domingo, 29 de março de 2015

                            LITERATURA 2

      
 

EXPERIÊNCIA ESPIRITUAL
        Leio que um pintor chinês do século XVII ia destruindo os quadros que pintava à medida que os ia dando por terminados. O importante para ele era a experiência espiritual de os pintar. A obra acabada não passava de um resíduo dessa experiência.
        E eu transfiro isto para a a escrita criativa. Escrever é mesmo isto. É o mesmo tipo de experiência do pintor chinês. E até estou convencido de que a fama, a glória e a fortuna do escritor mais bem sucedido não o remuneram tanto em termos de felicidade íntima, indestrutível, inapagável, como a experiência vivida a conceber e a realizar a obra.


      Cyril Connolly navegava por aqui quando dizia que a recompensa da arte não era o sucesso, nem a glória, era a intoxicação.
        Mais objectivamente, para o romancista, há a experiência de mergulhar profundamente nas vidas que não são, não foram, a dele. Um privilégio. Um prazer inaudito. O romancista pode viver as vidas que quiser e nelas, e com elas, enriquecer consideravelmente a sua própria vida interior. Depois, caberá ao leitor completar o trabalho, a experiência, desdobrar-se em vidas outras na prazerosa experiência da leitura, porque o romance é a grande arte que melhor confere, tanto ao escritor como ao leitor, os meios espirituais de romper os limites da sua própria vida, a real, tornando real a experiência de vida colhida na leitura.
        Milan Kundera dixit: as personagens dos meus romances são as minhas possibilidades nunca realizadas.


        Ou Oscar Wilde: é só porque Shakespeare nunca fala de si mesmo que as suas peças o revelam completamente e nos mostram a sua verdadeira natureza e o seu verdadeiro temperamento; ou mesmo os preciosos sonetos onde põe a nu para os olhos mais lúcidos o secreto tesouro do seu coração. Precisamente, a forma objectiva é definitivamente a mais subjectiva. O homem deixa de ser ele mesmo desde o momento em que fala de si. Dêem-lhe uma máscara e ele vos mostrará a verdade.


PERSONAGEM

          

    Para o romancista, a técnica consiste em poder (saber, querer) olhar para si próprio dentro das coordenadas da história que está a contar. De resto, essa pode ser a maneira de o romancista falar de si, do que pensa, do que sonha, pela boca das personagens que vai elaborando, construindo, inventando – partindo do princípio que é possível inventá-las. O romancista decide o que pensam as personagens, sem decidir tão claramente o que ele mesmo pensa de e em cada situação. É este o prazer supremo, acho eu (ou um deles, mais ou menos supremos), da escrita de ficção.

    


        Mas, se for sincero, se for honesto, antes de mais consigo, o romancista não deixará de reconhecer as afinidades entre a sua pessoa e as suas personagens. E aqui cabe a relação possível entre escritor e actor. A realidade deles é fingir, fazer de conta. Representam emoções. Emoções não sentidas no quente dos acontecimentos. Metade delas está fora da vida e eles discorrem, directa ou indirectamente, sobre essa vida somente pela sufocante necessidade que têm de satisfazer o instinto criador.

                                    
   
Até ao ponto limite de encararem a realidade como mais uma ficção, e assim podendo não andar longe da verdade. Qual verdade? Aí é que está.

             


Georg Lukacz, teórico literário de formação marxista, autoridade literária noutros tempos muito citada, entendia que as personagens não deveriam assemelhar-se a pessoas comuns. Deveriam ser organizadas como tipos. 


Claro que ele sustentava isto nos tempos da literatura comprometida, do romance social que era parte da luta de classes. Todo o conflito social (ou político) apareceria cristalizado em personagens tipo e nas relações entre elas, grosso modo, o operário explorado, o camponês humilhado, o burguês ganancioso, o patrão explorador, o capitalista impiedoso.


Mas Aristóteles recomendava o enredo como núcleo primacial do desenvolvimento da tragédia, e do qual brotariam necessariamente as personagens universais.


INCERTEZA
       Diz quem sabe que não há verdadeira criação sem riscos. Logo, sem uma boa percentagem de incerteza. Ou até de insegurança
        Não será portanto aconselhável a um escritor voltar a um livro seu depois de publicado. Vai encontrar defeitos, insuficiências, excessos. Tão certo como dois e dois serem quatro.


        Os críticos e os leitores podem até dizer maravilhas da obra. Só o autor pode saber a que ponto estão enganados. Só o autor pode saber até que ponto o seu livro não passa de uma boa merda.


        A insegurança, sim, evidentemente, dá medo ao autor. Porém, e por outro lado, é estado de espírito absolutamente necessário se se quer produzir alguma coisa de interesse. Mal dos que são seguros. Mal dos que estão certos de saber tudo à partida – esses, pois, os que não têm dúvidas e raramente se enganam…


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