segunda-feira, 17 de agosto de 2015


                       MYSTÈRIA


    
    Hades, deus das profundezas, das negruras e dos infernos, era um deus sem templo e sem culto. Representava o medo do invisível, do indizível, estava à margem do concerto dos deuses olímpicos.
Hades era a divindade contaminante. Quem o pretendesse cultuar deveria fazê-lo de noite, em local privado.
 
                                                                             
 
Daqui se seguem os mystèria, os mistérios, o secretismo protagonizado pelos iniciados (mystes), obrigados a guardar religioso silêncio sobre os rituais.
 
 
Há quem diga que este culto secreto, iniciático, não era exclusivo de uns quantos selecionados - isso mesmo, iniciados. Há quem diga que todo o cidadão podia ser iniciado nos rituais de Hades. Ainda assim, os admitidos ao secretismo eram normalmente os que, por uma e outra razão, se achavam excluídos dos cultos olímpicos, caso dos escravos, caso dos estrangeiros.
Os mistérios eram experiência espiritual mais profunda, porque mais radical, porque mais difusa, do que o culto convencional a um dos deuses olímpicos.
 
 
Pode ser que no culto de Hades fossem utlizadas drogas, alucinogénios a alterar os estados de consciência. Isto, possivelmente, pela reminiscência de alguma remota religiosidade tradicional em que era praticado o exorcismo da morte através de uma perda de peso corpóreo, levitação, transcendência, imaterialidade, imortalidade.
 
 
Os mais historicamente falados dos mistérios eram os de Elêusis. E o certo é que o secretismo dos mistérios de Elêusis se conservou pelos séculos dos séculos e os historiadores sempre andaram às aranhas por falta de informação.
 
 
Sabe-se (ou julga saber-se) que nos cerimoniais alternavam como divindades protagonistas Deméter e Perséfone – a morte e a ressurreição presentes na sucessão cíclica vegetal; e provavelmente uma simbólica da esperança de salvação e exclusão da lei da morte enquanto finalidade da experiência humana.
 
 
O que se via e o que se fazia na celebração dos mistérios culminava numa sequência de visões de sexo, morte, transfiguração e ressurreição. Ao que se sabe, a ideia era provocar o terror dos congregados. Era um cerimonial noturno, passado em cenários aterradores, grutas e cavernas iluminadas por archotes. E depois do terror vinha a epifania da salvação, o novo nascimento (como no cristianismo!), a purificação, katharsis.
 
 
Platão fala disto. A katharsis era a preparação da alma para se manter separada do corpo, para se recolher e se fechar sobre si mesma, à margem do elemento físico, aí ficando, solitária, ao longo da vida presente como da vida futura, liberta do corpo, justamente no estado a que se costuma chamar de morte.
 
 
Aos mistérios cabia a alternativa radical à religiosidade olímpica aceite e convencional da polis.
 
                                                                  
 
Ao iniciado nos mistérios é sugerido um trem de vida bem diferente do do cidadão comum. Sujeita-se a obrigações suplementares e tem de se haver com a proibição de práticas que são corriqueiras para os não-iniciados. Comer carne – a proibição mais sonante. No resto há o zelo maior, a observância ritual mais aguda, a disciplina rigorosa enquanto membro de uma seita mistérica.
 
 
 
Afinal, práticas (ou não-práticas) que visam o objetivo primordial: o estado de pureza. Um estado de pureza que distingue o iniciado do não-iniciado, do profano que vive na contaminação. E aqui reside o fator de exclusão que seleciona e separa o iniciado que escolheu o caminho da purificação e da salvação do vulgo ímpio, da cidade triunfante que segrega os fracos e os marginais, e cujos valores são negados pelo mundo iniciático.
Porque a cidade recusa o mundo dos iniciados, a minoria, esses sectários praticantes de ritos estranhos à vida da polis. Porquê? Por causa do carácter violento, belicoso, homicida mesmo, dessa vida da polis e que integra o regime de vida da cidade, a politização (condição de cidadania derivada da polis, a política, todavia sem essa conotação precisa), ao excluir (senão a oprimir) grupos sociais, ao promover a stasis e o pòlemos, as guerras, em suma.
A cidade é também uma memória heroica de incontáveis violências a invadir mesmo a experiência religiosa.
 
 
A cidade é a crueldade do sacrifício de animais, o derramamento de sangue - com os iniciados dos mistérios a lerem como homicídio, sem mais nem menos, a morte sacrificial dos animais, e na convicção de que a violência, uma vez desencadeada, e ainda que oficializada, não conhece regras nem se restringe à sua carga simbólica.
 
 
O iniciado de Elêusis tem uma noção acerada de culpa ancestral que marcou a humanidade inteira.
 
                                                              
 
A culpa ancestral advém de um assassínio primordial e originário cometido pelos titãs quando capturaram, mataram, cozeram num caldeirão e devoraram um deus-criança, Dioniso. Zeus enviou então o raio que desfez em cinzas a raça dos titãs, mas foi dessas cinzas que nasceram os primeiros humanos, marcados por conseguinte logo à nascença pela contaminação da culpa, e sendo que essa original culpa se inscreve no cadastro místico de cada nova existência, de cada indivíduo acabado de nascer.
 
 
A violência social, a dor, a opressão sofrida pelos homens, bem como a angústia da espera da morte, não é outra coisa senão uma forma de castigo dessa culpa original.
 
 
(Quando nos séculos a seguir uma nova mística, uma nova cultura, uma nova religião surgiram, o cristianismo, a culpa original lá estava, se bem que sob a designação vulgar de pecado, a ser lavada e resgatada pelo indivíduo puríssimo que assumisse sobre si toda a culpa do género humano e por ela se sacrificasse. Jesus Cristo.)
 
 
A certeza que ficou dos mistérios de Elêusis foi a representação esotérica da morte, que concluía com um hino a Deméter:

       Feliz entre os homens que vivem na terra
       é aquele que foi admitido ao ritual!
       Mas quem não é iniciado nos mistérios,
       quem deles é excluído,
       jamais terá idêntico destino
       nem depois da morte,
       lá em baixo, nas tristes trevas.

 

 

1 comentário:

  1. Boa noite Sr Joel Costa. Sou seu, mais ou menos atento leitor. No passado, a partir de 1995, fui um dos seus fieis auditores. Hoje leio este seu blog e na minha voz interior, seja isso o quer que seja, é a sua voz que eu escuto.
    Ainda não li nenhum dos seus livros, mas eles figuram na minha lista de leituras, mas o Senhor é um homem de ouvir em alta voz. É por isso que lhe proponho que em vez de um blog, ou junto com ele, criei um programa áudio . Peço-lhe que me desculpe por estar a dizer o que eu gostaria de ter si. Leio atentivamente o que escreve e gosto, mas eduquei-me a ouvir as suas opiniões de viva voz.

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