QUINHENTISTA POLITICAMENTE CORRECTO
Andávamos
tão tranquilamente inquietos na austeridade e nem pelo nosso politicamente
correcto e conformado pensamento passou que pelo Charlie Hebdo iríamos ser
duramente interpelados no mais profundo das nossas ocidentais ambiguidades, no
mais agudo das nossas democráticas e bem pensantes contradições.
Tolerância, liberdade de circulação,
liberdade de expressão, respeito pelas privacidades, consideração pelas
minorias étnicas (e outras) e risco dia a dia aumentado de desgraça pública,
violência extrema e morte; com a triste alternativa de restrições à cidadania,
de escutas intensivas, de vídeo-vigilâncias multiplicadas, de rédea curtíssima
às minorias étnicas, de restrições à circulação Schengen… e risco só um pouco
mais atenuado de desgraça pública, violência extrema e morte.
Os sanguinários protagonistas dos crimes
do Charlie Hebdo e do supermercado Kasher estavam todos, todinhos,
referenciados pelos serviços secretos franceses e americanos. Sim. Para quê? E
depois? Depois, foi o que se viu.
Que tem isto a ver com a cultura e com o
grande mestre pedagogo quinhentista Nicolau Clenardo (Nicolaus Clenardus; Nicholas
Cleynaerts)? Tem. A questão islâmica não é de hoje, já se sabe.
Nicolau Clenardo foi, no século XVI, um
notável percursor do estudo das línguas, as clássicas e as orientais – latim,
grego hebraico, aramaico, árabe. Foi inovador – e um paladino do politicamente
correcto na complicada relação do Ocidente com o mundo islâmico.
A inovação de Clenardo foi o introduzir
nas técnicas de ensino das línguas a vertente prática em desdouro da livresca.
Uma banalidade para nós, os de hoje. A repetição oral e escrita das frases como
base do entendimento da língua. Uma secundarização da gramática e um incremento
da audição, do diálogo, quer dizer, do contacto prático com a língua que se
quer aprender.
Flamengo, religioso, mestre na
Universidade de Lovaina, é precisamente aí que começa a estudar o árabe pelas
técnicas livrescas e convencionais. E estudo do árabe é ele que o leva a
envolver-se profundamente com o mundo muçulmano e decorrentes problemáticas
sociais e religiosas. E tanto lhe interessaram os estudos arábicos que depressa
se apercebeu do lugar onde privilegiado contacto poderia haurir com os temas
muçulmanos. A Península Ibérica.
Expulsos há tempo mouros e judeus do
território peninsular, a realidade era a dos cristãos-novos, que continuavam
judeus e mouros de fé, ainda que abjurando formalmente das respectivas
convicções e tradições religiosas, e sempre com a Inquisição (descrente dessas
conversões) à perna.
Mergulhado na questão judeu-árabe nas
suas diversas coordenadas, Clenardo observava que, não obstante as conversões
forçadas, o islamismo e o judaísmo continuavam a agenciar adeptos entre os
cristãos – caso que do século XVI, como se percebe, directamente nos transporta
à mais premente actualidade, com o crescente número de jovens ocidentais (e
alguns nascidos aqui pela linha de Sintra) fascinados por Maomé e a pegar em
armas pelo islamismo.
Do que Clenardo discordava era da
pressão psicológica e da força das armas como travões ao alastramento das
heresias de Mafoma e Jeovah. Força bruta e força psíquica só em última
instância. A via ideal era a do diálogo. Só poderia ser a do diálogo, e sendo a
força filha da intolerância opressora das liberdades, e sendo a palavra o
instrumento do respeito pela pessoa humana, da consideração pelo Outro – um
políticamente correctíssimo do século XVI, um espanto! E sendo que esse diálogo
só eficazmente funcionaria no caso de o dialogante dominar a língua que era
veículo das ideologias erradas, designadamente o islamismo. Daí, então, a
urgência do incremento dos estudos arábicos ao mais alto nível académico.
