terça-feira, 23 de junho de 2015


                            O MUNDO SOU EU!

Proclamou-o o romancista francês Rémy de Gourmont no limiar do século XX.

 
O mundo sou eu, o mundo deve-me a sua existência, eu criei-o com os meus sentidos; o mundo é meu escravo e mais ninguém tem poder sobre ele.
Era um livro intitulado Sixtine – Romance da Vida Cerebral.
 
                                                                            

Foi um imaginário pardo e adoentado o que assolou as mentes europeias mais brilhantes na transição do século XIX para o século XX. Um chamado fin de siécle que muito previsivelmente teve Paris como cenário, teve Paris como força intelectual difusora das novas ideias, das novas formas de expressão artística, dos diferentes parâmetros estéticos, e igualmente, e por isso mesmo, das mais tristes expectativas para a vida do espirito, e até para o homem comum.

 
O simbolismo decadente impõe a moda artística, em especial na literatura, na poesia, mas igualmente noutras expressões. Que o digam os que o pintaram, ou que o teorizaram, ou que o tocaram, Moreau, Redon, Munch, Satie, Puvis de Chavannes, Huyssmans, Debussy, Paul Bourget ou Richard Strauss. Na música, e a meu ver exageradamente, há mesmo quem diga ser Wagner já um produto desse mal-estar existencial. Mas talvez eu acrescentasse com mais propriedade, e pelas febris composições ainda no domínio da música, outro nome grande, Gustav Mahler.

 
Decadência. Pessimismo. Tédio de vida.
 
 
O Homem em conflito com o seu meio, horizontes existenciais a abarrotar de incógnitas dolorosas. Tudo isso desabou sobre a expressão artística. Tudo isso instituiu uma nova moral estética, e ética, claro, a que muitos dos criadores não puderam fugir.
                                                                                         
E de Paris a moda do tédio e do desespero alastrou Europa fora, desencadeou transformações civilizacionais e específicas linguagens, como a contestação do tipo anarquista-nihilista nas rússias, como o pessimismo alemão, como a neurose do sul. Neurose decadentista que Nietzsche já distingue como raiz da obra de Wagner em 1888.
     
Uma técnica complexa de decomposição de linguagens, um estilhaçar das unidades formais conceituadas, como diria Paul Bourget – segundo leio – uma independência da página escrita; uma decomposição dessa página a conferir autonomia à frase; um estilhaçamento formal da frase a abrir a via à soberania da palavra.
Ou, caminhando em inverso sentido, a palavra a exceder a frase, a frase a obnubilar a expressão da página, a página a impor-se, subalternizando a unidade do todo.
Em suma, um exercício de liberdade; ou uma exigência universal de direitos. Outra moral.
                                                                                       
É nesta época da vida intelectual que nasce na literatura – ou talvez também na vida – o herói por assim dizer negativo, o herói decadente. É Huysmans quem o faz nascer como protagonista do romance A Rebours - ao contrário, ao invés, às avessas.
Des Esseintes, chamava-se a personagem, esse herói decadente, esse homem crepuscular, essa figuração de uma crise moral abrangente e a braços com a complicada adequação aos valores emergentes.

 
Os valores emergentes decorriam da evolução do conhecimento científico e tecnológico. Os valores emergentes eram a alteração das coordenadas estáveis de um conceito de tempo e de História. Uma aceleração de vidas. Um saltar de etapas do quotidiano. Uma tecnologia que estendia tentáculos inevitáveis à sociedade, à vida comunitária e que deixava os homens em dúvida na própria área política.

 
Claro que esta escola decadentista e sensível à perda de um mundo mitificado opunha-se à intelectualidade que, a rebours, pelo contrário, mitificava os dias a vir, aplaudia entusiástica as novas oportunidades que o próximo século traria para oferecer ao Homem. Zola era um progressista, logo, um expoente desses artistas da nova ciência. Zola e o romance social, o romance que sobrevoava o exterior das existências, os passos rigorosos, os gestos exactos e convenientes e científicos, a razão, digamos, mais pura, mais desataviada do doentismo cinzento dos simbolistas profetas de uma desgraça futura.

