MYSTÈRIA
Hades, deus das profundezas, das negruras e
dos infernos, era um deus sem templo e sem culto. Representava o medo do
invisível, do indizível, estava à margem do concerto dos deuses olímpicos.
Hades era a divindade contaminante. Quem o
pretendesse cultuar deveria fazê-lo de noite, em local privado.
Daqui se seguem os mystèria, os mistérios, o secretismo protagonizado pelos iniciados
(mystes), obrigados a guardar
religioso silêncio sobre os rituais.
Há quem diga que este culto secreto,
iniciático, não era exclusivo de uns quantos selecionados - isso mesmo,
iniciados. Há quem diga que todo o cidadão podia ser iniciado nos rituais de
Hades. Ainda assim, os admitidos ao secretismo eram normalmente os que, por uma
e outra razão, se achavam excluídos dos cultos olímpicos, caso dos escravos,
caso dos estrangeiros.
Os mistérios eram experiência espiritual
mais profunda, porque mais radical, porque mais difusa, do que o culto
convencional a um dos deuses olímpicos.
Pode ser que no culto de Hades fossem
utlizadas drogas, alucinogénios a alterar os estados de consciência. Isto,
possivelmente, pela reminiscência de alguma remota religiosidade tradicional em
que era praticado o exorcismo da morte através de uma perda de peso corpóreo,
levitação, transcendência, imaterialidade, imortalidade.
Os mais historicamente falados dos
mistérios eram os de Elêusis. E o certo é que o secretismo dos mistérios de
Elêusis se conservou pelos séculos dos séculos e os historiadores sempre
andaram às aranhas por falta de informação.
Sabe-se (ou julga saber-se) que nos
cerimoniais alternavam como divindades protagonistas Deméter e Perséfone – a morte
e a ressurreição presentes na sucessão cíclica vegetal; e provavelmente uma
simbólica da esperança de salvação e exclusão da lei da morte enquanto
finalidade da experiência humana.
O que se via e o que se fazia na celebração
dos mistérios culminava numa sequência de visões de sexo, morte, transfiguração
e ressurreição. Ao que se sabe, a ideia era provocar o terror dos congregados.
Era um cerimonial noturno, passado em cenários aterradores, grutas e cavernas
iluminadas por archotes. E depois do terror vinha a epifania da salvação, o
novo nascimento (como no cristianismo!), a purificação, katharsis.
Platão fala disto. A katharsis era a preparação da alma para se manter separada do
corpo, para se recolher e se fechar sobre si mesma, à margem do elemento
físico, aí ficando, solitária, ao longo da vida presente como da vida futura,
liberta do corpo, justamente no estado a que se costuma chamar de morte.
Aos mistérios cabia a alternativa radical à
religiosidade olímpica aceite e convencional da polis.
Ao iniciado nos mistérios é sugerido um
trem de vida bem diferente do do cidadão comum. Sujeita-se a obrigações suplementares
e tem de se haver com a proibição de práticas que são corriqueiras para os
não-iniciados. Comer carne – a proibição mais sonante. No resto há o zelo
maior, a observância ritual mais aguda, a disciplina rigorosa enquanto membro
de uma seita mistérica.
Afinal, práticas (ou não-práticas) que
visam o objetivo primordial: o estado de pureza. Um estado de pureza que
distingue o iniciado do não-iniciado, do profano que vive na contaminação. E
aqui reside o fator de exclusão que seleciona e separa o iniciado que escolheu
o caminho da purificação e da salvação do vulgo ímpio, da cidade triunfante que
segrega os fracos e os marginais, e cujos valores são negados pelo mundo
iniciático.
Porque a cidade recusa o mundo dos
iniciados, a minoria, esses sectários praticantes de ritos estranhos à vida da
polis. Porquê? Por causa do carácter violento, belicoso, homicida mesmo, dessa
vida da polis e que integra o regime de vida da cidade, a politização (condição
de cidadania derivada da polis, a política, todavia sem essa conotação
precisa), ao excluir (senão a oprimir) grupos sociais, ao promover a stasis e o pòlemos, as guerras, em suma.
A cidade é também uma memória heroica de
incontáveis violências a invadir mesmo a experiência religiosa.
A cidade é a crueldade do sacrifício de
animais, o derramamento de sangue - com os iniciados dos mistérios a lerem como
homicídio, sem mais nem menos, a morte sacrificial dos animais, e na convicção
de que a violência, uma vez desencadeada, e ainda que oficializada, não conhece
regras nem se restringe à sua carga simbólica.
O iniciado de Elêusis tem uma noção acerada
de culpa ancestral que marcou a humanidade inteira.
A culpa ancestral advém de um assassínio
primordial e originário cometido pelos titãs quando capturaram, mataram,
cozeram num caldeirão e devoraram um deus-criança, Dioniso. Zeus enviou então o
raio que desfez em cinzas a raça dos titãs, mas foi dessas cinzas que nasceram
os primeiros humanos, marcados por conseguinte logo à nascença pela
contaminação da culpa, e sendo que essa original culpa se inscreve no cadastro
místico de cada nova existência, de cada indivíduo acabado de nascer.
A violência social, a dor, a opressão
sofrida pelos homens, bem como a angústia da espera da morte, não é outra coisa
senão uma forma de castigo dessa culpa original.
(Quando nos séculos a seguir uma nova
mística, uma nova cultura, uma nova religião surgiram, o cristianismo, a culpa
original lá estava, se bem que sob a designação vulgar de pecado, a ser lavada
e resgatada pelo indivíduo puríssimo que assumisse sobre si toda a culpa do
género humano e por ela se sacrificasse. Jesus Cristo.)
A certeza que ficou dos mistérios de
Elêusis foi a representação esotérica da morte, que concluía com um hino a
Deméter:
Feliz
entre os homens que vivem na terra
é
aquele que foi admitido ao ritual!
Mas
quem não é iniciado nos mistérios,
quem
deles é excluído,
jamais
terá idêntico destino
nem
depois da morte,
lá
em baixo, nas tristes trevas.
Boa noite Sr Joel Costa. Sou seu, mais ou menos atento leitor. No passado, a partir de 1995, fui um dos seus fieis auditores. Hoje leio este seu blog e na minha voz interior, seja isso o quer que seja, é a sua voz que eu escuto.
ResponderEliminarAinda não li nenhum dos seus livros, mas eles figuram na minha lista de leituras, mas o Senhor é um homem de ouvir em alta voz. É por isso que lhe proponho que em vez de um blog, ou junto com ele, criei um programa áudio . Peço-lhe que me desculpe por estar a dizer o que eu gostaria de ter si. Leio atentivamente o que escreve e gosto, mas eduquei-me a ouvir as suas opiniões de viva voz.