O
PARADIGMA, A CEREJA, O BOLO,
A ESTRATÉGIA, A FILOSOFIA, A ESTRUTURA
Nas tintas para o
programa da coligação, às urtigas com a convenção do PS. O que importa é o
futebol. E já nem tanto pelo jogo em si, mais pelos enredos que circunstancializam o jogo em si, o que
não é desporto, o que pode muito bem, e muitas vezes, ser até anti desporto. Ou
mero acto de gestão burocrática.
Claro. Jorge Jesus é o nome. Jorge Jesus é a
figura nacional, qual Costa, qual Sócrates, qual Coelho, qual Cavaco!
Jorge Jesus é o vilão e a vítima.
O vilão falou com aquele e não falou com o
outro. O vilão é um traste que andava em comércios com o inimigo quando ainda
vivia para cá das muralhas. O vilão foi autista, egoísta, egolátrico, insultou
jogadores e equipa técnica. O vilão nem sequer telefonou ao pobre colega cujo
lugar, pela calada da noite, iria invadir. O Jorge Jesus não traiu o Benfica
mas traiu alguém, a estrutura; o Jorge Jesus resolveu deixar de pôr cerejas no
topo dos bolos benfiquistas; o Jorge Jesus mudou o paradigma profissional dele
mesmo e, indirectamente, o do Benfica; o Jorge Jesus aplicou a sua pessoal
filosofia, montou a sua estratégia e seguiu-a.
Ora bolas! Além das qualidades profissionais
exigiram-lhe qualidades humanas. Não queriam mais nada?
A vítima foi ele igualmente, porque sendo o
treinador mais titulado do Benfica, tendo imposto um futebol sedutor e atacante
que deu brado, tendo conquistado para o Benfica o que não se conquistava ia
para mais de trinta anos, o bi-campeonato, viu-se proibido de entrar nas
instalações, viu a sua figura apagada do retrato do 34º título de campeão do
Benfica. Foi mais uma vítima do estalinismo, quando se julgava que o mundo não
conheceria mais vítimas dessas.
As rancorosas vindictas do futebol metem nojo
às gentes de bem e, hoje por hoje, dos clubes e da generalidade dos cargos
decisórios, é mais do que óbvio que essa gente de bem desertou. Vence o
fanatismo, o oportunismo, o calculismo. E é assim mesmo!
Jorge Jesus, o bipolar. Jorge Jesus, o treinador
visceral e colérico; Jorge Jesus, o homem de negócios calculista e dissimulado.
O futebol, seja como for, ocupa crescentemente
(na próxima época ainda mais) a ordem do dia nacional, suplantando de largo a
política, mesmo em véspera de eleições. Porque será?
A dar gás à supremacia acéfala do futebol sobre
qualquer outro capítulo da vida da polis (salvo a especulação
económico-financeira) está a voga (e a vaga) inesgotável dos comentadores.
Diria eu: dos inúteis comentadores, que a cada momento sobrecarregam de óbvio
os seus comentários, que ganham bom dinheiro para contarem ao adepto aquilo que
ele está careca de saber e de ver.
Dos comentadores irrita-me o médico (nunca me
passaria pela cabeça que um médico, ainda para mais afamado, pudesse ser
estúpido, e mesmo parvo, quando fala de assuntos de fora da sua especialidade),
e porque me custa compreender, insisto, que uma estação televisiva pague (e
pague perfumadamente) a alguém para exibir urbi
et orbi a sua ignorância sobre determinada matéria, que neste caso é
futebol, a matéria de que todos nós julgamos entender, mas a quem a televisão
não paga os dislates que também nós seriamos capazes de debitar.
Irrita-me o nortenho, um tipo inteligente pago
para exibir ao mundo as suas capacidades de boçalidade bimba e de arruaça primária.
Irrita-me o senhor doutor, professor, ou não
sei quê, meio scholar, meio autarca,
que se desfaz em informação privilegiada e em filosofadas que desembocam em nada.
Irrita-me o gordo, irrita-me o careca,
irrita-me o músico, irrita-me o locutor que em duas penadas de paleio
descodifica todas as tácticas.
