segunda-feira, 8 de junho de 2015


                 O PARADIGMA, A CEREJA, O BOLO,   

         A ESTRATÉGIA, A FILOSOFIA, A ESTRUTURA

 

         Nas tintas para o programa da coligação, às urtigas com a convenção do PS. O que importa é o futebol. E já nem tanto pelo jogo em si, mais pelos enredos    que circunstancializam o jogo em si, o que não é desporto, o que pode muito bem, e muitas vezes, ser até anti desporto. Ou mero acto de gestão burocrática.
 
 
Claro. Jorge Jesus é o nome. Jorge Jesus é a figura nacional, qual Costa, qual Sócrates, qual Coelho, qual Cavaco!
Jorge Jesus é o vilão e a vítima.
 
O vilão falou com aquele e não falou com o outro. O vilão é um traste que andava em comércios com o inimigo quando ainda vivia para cá das muralhas. O vilão foi autista, egoísta, egolátrico, insultou jogadores e equipa técnica. O vilão nem sequer telefonou ao pobre colega cujo lugar, pela calada da noite, iria invadir. O Jorge Jesus não traiu o Benfica mas traiu alguém, a estrutura; o Jorge Jesus resolveu deixar de pôr cerejas no topo dos bolos benfiquistas; o Jorge Jesus mudou o paradigma profissional dele mesmo e, indirectamente, o do Benfica; o Jorge Jesus aplicou a sua pessoal filosofia, montou a sua estratégia e seguiu-a.
Ora bolas! Além das qualidades profissionais exigiram-lhe qualidades humanas. Não queriam mais nada?
A vítima foi ele igualmente, porque sendo o treinador mais titulado do Benfica, tendo imposto um futebol sedutor e atacante que deu brado, tendo conquistado para o Benfica o que não se conquistava ia para mais de trinta anos, o bi-campeonato, viu-se proibido de entrar nas instalações, viu a sua figura apagada do retrato do 34º título de campeão do Benfica. Foi mais uma vítima do estalinismo, quando se julgava que o mundo não conheceria mais vítimas dessas.
As rancorosas vindictas do futebol metem nojo às gentes de bem e, hoje por hoje, dos clubes e da generalidade dos cargos decisórios, é mais do que óbvio que essa gente de bem desertou. Vence o fanatismo, o oportunismo, o calculismo. E é assim mesmo!
Jorge Jesus, o bipolar. Jorge Jesus, o treinador visceral e colérico; Jorge Jesus, o homem de negócios calculista e dissimulado.
 
 
O futebol, seja como for, ocupa crescentemente (na próxima época ainda mais) a ordem do dia nacional, suplantando de largo a política, mesmo em véspera de eleições. Porque será?
A dar gás à supremacia acéfala do futebol sobre qualquer outro capítulo da vida da polis (salvo a especulação económico-financeira) está a voga (e a vaga) inesgotável dos comentadores. Diria eu: dos inúteis comentadores, que a cada momento sobrecarregam de óbvio os seus comentários, que ganham bom dinheiro para contarem ao adepto aquilo que ele está careca de saber e de ver.
 
 
Dos comentadores irrita-me o médico (nunca me passaria pela cabeça que um médico, ainda para mais afamado, pudesse ser estúpido, e mesmo parvo, quando fala de assuntos de fora da sua especialidade), e porque me custa compreender, insisto, que uma estação televisiva pague (e pague perfumadamente) a alguém para exibir urbi et orbi a sua ignorância sobre determinada matéria, que neste caso é futebol, a matéria de que todos nós julgamos entender, mas a quem a televisão não paga os dislates que também nós seriamos capazes de debitar.
Irrita-me o nortenho, um tipo inteligente pago para exibir ao mundo as suas capacidades de boçalidade bimba e de arruaça primária.
Irrita-me o senhor doutor, professor, ou não sei quê, meio scholar, meio autarca, que se desfaz em informação privilegiada e em filosofadas que desembocam em nada.
Irrita-me o gordo, irrita-me o careca, irrita-me o músico, irrita-me o locutor que em duas penadas de paleio descodifica todas as tácticas.
 