Clenardo vem de escantilhão de Lovaina
para Salamanca pela mão de Fernando Colombo, filho de Cristóvão. Em Salamanca,
aperfeiçoa consideravelmente o conhecimento da língua e cultura árabes que já
trazia de Lovaina. Autodidacta, estuda a tradução árabe dos Evangelhos.
Compreende finalmente a aplicação correcta das vogais, enfronha-se na gramática
de Albucasim e assimila novos vocábulos.
Nisto, aparece em Salamanca o humanista
português André de Resende. Vem a mando do rei de Portugal, D. João III, e atraído
pelo renome intelectual do religioso brabantino. Quer trazê-lo para Évora.
Faz-lhe a proposta. Clenardo aceita. E vem para Évora.
Na corte de Évora, Clenardo é nomeado
nem mais nem menos do que perceptor de Teologia e Humanidades do Infante
Henrique – mais tarde bispo de Braga, arcebispo de Évora, cardeal, e rei de
Portugal.
Em Évora, e professor de árabe, pensa
regressar em breve a Lovaina para aí continuar o magistério arábico, mas,
instado pelo príncipe, e motivado pelas possibilidades de estudo aperfeiçoado
da língua e cultura arábicas, vai-se
deixando ficar por Évora.
Concluídos os estudos com mestre Nicolau
Clenardo, o príncipe é feito bispo de Braga. Clenardo fica portanto livre dos
compromissos com a corte portuguesa, continuando embora a embolsar a pensão
anual de 100.000 reais enquanto o discípulo for vivo.
No verão de 1538, Nicolau Clenardo ainda
reside em Portugal, é assessor científico de Sua Alteza, o Príncipe, e
encarregam-no de fundar uma escola de latim em Braga.
De vida oscilante entre duas vocações, a
sacerdotal e a cultural, Clenardo está mais do que convencido da probabilidade
de eximir os mouros aos erros teológicos em que laboram e de os converter a
Cristo por meio do discurso e do diálogo desenvolvidos na língua mesma dos
infiéis. É a única maneira verdadeiramente cristã e humanista de pregar as
verdades evangélicas aos seguidores de Mafoma. Chama-lhe a cruzada pacífica.
Em causa estava o encontro de Deus com
os homens. Um encontro que se daria unicamente na condição de ser realizado
pela acção e pela palavra dos homens, e sendo a palavra o meio único de
testemunhar a maravilha da revelação divina.
É nesse ano de 1538 que Clenardo segue
para Granada. E é em Granada que ele abranda os imperativos científico-pedagógicos
da vocação em favor da dedicação quase exclusiva aos imperativos
evangelizadores e apologéticos.
Começara a estudar a língua árabe com
via de compreensão mais afinada do hebraico, e pela afinidade entre as duas
expressões. Não pensara então em combater a heresia. Foi em Salamanca que a
missão de escrever contra Mafoma se lhe impôs, e porque toda a Espanha lhe
parecia crescentemente contaminada pelo islamismo.
A missão obrigá-lo-ia a estudar
detidamente o Corão. Não se pode atacar com competência o que a fundo não se
conhece. Para as melhores refutações de Maomé bom seria penetrar nos
mistérios da religião por ele fundada.
Um aspecto interessante do magistério e
da missionação – e da correcção política avant
la lettre - de Nicolau Clenardo é a intensa discordância dele quanto à
repressão que os estados soberanos exerciam sobre muçulmanos e judeus na Península.
Quanto aos processos da Inquisição, portanto. Tais processos inscreviam-se numa
cruzada de armas e de martírios, ao que ele opunha a necessidade prática da tal
cruzada pacífica. Os processos de morte deveriam ser abandonados e a ele
deveriam sobrepor-se os processos dialogantes de teor religioso como
instrumento óptimo da conversão dos muçulmanos. E isso porque o diálogo
pressupunha um essencial ponto de partida, o qual seria o da liberdade dos
dialogantes, e sendo essa liberdade o contexto atinente a uma conversão sincera
e espiritual, não forçada pelas conveniências da sobrevivência.
