LITERATURA
Literatura? Coisa que começa a desaparecer, ainda
que um dia alguém tenha dito que é o inalterável presente narrativo o que
melhor contém a realidade.
Porque para cada vez mais gente a
escrever há cada vez menos gente a ler.
O mercado, o mercado, o mercado!
PORQUÊ
Porque carga de água uma pessoa se põe a
escrever?
Porque é um ser perturbado? Claro que sim. Ou…
sim talvez, perturbado. Perturbado por alguma coisa. A política monetária. A
fome no mundo. A injustiça social. Os horrores da guerra…
Ou perturbado na sua vida pessoal. Indeciso,
ignorante do que se passa consigo, dentro de si, e com os que o rodeiam. A
doença. A dor. A expectativa da morte. O mais intenso gozo dos prazeres da
vida.
Escreve-se e quer criar-se um mundo que se sabe de sobra que não existe nem
existirá. E que por isso mesmo é preciso criar.
Escrever é capaz de ser ocupação pouco
natural.
O
ROMANCISTA FAMOSO
O romancista famoso é categoria de
cultura e de civilização que tende a desaparecer – acompanhando, obviamente, o
desaparecimento da literatura mesma. Tende a desaparecer, se é que não
desapareceu já. Sim, isso do romancista famoso. Que se não desapareceu entrou em
silencioso e confrangedor desprestígio público.
Gore Vidal está de acordo comigo. Ou eu
com ele, evidentemente.
Diz ele (disse) que falar hoje de um
romancista famoso dos tempos remotos do século XX é como falar de um artesão
muito admirado, de um entalhador, de um designer
de barcos de competição.
Um romancista não pode ser famoso ainda
que conhecido na imprensa. E não pode porque o romance perdeu a importância que
tinha – ou terá ainda alguma, pouca, mas mais para os iniciados, os viciados na
ficção; mas nenhuma se estivermos a falar do grande público.
Porque ser famoso é ser muito falado,
muito citado; ou, principalmente, muito gabado. Nada mais. Ou pouco mais.
Não virão já ao caso os romances que
foram lidos há cinquenta anos. Ou há quarenta. Ou mesmo há trinta. Não, esse já
não vêm ao caso. Porque esses tempos eram tempos em que os romances eram lidos,
mesmo lidos, e até discutidos – como os filmes, diria eu.
Um caso de romance e escritor famosos
nos tempos mais recentes? Arriscaria O
Código Da Vinci e em Dan Brown. Um sub-produto literário, vamos lá, em que
a intriga circula nas fraldas do erudito e que por qualquer razão seguramente extra-literária
saltou para as bocas do mundo, deu filme, deu sequela de filme (embora com
outro título), enriqueceu o autor.
A fama literária não tem a ver com a qualidade
literária, ou com a excelência da obra.
Se o que um romancista escreve hoje só passa a
ser conhecido de uns quantos confrades, ou de uns quantos incondicionais da
leitura e da ficção, o escritor nunca será famoso. O escritor é até uma irrelevância
para o seu tempo, este, o único tempo que ele tem.
O romancista não pode julgar-se um
Stendhal, por exemplo. Um Stendhal que previu (e, mais difícil ainda, acertou)
que a sua obra, pouco significativa em termos de fama nos anos 30 do século XIX,
só viria a ser apreciada e estudada um século mais tarde. Ele até avançou com
um ano preciso, para ele se calhar impensável, 1936. E assim foi. É em 1936 que nos meios literários franceses
começa um revivalismo de Stendhal.
Qual é o romancista contemporâneo, qual é, que
se permite sonhar com os seus leitores entusiastas de 2115?
A literatura que hoje já pouco interessa não
existirá pura e simplesmente em 2115. Ficará uma ou outra obra (sabe-se lá se O Código
Da Vinci) como relíquia intocável fechada em vitrina iluminada de uma
biblioteca-museu.
Romancistas famosos do Terceiro Milénio só como piada…
E quanto a isto da fama, também, da fama tout court, estimo muito as melhoras. A
fama de artista sério (ou dito sério, como a musica séria), designadamente o
escritor, desintegra-se facilmente. Porque a seriedade intelectual entrou em
amarga decadência – ah, os políticos, os políticos…
A fama literária estaria tão ameaçada de
extinção quanto a espécie humana mesma. E tudo porque o que se está a perder nesta
assombrada e quotidiana vida é a História.
O
HOMEM SOLITÁRIO
O processo de criação romanesca é acto
individualista. É actividade de um só homem (ou mulher, claro) e de um homem
só. Há quem diga que ao escrever um
romance o autor está essencialmente a tratar de um seu problema pessoal. Está a
proceder ao exorcismo dos seus demónios íntimos, trabalho que só a ele respeita
e que só ele pode fazer na condição de se colocar defronte de si mesmo.
Bem, sim, pode-se considerar esta
explicação como um ressaibo mitológico dos magníficos anos 60, algo hoje fora
de toda a cogitação. Hoje, o homem, o artista, já nem tempo tem para
identificar os próprios e íntimos demónios, tão ofegante é a sua luta pela tal
fama (a mais rápida e passageira, bem entendido) e pela fortuna, uma e outra
tão dramaticamente difíceis de atingir em vista da concorrência que a
mediocridade engendra a cada dia.