                                                              
 
Irritam-me sobremaneira os advogados, o desordeiro casca-grossa das barbas patriarcais, sempre pronto a andar à batatada com quem o contrarie; o da voz abaritonada ao serviço da oratória operática e verde; o do cego e rubro rancor clubista que alguém acusou injustamente de ter sido ministro; o da sonolenta e azul irrelevância burocrático-estrutural-saloia. São esses que à mais pequena provocação da subjectiva realidade, e ao mais ínfimo pretexto de controvérsia regulamentar, transferem durante horas o debate futebolístico para a gratuita exibição de perícias jurídicas.
 
 
E o que mais me faz rir e irritar, ao mesmo tempo, são as longas horas de emissão passadas na antevisão do que irá ser a jornada do campeonato ou o derby que se avizinha. Pode vir a ser assim como pode a vir a ser o contrário do assim, quer dizer, o assado. Se acontecer assim, é porque não acontece assado. Se acontecer assado é porque não acontece assim. Se acontecer assim, as consequências são frito; se acontecer assado, as consequências são cozido. Mas afinal o que é que vai acontecer, assim ou assado?, é o que espero que me digam os comentadores da antevisão.
 
                                                                 
 
Melhor do que isto só as flash-interviews. O jogador acaba de levar cinco, seis, ou sete a zero e responde invariavelmente “agora o que é preciso é levantar a cabeça e continuar a trabalhar”.
O futebol ainda é o mais espampanante museu nacional do analfabetismo atávico.
Sou do tempo saudável em que o futebol era quase só um jogo de bola (hoje também é um jogo, mas de milhões de dólares) em que os grandes comentadores e locutores ou não tinham simpatias clubistas arreigadas e fatais, ou as escondiam por escrúpulo profissional – toda a gente sabia que o Artur Agostinho era um convicto sportinguista, e toda a gente podia apreciar-lhe o entusiástico profissionalismo ao gritar os golos do Benfica: um exemplo entre tantos.
 
 
Num quadro de comentadores, sempre que alguma coisa deixa de ser o que foi num clube é porque foi o paradigma que mudou. O que conta para a contratação de um treinador é a filosofia de jogo que ele vai implementar – implementar: outra. A mera táctica passou por tudo e por nada a ser estratégia. As cerejas a toda a hora se encavalitam no topo de todos os bolos. E, última invenção para ganhar jogos, e sobretudo campeonatos, a estrutura…
Em televisão valem evidentemente as imagens sobre as palavras – evidentemente?, no futebol não sei. Os advogados, os médicos e os monstros observam as imagens do off-side que todos nós observamos também e que passam no écran uma centena seguida de vezes, as vezes que forem precisas para que, pela retórica e pela fundamentação do advogado-comentador que se bate pelo clube que marcou o golo (off-side), o off-side que toda a gente viu que era mesmo off-side deixe de ser off-side; enquanto o off-side cem vezes revisto continua a ser off-side para o advogado comentador cujo clube sofreu o golo (off-side). E vice-versa. O mesmo com a mão – mão na bola ou bola na mão, cem repetições até percebermos o que não vemos, que a bola bateu na mão, ou que a mão bateu na bola, conforme. O penalty, o mesmo, cem vezes repetido, o advogado que queria penalty olha para as imagens e vê o que mais ninguém vê, que o adversário rasteirou o seu homem. O outro advogado não viu rasteira nenhuma, apenas um contacto sem consequências, porque o futebol é um jogo de contacto, e o homem adversário fez teatro, e do bom – pois é, há que contar com a arte de Talma também na bola.
 
