HIERÒS
À
porta estavam os hóspedes que pretendiam visitar o velho sábio Heraclito.
Heraclito, que se aquecia junto do fogo da cozinha, viu os hóspedes na soleira
da porta, fez-lhes um gesto amistoso e disse-lhes:
- Venham, não hesitem,
os deuses também estão aqui.
A lareira, pois
claro, era consagrada à deusa Héstia, protetora da prosperidade e da
continuidade da vida de família, e por ela todos recém-nascidos eram levados a
dar uma volta à lareira, significando a entrada no neófito no espaço doméstico.
A religião grega
não precisava de dogmas. Tão pouco carecia de uma igreja organizada e
hierarquizada. Porque não assentava a sua razão de ser em nenhuma revelação que
os deuses tivessem concedido aos homens, e nem havia profeta fundador. E assim
se distinguia das grandes religiões mediterrânicas e monoteístas. Não havia um
livro sagrado. Não havia sistema teológico a respeitar.
E se não havia
livro, nem sistema, nem hierarquia, eram desnecessários os intérpretes, quer
dizer, a casta sacerdotal permanente, profissionalizada. Essas funções eram
abertas a todo o cidadão, com carácter casuístico e transitório. Assim sendo,
na falta de dogmas de fé impostos e rigorosamente vigiados, não havia quem
condenar por impiedade ou heresia.
Outro dado
inexistente no mundo do sagrado dos antigos gregos era o conceito de um pecado
original que obrigasse a purificação ou salvação. Todo o homem grego era
originalmente puro e achava-se em perfeitas condições morais para qualquer
função de carácter sagrado.
Por ser assim, não
há muita propriedade em falar-se de religião grega no mesmo sentido em que a
designação seja possível de aplicar numa religião monoteísta. Nem há (ou nem
havia) palavra grega semanticamente equiparável à palavra religião. Há quem
mencione uma, aproximativa, eusèbeia.
Ou outra, therapeia, a englobar o
sentido dos cuidados a que os deuses tinham direito.
Fé era termo
desconhecido. Respeito, culto, ritual e honra à divindade, nomizein, tous, theous, isso sim. O que estava longe de obrigar à
crença na existência dessa divindade.
Que os deuses
tinham o poder de castigar as culpas dos homens, sim senhor, era ponto assente,
indiscutível. Os deuses podiam com a maior das divinas facilidades reduzir o
tempo de existência dos homens, punição aliás extensível à descendência deles.
Toda a mundividência cultural grega do século V se liga ao temor dos deuses,
embora Epicuro estipulasse que uma das capitais missões da filosofia ao
restituir a serenidade à vida humana fosse libertar os homens do medo de um
castigo divino.
Pisístrato, tirano
de Atenas, segundo conta Heródoto, disfarçou uma rapariga com os trajos e
ornamentos tradicionalmente atribuídos à deusa Atena, meteu-a num carro e
mandou-a à Acrópole, precedida de arautos a intimar o povo a receber o tirano,
fazendo crer que o tirano regressara à cidade pela mão mesma da deusa protetora
da polis. E o estratagema deu um resultadão. O que levou Heródoto a troçar da
ingenuidade dos atenienses, considerados os mais espertos, os mais avisados e
os mais céticos quanto à néscia credulidade, que era qualidade mais própria dos
bárbaros.
A inauguração do hieròs, a noção do sagrado na cultura
grega, pode ter acontecido por uma qualquer sensação da existência em certos
fenómenos e em certos lugares de energias também vulgarmente chamadas de
manifestação de poderes sobrenaturais, num ou noutro concreto lugar, uma
quinta, uma floresta, a montanha, a tempestade, o raio. E isso relacionado com
desastres naturais ou mortes.
Mas o hieròs, que quer dizer “sagrado”, também
quer dizer “forte”, e os lugares onde se assinalavam misteriosas e
incompreensíveis manifestações da natureza seriam apontados como lugares
fortes, e talvez por isso territorialmente delimitados e posteriormente
consagrados ao culto dos poderes incompreensíveis, os futuros santuários
dedicados às várias divindades.
Na velha Grécia,
contudo, o sagrado nunca foi sinónimo de tabu, e a noção de sacralidade local
não prescindia do coletivo, do convívio entre os homens. Havia o respeito pelo
sagrado, não resta disso a mínima dúvida, mas sem implicar temor – e ainda
menos terror, como era o caso de outras culturas.
Sagrado era tudo o
que dimanava dos poderes inexplicáveis e incontroláveis, e por isso olhados
como sobrenaturais e interpretados como desígnios divinos. E sagrada era a
ordem da natureza, as estações, as colheitas, o dia, a noite, a sucessão
regular das gerações humanas, e sendo o sagrado a conceção dos poderes que de
forma benéfica governavam a tal ordem natural das coisas.
Na forma maligna do
sagrado, a ordem natural manifestava-se destrutivamente por meio de
tempestades, de doenças, da morte – a mais perturbante das doenças entre os
antigos gregos, a que escapava a toda a razão, era a epilepsia.
O ritual
propiciatório, individual ou coletivo que fosse, consubstanciava-se numa oferta
votiva reforçada pela oração. A oferta votiva consistia em dádivas diversas,
libações, levantamento de edifícios públicos consagrados ao culto. A maior das
dádivas, porém, era de tipo alimentar, o sacrifício de animais a simbolizar a renúncia
humana a uma parte dos mais valiosos meios de subsistência de que podia dispor.
Pela Ilíada sabe-se que os gregos
escravizaram a filha de oficiante de Apolo, uma rapariga desde o nascimento
consagrada aos deuses e por isso parte do património do deus. Castigados.
Édipo, outro caso:
mata o pai, deita-se com a mãe. Célon é morto pela família Alcmeónidas ao
refugiar-se no lugar sagrado que era o templo de Atena.
Nestes e em casos
semelhantes, a comunidade declara miasma,
contaminação. Os homens invadiram os espaços sagrados e a vingança divina (a
pestilência) não tardará a recair sobre os culpados que violaram os limites da
ordem moral, produzindo a culpa. Agamémnon era culpado e a vingança divina
exerceu-se sobre os exércitos gregos. Édipo era culpado e a pestilência invadiu
a cidade e ele foi expulso e os deuses obrigaram-no a errar, cego, pelo mundo.
A geração trágica dos Labdácidas e dos Átridas foi contaminada.
Ano após ano a
comunidade escolhia ritualmente um dos seus membros tocado por deformidade
física ou mental e acompanhava-o em procissão até às portas da cidade, assim
expulsando com ele a contaminação eventualmente existente na cidade.
O único, o indivíduo a imolar, que
pelo sacrifício paga as culpas e os pecados da sociedade… quando é que nós
lemos e acreditámos nisto, ainda que seja parte de uma cultura posterior à
grega?
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