ACÇÃO
Lá vai o tempo em que o escritor
acreditava que a sua escrita, e correlativas ideias e valores, se
consubstanciariam em acção através daqueles que o liam. Eram os escritores engagées quem mais tal sentenciava. O
leitor, por intermédio da grande literatura de Dostoievski, Kafka, Dos Passos,
Sartre, Beauvoir, Camus, Borges, Garcia Marquez ou Jorge Amado assumia
cidadanias, agia na sua vida corrente, intervinha no seu meio, e desse modo
fazia das obras que lia e dos escritores que admirava entidades de utilidade
pública.
Sartre? Eu falei no Sartre? Pois falei.
Porque sim, claro, era Sartre (não podia ser outro) que nos desassossegos do
pós-guerra em França, na lufa-lufa das listas negras do colaboracionismo
literário e artístico, afirmava a literatura como acto, e assim culpava quem ao
escrever dormira as mais longas noites com o inimigo.
Nomear as coisas e as pessoas é
dar-lhes existência, é inseri-los na consciência comum. Não se cansava – nunca
se cansou, Sartre – de trazer à colação a responsabilidade do escritor (oh, que
tempos!) como suporte das teses da literatura engagée. E o ponto de partida para uma posição sartreana, creio
bem, foi mesmo esse tremendo período da História de França em que era preciso
ajustar contas com os que haviam vendido a pena ao ocupante nazi. E contas
foram essas, como sabemos, que deram na condenação à morte de alguns – deixando
embora, estranhamente, outros impunes.
Mas tudo isso, toda essa
honorabilidade, toda essa responsabilidade do escritor já lá vai. Não há
escritor por mais pintado que hoje faça agir quem quer que seja, ou inspirar
tomadas fortes de posição. Se é que na época, apesar de toda a actividade
literária e propagandistica, os havia. Do que é possível duvidar. Mas o mundo de
então (1933-1945), em toda a sua tragédia (ou por isso mesmo), ainda era lugar para uma poética.
O
BOM E O MAU ESCRITOR
Mario Vargas Llosa disse um belo dia
que no momento em que se senta para escrever todo o escritor decide se vai ser
um bom ou um mau escritor
Pensando na sentença do seu (então)
amigo Mario, Garcia Marquez recebeu na sua casa do México a visita de um moço
de 23 anos que seis meses antes publicara o seu primeiro romance e que naquele
dia se sentia radiante por ter acabado de entregar ao editor o original de um
segundo romance. Garcia Marquez estranhou-lhe a pressa que se dava de uma
prematura carreira literária. Ao que o novel romancista retorquiu:
- A questão é que tu, Gabo, tens que
pensar muito antes de escrever uma linha, só porque toda a gente, todo o mundo
literário está suspenso do que tu escreves… enquanto eu, pobre de mim, posso
escrever depressa ou mesmo descuidadamente, porque muito pouca gente se vai dar
ao trabalho de me ler.
Garcia Marquez lembra-se da máxima do
seu amigo Mario: aquele rapaz tinha decidido ser um mau escritor. Como de facto
veio a ser, antes de ter arranjado um emprego de vendedor de automóveis em
segunda mão e deixar de perder o seu rico tempo com veleidades de romancista.
ESCREVER
O TAL LIVRO QUE SE SONHOU
É um escritor contemporâneo de certa
nomeada, Michael Cunningham, a dizer-nos da consciência que tem de nunca vir a
escrever o grande livro com que sonhou – ou pelo menos da forma como o sonhou.
Porque o artista é o homem que persegue
um formidável ideal. Um homem que passa as passas do Algarve para sobreviver
(intelectualmente, já se vê, espiritualmente) à decepção ao dar-se conta de que
o livro que acaba de escrever, nem que seja um êxito de crítica ou de vendas,
não é o livro que concebera, o livro que sonhara escrever.
Aprender a escrever romances é ocupação
para toda uma vida – também diz Michael Cunningham. E é bem capaz de ter razão.
E mais diz ele: os escritores dão tanta
importância ao livro que têm entre mãos que deixam de considerar os sentimentos
dos outros, das pessoas concretas com quem se dão. Será esse o lado negro do
escritor.
Não sei se concordo. Mas pode ser só
problema dele.
EU?
ELE?
Pois é. É aí que toda a literatura
romanesca joga a sua sorte. Na passagem do Eu ao Ele. Na transição técnica
entre primeira e terceira pessoa do singular. Kafka o dizia.
Toda
literatura se desenrola em função deste jogo, deste detalhe só aparentemente
técnico.
Literatura pode se o aparecimento do
si-próprio (soi même). Até Proust
pensava nisto. E tanto pensava que desde 1895 trabalhou num projecto de romance
longo, Jean Santeuil, escrito na
terceira pessoa.
Nunca o acabou. Disseram que não era um
bom romance. Proust, disseram os críticos, não se dera maravilhosamente com a
distanciação requerida entre o si-próprio e o Outro. Distância
técnico-narrativa, posto que, também segundo os críticos, este falhado romance
escrito no Ele resultara numa narrativa mais autobiográfica do que a própria Recherche.
Até que ele decidiu, por voltas de
1907, anular a distância entre narrador e herói.
Pode-se
contar tudo no romance, na condição de nunca se escrever Eu - disse André
Gide.
Também, verdadeiramente, onde está a literatura, hoje em dia? Não na maior parte dos livros publicados de certeza...mas, no fim de contas, não se dizia já nos meus tempos da Faculdade de Letras (anos 60) que "Letras são tretas"... Requiem por Herberto Helder um dos últimos bardos dos nossos bárbaros tempos.
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