LITERATURA 2
EXPERIÊNCIA ESPIRITUAL
Leio que um pintor
chinês do século XVII ia destruindo os quadros que pintava à medida que os ia
dando por terminados. O importante para ele era a experiência espiritual de os
pintar. A obra acabada não passava de um resíduo dessa experiência.
E eu transfiro isto
para a a escrita criativa. Escrever é mesmo isto. É o mesmo tipo de experiência
do pintor chinês. E até estou convencido de que a fama, a glória e a fortuna do
escritor mais bem sucedido não o remuneram tanto em termos de felicidade
íntima, indestrutível, inapagável, como a experiência vivida a conceber e a
realizar a obra.
Cyril Connolly
navegava por aqui quando dizia que a recompensa da arte não era o sucesso, nem
a glória, era a intoxicação.
Mais
objectivamente, para o romancista, há a experiência de mergulhar profundamente
nas vidas que não são, não foram, a dele. Um privilégio. Um prazer inaudito. O
romancista pode viver as vidas que quiser e nelas, e com elas, enriquecer
consideravelmente a sua própria vida interior. Depois, caberá ao leitor
completar o trabalho, a experiência, desdobrar-se em vidas outras na prazerosa
experiência da leitura, porque o romance é a grande arte que melhor confere,
tanto ao escritor como ao leitor, os meios espirituais de romper os limites da
sua própria vida, a real, tornando real a experiência de vida colhida na
leitura.
Milan Kundera dixit: as personagens dos meus romances são as minhas possibilidades nunca
realizadas.
Ou Oscar Wilde: é só porque Shakespeare nunca fala de si
mesmo que as suas peças o revelam completamente e nos mostram a sua verdadeira
natureza e o seu verdadeiro temperamento; ou mesmo os preciosos sonetos onde
põe a nu para os olhos mais lúcidos o secreto tesouro do seu coração.
Precisamente, a forma objectiva é definitivamente a mais subjectiva. O homem
deixa de ser ele mesmo desde o momento em que fala de si. Dêem-lhe uma máscara
e ele vos mostrará a verdade.
PERSONAGEM
Para o romancista, a técnica consiste em poder (saber, querer)
olhar para si próprio dentro das coordenadas da história que está a contar. De
resto, essa pode ser a maneira de o romancista falar de si, do que pensa, do
que sonha, pela boca das personagens que vai elaborando, construindo,
inventando – partindo do princípio que é possível inventá-las. O romancista
decide o que pensam as personagens, sem decidir tão claramente o que ele mesmo
pensa de e em cada situação. É este o prazer supremo, acho eu (ou um deles,
mais ou menos supremos), da escrita de ficção.
Mas, se for
sincero, se for honesto, antes de mais consigo, o romancista não deixará de
reconhecer as afinidades entre a sua pessoa e as suas personagens. E aqui cabe
a relação possível entre escritor e actor. A realidade deles é fingir, fazer de
conta. Representam emoções. Emoções não sentidas no quente dos acontecimentos.
Metade delas está fora da vida e eles discorrem, directa ou indirectamente,
sobre essa vida somente pela sufocante necessidade que têm de satisfazer o
instinto criador.
Até ao ponto limite de
encararem a realidade como mais uma ficção, e assim podendo não andar longe da
verdade. Qual verdade? Aí é que está.
Georg Lukacz, teórico
literário de formação marxista, autoridade literária noutros tempos muito
citada, entendia que as personagens não deveriam assemelhar-se a pessoas
comuns. Deveriam ser organizadas como tipos.
Claro que ele sustentava
isto nos tempos da literatura comprometida, do romance social que era parte da
luta de classes. Todo o conflito social (ou político) apareceria cristalizado
em personagens tipo e nas relações entre elas, grosso modo, o operário explorado, o camponês humilhado, o burguês
ganancioso, o patrão explorador, o capitalista impiedoso.
Mas Aristóteles
recomendava o enredo como núcleo primacial do desenvolvimento da tragédia, e do
qual brotariam necessariamente as personagens universais.
INCERTEZA
Diz quem sabe que não há
verdadeira criação sem riscos. Logo, sem uma boa percentagem de incerteza. Ou
até de insegurança
Não será portanto
aconselhável a um escritor voltar a um livro seu depois de publicado. Vai
encontrar defeitos, insuficiências, excessos. Tão certo como dois e dois serem
quatro.
Os críticos e os
leitores podem até dizer maravilhas da obra. Só o autor pode saber a que ponto
estão enganados. Só o autor pode saber até que ponto o seu livro não passa de
uma boa merda.
A insegurança, sim,
evidentemente, dá medo ao autor. Porém, e por outro lado, é estado de espírito
absolutamente necessário se se quer produzir alguma coisa de interesse. Mal dos
que são seguros. Mal dos que estão certos de saber tudo à partida – esses,
pois, os que não têm dúvidas e raramente se enganam…
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