 

Para os decadentes, ou decadentistas (por melhor dizer), a Arte revestia fumos de uma religião da qual eles frequentavam com unção os altares. Os decadentistas teimavam que era à vida que cabia em sorte e destino a imitação da Arte, da grande Arte. Viver seria uma manifestação de grande estilo; seria idealmente um acto estético.
Para os naturalistas apaniguados das novas esperanças, dos admiráveis e científicos e racionais mundos novos a trazer pelo novo século, competia à Arte perseguir a vida verdadeira, ou mesmo servi-la; competia à Arte não se divorciar do real circundante, nem que fosse preciso a obra da imaginação, que seria o romance, transformar-se em dissertação sociológica.
Uma questão de moral e peras…

 
Populistas e aristocratas, se assim podemos dizer. Isto é: duas atitudes comunicacionais na apreciação do fluir imparável do tempo. Os socialistas e os esteticistas – se assim também pudermos dizer. Ou ainda mais simplesmente: aristocratas e burgueses.   

                                                                                   
Era à vida burguesa, pragmática, positiva, sujeita ao discurso das realidades que Zola e companheiros apelavam; era a um triunfo da tecnologia que tornaria a vida mais prática e menos contemplativa e o viver mais acessível a todos, com os bens de consumo, antes privilégio de poucos, ao dispor da maioria. Era à democratização da vida, enfim, iniciada por uma atitude cultural, que os positivistas adeptos do novo século aspiravam.


 
Os decadentistas, os tais que, como Rémy de Gourmont encaravam o mundo como criação sua – a criação que lhes fugia, que os abandonava, que os traía - refugiavam-se na subjectividade. O sonho. O ideal místico impalpável, imensurável. A invenção de uma realidade interior. A simbologia que as coisas encerravam.

 
O herói de crise, o campeão decadente, é um solipsista. É um egocêntrico. É ele o inventor do mundo. E é ele a sua própria invenção. É ele o mundo. E o mundo que é ele, e que se pode libertar do sonho dele, começa pelo fim do século XIX a causar-lhe mal-estar, náuseas – Sartre, acho eu, vem muito mais tarde a revisitar, noutros pressupostos, bem entendido, estas mesmas paragens existenciais.
 


O herói de crise é mórbido, porque cultiva a morte como saída estética, ou como hipótese moral de redenção.
O herói de crise, o decadente, pela sua posição filosófica face à novidade do mundo, ou ao irreconhecimento de um mundo já não moldado ao seu parecer, toma atitudes de mundano blasé.
Ao herói romanesco da crise de fim de século repugna (tal como repugna hoje a muitos de nós) o utilitarismo burguês, o mercantilismo comandante de uma vida que se tornaria – e tornou - feia de morrer.

                                                                                                   
E se a natureza, redescoberta pela ciência e pela tecnologia, determina pensamentos pequenos e gestos rotineiros e desengraçados, então que se lhe contraponha o artificialismo das paisagens e das figuras ideais. Que se lhe oponha a magia. Que essa natureza tão natural seja confrontada com a fantasia que habita o ego em desesperos de causa. Que se combata a ditadura do natural pelo misticismo simbólico que fará da arte uma actividade salvífica e redentora dessa vida burguesa e tediosa.
Porém, inegável será a herança recebida pelos aristocráticos decadentistas. E essa herança receberam-na eles das consciências futuristas, positivistas, naturalistas, que começavam por detectar na vizinhança do novo século as causas do seu mal-estar.

 
Foi o conhecimento, ou uma pré-consciência do que estaria para vir, que provocou a reacção simbolista-decadentista aos intelectuais que então se reclamavam da vanguarda, e que, ao aperceberem-se das fanfarras que saudavam o novo século, gritaram que é lá isso!, que querem vocês fazer do mundo?, como é possível estarem tão contentes com o que aí vem?, não se deram conta de que o mundo sou eu, é cada um de nós, que não há forma de o mundo existir senão por nós, em nós?

 
Foram os Zolas que abriram caminho ao conhecimento social, artístico e mental dos simbolistas-decadentistas. Foram eles que, anunciando o novo século, alertaram para as patologias num mundo que já era dos outros.
Foram os naturalistas a abrir os olhos para os condicionalismos do meio ambiente no comportamento dos homens outrora donos do mundo, para o factor hereditário que a ciência acabara ontem mesmo de descobrir, e isso e mais umas botas instauraram como realidade a ter em conta no próximo século.

