representação do pai que estas duas instâncias podem conter, e submeteu-se à
vontade do pai-czar. Perante Deus não logrou ele satisfação plena, posto que
toda a vida hesitou entre aceitá-lo ou negá-lo. Teve, isso teve, esperanças de
no ideal cristão deparar com a libertação da sua culpa, incorporando em si e no
que sofreu o destino do próprio Cristo. Não lhe bastou.
E agora,
passando à parte literária propriamente dita, há o seguinte: pergunta ele,
Freud, se será por acaso que três das maiores obras-primas da literatura
universal tratem o mesmo tema, o parricídio.
O Rei Édipo, Hamlet, Os Irmãos Karamazov.
Qual a motivação do delito em todas elas? Resposta: a rivalidade por uma
mulher. Em Édipo é o herói o autor do
crime. Mas há a culpa atenuada. O inconsciente do herói projecta-se no real. O
herói desconhece o poder do seu destino. Não tem intenção de cometer o crime,
nem há a mulher como motivação, uma vez que ele só conquista a mãe-rainha após
o crime.
Mas a culpa de Édipo é revelada. E do inconsciente, Édipo passa à
consciência. E passado à consciência nada faz para alijar esse peso e aplica a
si mesmo a punição como se consciente tivesse sido o seu delito.
Hamlet não
comete crime algum, já se sabe. É aí que está a questão. Depois do ser ou não
ser, o fazer ou não fazer. Hamlet não faz nada. Hamlet não comete um crime
porque é outro que o comete, e sem que para esse outro o crime cometido revista
de alguma forma a natureza de parricídio. A questão é que compete a Hamlet
vingar esse crime que outro cometeu assassinando-lhe o pai. E Hamlet mostra-se
misteriosamente incapaz de proceder ao acto de vingança. Também a culpa o
paralisa. E assim porque o processo neurótico desloca o sentimento de culpa
para a consciência da sua incapacidade de agir, de cumprir o seu dever moral.
No romance
de Dostoievski é também um outro que comete o crime. Embora esse outro mantenha
com o assassinado relação filial aparentada ao herói.
O epiléptico, o neurótico em mim é um parricida – escreveu o
próprio Dostoievski.
Todavia,
para a justiça, o culpado pode ser um, concreto, objectivo, enquanto para a
psicologia o importante não é quem cometeu o crime, é, sim, saber quem no mais
profundo do seu ser desejou esse crime e com ele se regozijou depois de
consumado. É assim que todos os irmãos Karamazov são igualmente culpados, tanto
aquele que é impulsivo e sensual como o outro que é um céptico e um cínico,
como aqueloutro epiléptico e criminoso.
Dostoievski
atinava com os criminosos. Faz lembrar, segundo o que ele, Freud, diz, o temor
sagrado que na Antiguidade inspiraram os epilépticos e todos os outros
espiritualmente perturbados.
O criminoso
é um redentor para Dostoievski. O criminoso é redentor por ter tomado para si a
culpa. Se não o fizesse, todos os outros, todo o género humano (diria eu) seria
obrigado a carregar com essa culpa. Após o assassinato que o criminoso cometeu
não serão precisos mais assassinatos. Ele já assassinou. Fiquemos-lhe
agradecidos por não sermos nós forçados a assassinar.
E se
Dostoievski tratou literariamente tanto o criminoso comum como o criminoso
político ou religioso, diz ele, Freud, que só no final da vida Dostoievski se
virou para o crime primordial, o parricídio.
E chega a
época que na vida de Dostoievski é especialmente marcada pelo vício do jogo, em
que ele é dominado pelo vício do jogo.
O principal
era o jogo, sim, o jogo em si, o jogo por si. Jogava sem descanso, até ter
perdido tudo. Era outra estratégia de auto-punição. Jurou mil vezes à mulher
que deixaria o vício. Deu mil, vezes a sua palavra de honra de que não voltaria
a jogar. E quebrou todos os juramentos e faltou a todas as palavras de honra. É
a mulher que o revela nos diários que foi escrevendo.
Dostoievski
sentia-se diabolicamente bem quando perdia tudo e caía na miséria, e para essa
miséria arrastava a mulher. Era a grande e patológica satisfação da vida dele.
Diante da mulher insultava-se a si mesmo, humilhava-se, exigia-lhe o
desprezasse e amaldiçoasse a hora em que se tinha juntado com ele. Era o sumo
prazer da expiação. Porque no dia seguinte tudo recomeçava. E a mulher
habituara-se a este trem de vida. Compreendera o ciclo da salvação de vida do
marido. Compreendia que a produção literária dele aumentava de volume e de
qualidade assim que perdia tudo na roleta, assim que empenhava os parcos bens
que ainda tinha. Porque Dostoievski se reconciliava pelos castigos que a si
próprio impunha, e assim vencia toda a inibição para escrever.
O principal é o próprio jogo – escreveu
ele numa carta dirigida não percebi a quem -, e juro-lhe que não se trata de avidez pelo dinheiro, embora eu esteja,
acima de tudo, necessitado de dinheiro.
Oh, como gostava
que o velho Freud tivesse podido analisar (psicanalisar) as relações dos
portugueses com o Salazar – isto por falar em culpa e no prazer de uma
expiação. É porque me espanta a bonomia incrível com que tanta gente insuspeita
de salazarismo se refere a ele – ou também a memória do pai severo e castigador
que todos queríamos ter assassinado e não assassinámos e deixámos ao destino
esse encargo moral.
Ele, Freud, talvez não fosse fora disso. Não sei.
Como este tema me faz lembrar o seu admirável livro sobre a figura de Sergio Varella Cid... Terá a genialidade um gene de destruição em si mesma? Só nos restam perguntas.
ResponderEliminarUm bom ano, amigo Joel.
Como este tema me faz lembrar o seu admirável livro sobre a figura de Sergio Varella Cid... Terá a genialidade um gene de destruição em si mesma? Só nos restam perguntas.
ResponderEliminarUm bom ano, amigo Joel.