segunda-feira, 10 de agosto de 2015


                              HIERÒS

                                                                                       

                À porta estavam os hóspedes que pretendiam visitar o velho sábio Heraclito. Heraclito, que se aquecia junto do fogo da cozinha, viu os hóspedes na soleira da porta, fez-lhes um gesto amistoso e disse-lhes:
        - Venham, não hesitem, os deuses também estão aqui.
        A lareira, pois claro, era consagrada à deusa Héstia, protetora da prosperidade e da continuidade da vida de família, e por ela todos recém-nascidos eram levados a dar uma volta à lareira, significando a entrada no neófito no espaço doméstico.
 
 
        A religião grega não precisava de dogmas. Tão pouco carecia de uma igreja organizada e hierarquizada. Porque não assentava a sua razão de ser em nenhuma revelação que os deuses tivessem concedido aos homens, e nem havia profeta fundador. E assim se distinguia das grandes religiões mediterrânicas e monoteístas. Não havia um livro sagrado. Não havia sistema teológico a respeitar.
 
                                                         
 
        E se não havia livro, nem sistema, nem hierarquia, eram desnecessários os intérpretes, quer dizer, a casta sacerdotal permanente, profissionalizada. Essas funções eram abertas a todo o cidadão, com carácter casuístico e transitório. Assim sendo, na falta de dogmas de fé impostos e rigorosamente vigiados, não havia quem condenar por impiedade ou heresia.
 
 
        Outro dado inexistente no mundo do sagrado dos antigos gregos era o conceito de um pecado original que obrigasse a purificação ou salvação. Todo o homem grego era originalmente puro e achava-se em perfeitas condições morais para qualquer função de carácter sagrado.
 
 
        Por ser assim, não há muita propriedade em falar-se de religião grega no mesmo sentido em que a designação seja possível de aplicar numa religião monoteísta. Nem há (ou nem havia) palavra grega semanticamente equiparável à palavra religião. Há quem mencione uma, aproximativa, eusèbeia. Ou outra, therapeia, a englobar o sentido dos cuidados a que os deuses tinham direito.
 
 
        Fé era termo desconhecido. Respeito, culto, ritual e honra à divindade, nomizein, tous, theous, isso sim. O que estava longe de obrigar à crença na existência dessa divindade.
        Que os deuses tinham o poder de castigar as culpas dos homens, sim senhor, era ponto assente, indiscutível. Os deuses podiam com a maior das divinas facilidades reduzir o tempo de existência dos homens, punição aliás extensível à descendência deles. Toda a mundividência cultural grega do século V se liga ao temor dos deuses, embora Epicuro estipulasse que uma das capitais missões da filosofia ao restituir a serenidade à vida humana fosse libertar os homens do medo de um castigo divino.
 
 
        Pisístrato, tirano de Atenas, segundo conta Heródoto, disfarçou uma rapariga com os trajos e ornamentos tradicionalmente atribuídos à deusa Atena, meteu-a num carro e mandou-a à Acrópole, precedida de arautos a intimar o povo a receber o tirano, fazendo crer que o tirano regressara à cidade pela mão mesma da deusa protetora da polis. E o estratagema deu um resultadão. O que levou Heródoto a troçar da ingenuidade dos atenienses, considerados os mais espertos, os mais avisados e os mais céticos quanto à néscia credulidade, que era qualidade mais própria dos bárbaros.
 
 
        A inauguração do hieròs, a noção do sagrado na cultura grega, pode ter acontecido por uma qualquer sensação da existência em certos fenómenos e em certos lugares de energias também vulgarmente chamadas de manifestação de poderes sobrenaturais, num ou noutro concreto lugar, uma quinta, uma floresta, a montanha, a tempestade, o raio. E isso relacionado com desastres naturais ou mortes.
 
 
        Mas o hieròs, que quer dizer “sagrado”, também quer dizer “forte”, e os lugares onde se assinalavam misteriosas e incompreensíveis manifestações da natureza seriam apontados como lugares fortes, e talvez por isso territorialmente delimitados e posteriormente consagrados ao culto dos poderes incompreensíveis, os futuros santuários dedicados às várias divindades.
        Na velha Grécia, contudo, o sagrado nunca foi sinónimo de tabu, e a noção de sacralidade local não prescindia do coletivo, do convívio entre os homens. Havia o respeito pelo sagrado, não resta disso a mínima dúvida, mas sem implicar temor – e ainda menos terror, como era o caso de outras culturas.
 
                                                      
 
        Sagrado era tudo o que dimanava dos poderes inexplicáveis e incontroláveis, e por isso olhados como sobrenaturais e interpretados como desígnios divinos. E sagrada era a ordem da natureza, as estações, as colheitas, o dia, a noite, a sucessão regular das gerações humanas, e sendo o sagrado a conceção dos poderes que de forma benéfica governavam a tal ordem natural das coisas.
 
 
        Na forma maligna do sagrado, a ordem natural manifestava-se destrutivamente por meio de tempestades, de doenças, da morte – a mais perturbante das doenças entre os antigos gregos, a que escapava a toda a razão, era a epilepsia.
        O ritual propiciatório, individual ou coletivo que fosse, consubstanciava-se numa oferta votiva reforçada pela oração. A oferta votiva consistia em dádivas diversas, libações, levantamento de edifícios públicos consagrados ao culto. A maior das dádivas, porém, era de tipo alimentar, o sacrifício de animais a simbolizar a renúncia humana a uma parte dos mais valiosos meios de subsistência de que podia dispor.
 
 
        Pela Ilíada sabe-se que os gregos escravizaram a filha de oficiante de Apolo, uma rapariga desde o nascimento consagrada aos deuses e por isso parte do património do deus. Castigados.
        Édipo, outro caso: mata o pai, deita-se com a mãe. Célon é morto pela família Alcmeónidas ao refugiar-se no lugar sagrado que era o templo de Atena.
 
                                                                                              
 
        Nestes e em casos semelhantes, a comunidade declara miasma, contaminação. Os homens invadiram os espaços sagrados e a vingança divina (a pestilência) não tardará a recair sobre os culpados que violaram os limites da ordem moral, produzindo a culpa. Agamémnon era culpado e a vingança divina exerceu-se sobre os exércitos gregos. Édipo era culpado e a pestilência invadiu a cidade e ele foi expulso e os deuses obrigaram-no a errar, cego, pelo mundo. A geração trágica dos Labdácidas e dos Átridas foi contaminada.
 
        Ano após ano a comunidade escolhia ritualmente um dos seus membros tocado por deformidade física ou mental e acompanhava-o em procissão até às portas da cidade, assim expulsando com ele a contaminação eventualmente existente na cidade.
 
 
O único, o indivíduo a imolar, que pelo sacrifício paga as culpas e os pecados da sociedade… quando é que nós lemos e acreditámos nisto, ainda que seja parte de uma cultura posterior à grega?

       

 

 

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