Liberdade é capacidade de optar. E optar
é resultado do comparar. Comparando os princípios e teses do cristianismo e do
islamismo, segundo o bom Nicolau Clenardo, facilmente qualquer maometano se
aperceberia dos erros e das falsidades da sua religião no confronto com os
ensinamentos e práticas cristãs.
Nas instruções que dava a quantos se
propunham evangelizar os hereges muçulmanos, Clenardo exigia que no contacto com
eles os missionários usassem a própria língua dos hereges. De nada serviria
argumentar com os hierarcas muçulmanos em latim. O desejável seria utilizar uma
arma de que o inimigo sentisse os golpes. E se a discussão teológica com os
eruditos muçulmanos não fosse feita em árabe, o melhor que haveria a fazer era
desistir da missão.
Atacava-se muito o Corão, mas ninguém se
dava à tarefa de discutir o dogma na língua arábica. E o exemplo vinha dos
próprios Apóstolos de Cristo, que Deus, por alguma razão, dotara do dom das
línguas e que usavam no seu ministério sagrado as diversas línguas dos povos a
quem em cada circunstância se dirigiam.
Porque a fé transmitia-se pelo ouvido, e o ouvido é o receptáculo do que
a língua pronuncia.
O facto de os muçulmanos e judeus se
converterem ao cristianismo pela força, e falsamente, não agradaria certamente
a Deus. Mas sobre a Europa do tempo a ameaça islâmica era uma realidade,
sobretudo na parte oriental do continente por acção guerreira dos turcos, e na
Península Ibérica pela proximidade com o norte de África e pela ameaça do
regresso do pessoal dessa zona a Portugal e Espanha.
Talvez daqui, desta iminência ameaçadora
para a cristandade, se alcance um pouco mais da fezada do nosso D. Sebastião em
ir combater a moirama no seu próprio reduto, por imprudente que fosse.
A presença de Portugal em Marrocos era bem vista por Clenardo. Portugal era um
baluarte de Cristo e a segurança da Península era garantida por Portugal no norte
de África, e já que, por ocasião do nascimento do islamismo os reis ocidentais
não tinham tido a força de contrariar o impulso de conquista de que a nova e
herética fé dava eloquentes mostras.
Entretanto, a Inquisição deitava ao fogo
os livros sagrados de judeus e mouros. Errado!, grita Clenardo. Uma afronta
para os que nesses livros depositaram a sua fé. Os próprios judeus e árabes se
encarregariam de deitar ao fogo os seus livros logo que finalmente estivessem
convencidos da falsidade deles e convertidos estivessem ao cristianismo.
Exemplo? Foi a pregação dos Apóstolos de Cristo a sugerir aos povos da
idolátrica a destruição dos seus ídolos. Os livros sagrados de judeus e árabes
eram para ser distribuídos pelas escolas e pelos teólogos. Só assim se teria
acesso pleno e directo aos erros. E só assim esses erros seriam possíveis de
rebater com propriedade.
Mas as teses de Clenardo, já se deixa
ver, não colheram vencimento por parte dos inquisidores. E Clenardo avança um
passo derradeiro. Escreve ao próprio imperador Carlos V. E o resultado é o
mesmo – nem sei se Carlos V ao menos chegou a acusar a recepção da carta de
Nicolau Clenardo.
E foi assim. No século XVI, perante a
ameaça real e muito próxima de islamização da Europa, Nicolau Clenardo foi a
alternativa intelectual, civilizada, politicamente correcta à força de
repressão das armas e das torturas. Não teve sucesso. Quem pode saber se hoje,
nas graves circunstâncias históricas que se apresentam, essa alternativa
civilizada e politicamente correcta terá (teria) mais sucesso?
Há quem diga que a solução do D. Afonso Henriques era melhor. Mas esse não era um reconhecido erudito pois não?
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