 
Representação fiel da realidade feita por uns, que induz aos descontentes com tal representação fiel a invenção de outra realidade – ou uma conservação da realidade nos limites secularmente conhecidos.
A essa representação fiel da realidade haveria que contrapor outra atitude que talvez, com o andar dos tempos, afeiçoasse e repusesse a realidade em pés de mais compensador humanismo. E essa atitude consistia em criar uma ficção. Uma ficção que se opusesse com eficácia à realidade fiel que outros representavam. O momento era de passear por oníricos e artificiais paraísos de forma a que o mundo se conformasse sob a cenografia do Eu, e sendo o Eu o estádio perfeito do humano. Não era novidade absoluta. Ia-se ao Schopenhauer e ficava a saber-se que o mundo não passava de representação de um Eu que lhe era prévio e ao mesmo tempo atávico, dispersando o Outro pelos recantos menos devassados, quase inóspitos desse mundo que era o Eu.


 
Verlaine escreve: je suis l’empire a la fin de la décadence.
O que era a sociedade para os decadentistas senão uma concessão generosa, e por vezes bela, do Eu? O que era o Outro senão uma construção episódica do Eu?

                                                                                             
Mallarmé escreve: ouí, c’est pour moi que je fleuri, déserte !
O mundo, que tenderia a ser os outros, o Outro, abrandava convicções sagradas.
O mundo manobrado pelos que acabavam de o descobrir como afloramento da realidade transformara-se para os dandies decadentistas numa neurose. Só o Deus que parecia alheado do mundo e da vida sabia o que estaria ainda para acontecer.
Os novíssimos psicologistas ajudaram um tanto os decadentistas ao estabelecerem na sua ciência uma relação directa entre genialidade e doença mental. Wagner era então chamado, também ele, à conversa.

 
Promover a ritualização até dos próprios objectos.
Reapreciar culturalmente as épocas que a História estipulara como decadentes.
Explorar artisticamente o Eu e descobrir, e aceitar torturadamente, a ambiguidade do desejo sexual.
Como vingança de um Eu ofendido, explorar perversamente o erotismo.

 
Enfim, reagir. E reagir pode ser exprimir o até então inexprimível. O vazio. Exprimir o vazio pela infinidade de estados de alma que o preenchem e que assim o tornarão ainda mais vazio. Ultrapassar a realidade esquerda pela direita do artificial, do místico, do voluptuoso.
O Outro era o bárbaro. O Eu habitava uma ilha. Não, melhor, o Eu era a ilha. E a ilha do Eu era a única realidade que sendo falsa era inquestionável.


 
O mundo sou eu, o mundo deve-me a sua existência, eu criei-o com os meus sentidos; o mundo é meu escravo e mais ninguém tem poder sobre ele.

                                                                                               
 
A espiritualidade impõe-se. Necessariamente. Se os valores da matéria soçobram, então que lhes sucedam os valores do espírito. E o espírito é vasto, e é belo, e é vário, como o mundo que ele mesmo configurou.
O mundo é belo, vasto e vário, e de tal ordem o é que suscita uma quantidade de manifestações que nem por serem ideológica e visceralmente opostas deixam de ser espírito, do catolicismo ao budismo; do rosa-crucianismo ao satanismo. Magia. Cabalística. Astrologia. Espiritismo. Manifestações renovadas do profundo e feroz pessimismo que a crise mental do fim do meu mundo e da próxima inauguração do mundo dos outros despertou.
Sem dúvida que a esse espiritualismo desenfreado de recusa de um mundo materialista e tecnológico correspondeu a espiritualização a rebours, ao invés, às avessas: uma espiritualização do progresso.

 
Nessa espiritualização do progresso contava um tópico historicista: a entrada do século tecnológico, o XX, seria uma revisitação do Século das Luzes; constituiria a herança cultural dessas Luzes. E até porque a introdução em França das teses de Schopenhauer tinha acontecido tardiamente, não preparara os espíritos para um desenvolvimento filosófico disposto a acolher os cientifismos figurados na emergência do século XX.
Péladan, iniciadão rosacruciano, inaugura nos salões da própria ordem exposições de pintura, e avisa: o salão da Rosa-Cruz será doravante um templo dedicado a uma Arte-Deus, que terá como dogma a Obra-Prima, que terá por santos todos aqueles que tiverem Génio.
Estava a acabar o mundo.
 