Irritam-me sobremaneira os advogados, o
desordeiro casca-grossa das barbas patriarcais, sempre pronto a andar à
batatada com quem o contrarie; o da voz abaritonada ao serviço da oratória
operática e verde; o do cego e rubro rancor clubista que alguém acusou injustamente
de ter sido ministro; o da sonolenta e azul irrelevância
burocrático-estrutural-saloia. São esses que à mais pequena provocação da
subjectiva realidade, e ao mais ínfimo pretexto de controvérsia regulamentar,
transferem durante horas o debate futebolístico para a gratuita exibição de
perícias jurídicas.
E o que mais me faz rir e irritar, ao mesmo
tempo, são as longas horas de emissão passadas na antevisão do que irá ser a
jornada do campeonato ou o derby que
se avizinha. Pode vir a ser assim como pode a vir a ser o contrário do assim,
quer dizer, o assado. Se acontecer assim, é porque não acontece assado. Se
acontecer assado é porque não acontece assim. Se acontecer assim, as
consequências são frito; se acontecer assado, as consequências são cozido. Mas
afinal o que é que vai acontecer, assim ou assado?, é o que espero que me digam
os comentadores da antevisão.
Melhor do que isto só as flash-interviews. O jogador acaba de levar cinco, seis, ou sete a
zero e responde invariavelmente “agora o que é preciso é levantar a cabeça e
continuar a trabalhar”.
O futebol ainda é o mais espampanante museu
nacional do analfabetismo atávico.
Sou do tempo saudável em que o futebol era
quase só um jogo de bola (hoje também é um jogo, mas de milhões de dólares) em
que os grandes comentadores e locutores ou não tinham simpatias clubistas
arreigadas e fatais, ou as escondiam por escrúpulo profissional – toda a gente
sabia que o Artur Agostinho era um convicto sportinguista, e toda a gente podia
apreciar-lhe o entusiástico profissionalismo ao gritar os golos do Benfica: um
exemplo entre tantos.
Num quadro de comentadores, sempre que alguma
coisa deixa de ser o que foi num clube é porque foi o paradigma que mudou. O
que conta para a contratação de um treinador é a filosofia de jogo que ele vai
implementar – implementar: outra. A mera táctica passou por tudo e por nada a
ser estratégia. As cerejas a toda a hora se encavalitam no topo de todos os
bolos. E, última invenção para ganhar jogos, e sobretudo campeonatos, a
estrutura…
Em televisão valem evidentemente as imagens
sobre as palavras – evidentemente?, no futebol não sei. Os advogados, os
médicos e os monstros observam as imagens do off-side que todos nós observamos também e que passam no écran uma
centena seguida de vezes, as vezes que forem precisas para que, pela retórica e
pela fundamentação do advogado-comentador que se bate pelo clube que marcou o
golo (off-side), o off-side que toda
a gente viu que era mesmo off-side deixe
de ser off-side; enquanto o off-side cem vezes revisto continua a
ser off-side para o advogado
comentador cujo clube sofreu o golo (off-side). E vice-versa. O mesmo com a mão
– mão na bola ou bola na mão, cem repetições até percebermos o que não vemos,
que a bola bateu na mão, ou que a mão bateu na bola, conforme. O penalty, o
mesmo, cem vezes repetido, o advogado que queria penalty olha para as imagens e
vê o que mais ninguém vê, que o adversário rasteirou o seu homem. O outro
advogado não viu rasteira nenhuma, apenas um contacto sem consequências, porque
o futebol é um jogo de contacto, e o homem adversário fez teatro, e do bom –
pois é, há que contar com a arte de Talma também na bola.
Ora tudo isto – e mais umas botas – prova que
mesmo uma actividade que movimente planetariamente milhões e mais milhões pode
não ser um assunto sério, pode viver do erro, da manigância, do teatro, do
subjectivo, do virtual, da opinião. Da paixão. Se assim não fosse, esses
planetários milhões nunca seriam movimentados.
Gosto de ouvir os comentadores, esses sim, que
jogaram futebol a sério, que treinaram a sério. Esses têm ao menos a decência
de não palpitar publicamente, antever ou vaticinar sobre matérias que não
dominam e de que sabem alguma coisa só por ouvir dizer, porque ninguém lhes
oferece tempo (demasiado) de antena para palpitar sobre a culpa ou a inocência
do Sócrates, para vaticinar sobre candidatos presidenciais ou para antever o
que vai ser da Segurança Social.