 
Ora tudo isto – e mais umas botas – prova que mesmo uma actividade que movimente planetariamente milhões e mais milhões pode não ser um assunto sério, pode viver do erro, da manigância, do teatro, do subjectivo, do virtual, da opinião. Da paixão. Se assim não fosse, esses planetários milhões nunca seriam movimentados.
Gosto de ouvir os comentadores, esses sim, que jogaram futebol a sério, que treinaram a sério. Esses têm ao menos a decência de não palpitar publicamente, antever ou vaticinar sobre matérias que não dominam e de que sabem alguma coisa só por ouvir dizer, porque ninguém lhes oferece tempo (demasiado) de antena para palpitar sobre a culpa ou a inocência do Sócrates, para vaticinar sobre candidatos presidenciais ou para antever o que vai ser da Segurança Social.
Ainda assim, e a despeito de todos os cambalachos óbvios ou escondidos, apetece-me acreditar que o futebol é (ou pelo menos foi) actividade mais sã do que a política. Bem sei que no futebol, como na política, o que é mais decisivo se pode passar longe dos olhos do adepto embrutecido pela sua cor, esse que se está marimbando para a mudança de paradigma do seu clube (de resto, sempre assinalado pelos comentadores só a posteriori), para o movimento de administradores, dactilógrafas, contabilistas, olheiros e roupeiros que fazem parte da tal estrutura, para a filosofia (neo-platónica ou tomista) do treinador, para a estratégia empresarial do presidente. O adepto embrutecido de vermelho, verde ou azul quer ser campeão e ponto final.
Futebol e política? Provar de novo o que está há muito provado, que política é tudo e que tudo é política, e que o que nos resta nesta vida é termos que nos haver com a política, digo com os comentadores, com os advogados e com os outros, os mais perigosos, os economistas, os da estrutura?
 
                                                                       
 
O Jorge Jesus ordinarote, mal alfabetizado, visceral e calculista até ao tutano; o Marco Silva bom rapazito e educado; o outro, o basco, de ridícula arrogância imperialista; e mais o resto, a dezena e meia dos treinadores irrelevantes, são quem dá voltas à cabeça do povaréu, quem gera muitos dos conflitos graves na via pública, quem mobiliza e conclama para a rua milhares e milhares, quem dinamiza a economia, a do futebol e a outra, qualquer outra, ou seja, a mesma, a das roulottes dos coiratos e das cervejolas, a dos cachecóis, dos bonés, das bandeiras, das camisolas, das camionetas, dos artefactos incendiários, dos bastões e dos escudos da polícia.
O futebol parece sobrepor-se à vida mesma por tanto e tão ruidosamente fazer parte dela. E porque quem sabe de futebol sabe da vida, e quem sabe da vida sabe de futebol, dos alcatruzes dela, vida, das mós, das de cima e das de baixo, dos bestiais e das bestas.
 
 
Para voltar ao homem do momento. Seis anos passados, três campeonatos a quem padecia longa fome deles, e mais não sei quantas taças, levaram finalmente os benfiquistas a olharem para Jorge Jesus com olhos de ver. De ver que o homem incensado, endeusado (“Amo-te, Jesus!”), era afinal um badameco que só ganhou o que ganhou porque estava no Benfica – até pode ser verdade. Ou ainda: ganhou o que ganhou quando podia, tinha a obrigação, de ter ganho o dobro. Ou mais: que só ganhou o que ganhou por obra da estrutura abstracta que lhe ofereceu os meios concretos para ele ganhar seis campeonatos seguidos, todas as taças, ir à final da Champions, ganhar as duas ligas Europa que perdeu.
 
 
Quem ganhou tudo o que ganhou o Benfica não foi afinal Jorge Jesus. Nem em absoluto os jogadores que marcam golos e fazem defesas, formalidades aliás pouco relevantes. Quem ganhou o que Jorge Jesus ganhou foi a estrutura, o aparelho burocrático – que se revela estalinista. A estrutura gloriosa que muda paradigmas. A estrutura excelsa que perfilha filosofias. A estrutura sublime que adopta estratégias. A estrutura inefável que é o bolo onde se põem todas as cerejas – pois foi o que Jorge Jesus se limitou a fazer, pôr três cerejas em cima do grande bolo.
 
 
Ou teremos que pensar que em seis anos de Benfica a Jorge Jesus coube o destino pouco glorioso de ter sido ele mesmo cereja, ornamento posto sobre o que era realmente essencial, o bolo: a estrutura, o poder político transfigurador de paradigmas, criador de filosofias, congeminador de estratégias, aparelho reprodutor de si mesmo?
Perigosa inversão dos valores em jogo, dir-se-á; ou dos valores do jogo mais simples e mais belo e emocionante que se inventou, e que assim pode deixar o estatuto de desporto e divertimento para se afirmar como mero acto de gestão.




 

 

Sem comentários:

Enviar um comentário