 
Nos anos 90 do século XIX estava a acabar o mundo, esse mesmo mundo que tantas vezes na História já tinha acabado, que continuou a acabar nestes nossos dias com a revolução informática, que continua a acabar para todo aquele que de hoje para amanhã vá desta para melhor.
Sim senhor, estava a acabar o mundo e os verdadeiramente optimistas eram os burgueses desligados das visões espiritualistas, assediados por essas consciências despertas e maçadoras que eram os visionários da arte pela arte, os estetas, os anarquistas sem esperança, os militantes promotores do caos, em busca da nova ordem que ainda, e por enquanto, não sabem exactamente qual seja, mas cuja busca em si mesma lhes confere já um sentido à vida.

 
E nestes desavergonhados tempos parisienses de que falo, por cá, em Portugal, anunciava-se para breve o fim da pátria, o pessoal à nora com questões mais triviais.
                                                                                      
                                                                                                     
       
Antero, um desencantado decadentista, tinha escrito uma carta a Osório de Castro com os seguintes dizeres: em Portugal não pode haver revolução que mereça esse nome (…) revolução pressupõe propósitos, firmeza e força moral. O que aqui não há. Portugal é um país eunuco que só vive de uma vida inferior para a vileza dos interesses materiais e pra a intriga cobarde
E mais, e mais tocante e revelador, na sequência do berbicacho concreto que foi o Ultimatum inglês que nos marca a fogo a profunda crise da viragem do século: sob o insulto imprevisto esta nação parece agora acordar. Mas o nosso maior inimigo não é o inglês. Somos nós mesmos.


 
E em idêntico contexto pode preferir-se a Antero um outro, António Nobre:
                              Nada me importa, país.
       Seja meu amo o Carlos ou o Zé da Teresa… amigos
          Que desgraça nascer em Portugal 

Não havia país, por atavicamente atrasado, dependente, paroquial e senhorial onde a crise finissecular francesa do decadentismo encontrasse melhores imitadores. Em Portugal, sim, estava para ser o fim do mundo.

                                                                                                
 
A crise chega à intelectualidade da chamada geração de 90. E chega através do dito romance de Huysmans, A Rebours. Sempre imitativos, os intelectuais portugueses adoptam a cartilha da nova escola literária acabadinha de chegar de Paris e constituem-se em manifesto. Os Nefelibatas.
 

 
Eça estava então cônsul em Paris, e é claro que as finas antenas dele apanham a mensagem. E até nem destoava ele da reacção simbolista ao que avisadamente entendia como um excesso de materialidade o que vinha na esteira da ortodoxa moda cientista. Mas nem por isso ficou cliente dos decadentismos parisienses
É Antero que propõe uma idealização do espiritualismo como trajecto a seguir, contra o que chamou de gélido fatalismo soprado pela ciência ao coração dos homens. Enquanto para outros equilibrados espíritos o optimismo dos próceres do novo século científico só seria aceitável se fundamentado numa raiz metafísica.

 
O aristocrata Eugénio de Castro não fazia concessões e é ele o arauto que inaugura nas nossas letras a voga simbolista: julguei que se tinha levantado um obelisco místico no meio da praça; e que o obelisco dava uma sombra azul; e que tinham acendido um fogão no quarto húmido; e que tinham dado alta ao doente.

                                                                                                       
Ou o estimado Raúl Brandão, na sequência das crises nacionais, muitas, dos anos 90 do século XIX, escrevendo nas suas Memórias: a vida antiga tinha raízes, talvez a vida futura as venha a ter. A nossa época é horrível, porque já não cremos – e não cremos ainda. O passado desapareceu e do futuro nem alicerces existem. E aqui estamos nós, sem tecto, entre ruínas, à espera.

1 comentário:


  1. Considerações tão profundas e tão incrivelmente plenas de atualidade, na situação portuguesa presente...

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