Ainda assim, e a despeito de todos os
cambalachos óbvios ou escondidos, apetece-me acreditar que o futebol é (ou pelo menos foi) actividade
mais sã do que a política. Bem sei que no futebol, como na política, o que é
mais decisivo se pode passar longe dos olhos do adepto embrutecido pela sua cor,
esse que se está marimbando para a mudança de paradigma do seu clube (de resto,
sempre assinalado pelos comentadores só a
posteriori), para o movimento de administradores, dactilógrafas, contabilistas, olheiros e
roupeiros que fazem parte da tal estrutura, para a filosofia (neo-platónica ou
tomista) do treinador, para a estratégia empresarial do presidente. O adepto
embrutecido de vermelho, verde ou azul quer ser campeão e ponto final.
Futebol e política? Provar de novo o que está
há muito provado, que política é tudo e que tudo é política, e que o que nos
resta nesta vida é termos que nos haver com a política, digo com os
comentadores, com os advogados e com os outros, os mais perigosos, os
economistas, os da estrutura?
O Jorge Jesus ordinarote, mal alfabetizado,
visceral e calculista até ao tutano; o Marco Silva bom rapazito e educado; o
outro, o basco, de ridícula arrogância imperialista; e mais o resto, a dezena e
meia dos treinadores irrelevantes, são quem dá voltas à cabeça do povaréu, quem
gera muitos dos conflitos graves na via pública, quem mobiliza e conclama para
a rua milhares e milhares, quem dinamiza a economia, a do futebol e a outra,
qualquer outra, ou seja, a mesma, a das roulottes
dos coiratos e das cervejolas, a dos cachecóis, dos bonés, das bandeiras, das
camisolas, das camionetas, dos artefactos incendiários, dos bastões e dos escudos
da polícia.
O futebol parece sobrepor-se à vida mesma por
tanto e tão ruidosamente fazer parte dela. E porque quem sabe de futebol sabe
da vida, e quem sabe da vida sabe de futebol, dos alcatruzes dela, vida, das
mós, das de cima e das de baixo, dos bestiais e das bestas.
Para voltar ao homem do momento. Seis anos
passados, três campeonatos a quem padecia longa fome deles, e mais não sei
quantas taças, levaram finalmente os benfiquistas a olharem para Jorge Jesus
com olhos de ver. De ver que o homem incensado, endeusado (“Amo-te, Jesus!”),
era afinal um badameco que só ganhou o que ganhou porque estava no Benfica –
até pode ser verdade. Ou ainda: ganhou o que ganhou quando podia, tinha a
obrigação, de ter ganho o dobro. Ou mais: que só ganhou o que ganhou por obra
da estrutura abstracta que lhe ofereceu os meios concretos para ele ganhar seis
campeonatos seguidos, todas as taças, ir à final da Champions, ganhar as duas ligas Europa que perdeu.
Quem ganhou tudo o que ganhou o Benfica não foi
afinal Jorge Jesus. Nem em absoluto os jogadores que marcam golos e fazem
defesas, formalidades aliás pouco relevantes. Quem ganhou o que Jorge Jesus
ganhou foi a estrutura, o aparelho burocrático – que se revela estalinista. A
estrutura gloriosa que muda paradigmas. A estrutura excelsa que perfilha
filosofias. A estrutura sublime que adopta estratégias. A estrutura inefável que
é o bolo onde se põem todas as cerejas – pois foi o que Jorge Jesus se limitou
a fazer, pôr três cerejas em cima do grande bolo.
Ou teremos que pensar que em seis anos de
Benfica a Jorge Jesus coube o destino pouco glorioso de ter sido ele mesmo
cereja, ornamento posto sobre o que era realmente essencial, o bolo: a
estrutura, o poder político transfigurador de paradigmas, criador de
filosofias, congeminador de estratégias, aparelho reprodutor de si mesmo?
Perigosa inversão dos valores em jogo,
dir-se-á; ou dos valores do jogo mais simples e mais belo e emocionante que se
inventou, e que assim pode deixar o estatuto de desporto e divertimento para se
afirmar como mero acto de gestão.
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