AXIOTHÉETON
Os homens crêem menos naquilo
que ouvem do que naquilo que veem.
HERÓDOTO
Quando em
dias de hoje alguns de nós lamentam a decadência da oralidade e do pensamento
em favor do espetáculo e da cultura do visível que tanto marcou e transformou,
e até alienou, a vida humana pela televisão, pelos jogos de computador, e
pensamos que tudo isso é obra dos tempos modernos, do dinheiro e dos deletérios
progressos da tecnologia, talvez estejamos a ignorar o que nesse capítulo se
passava nos memoráveis séculos gregos.
Axiothèeton
– o que é digno de ser visto, segundo a fórmula de Heródoto, campeão da
visualidade do texto escrito.
Visão e ouvido, os destinatários
preferenciais dos poetas da oralidade helénica – apodeixis. Heródoto fazia a sua declaração de interesses, por assim
dizer, tal como, na mesma linha, Homero a tinha feito. Descritivos ambos, a
escrita deles visava a preservação memorial dos grandes acontecimentos, das
notáveis personagens, dos grandes feitos dos homens através de uma técnica
verbal que pudesse valer como um monumento visível.
Visibilidade. A moderna tecnologia não inventou
nada de novo. A visibilidade é tudo o que importa na comunicação entre os
homens.
A conservação memorial do passado, segundo
teorizou Heródoto, deveria valer como documento visível tanto como experiência
auditiva. A leitura e a declamação. A representação. Heitor, na Ilíada, interpela os chefes gregos:
Alguns dos homens futuros
Navegando o lívido mar em nave cheia de remos.
Eis o túmulo do herói que morreu outrora.
Matou-o – e era um valente – o glorioso Heitor.
Assim dirá alguém, e a minha fama não perecerá.
O monumento visível não fala. Precisa da voz de
Heitor.
Eu
sou o túmulo, o monumento,
Ou
a taça daquele.
Os tempos futuros precisavam dos homens que
dessem a ouvir a glória dos tempos passados, as histórias que haveria para
contar, o discurso a quem os homens dessem ouvidos.
Klèos, a memória, o memorável, que depois de ouvido
resiste à usura do tempo. Pior desgraça para um homem é morrer sem deixar
história que o conte, que o mantenha vivo na lembrança dos vindouros, lá o
dizia Homero.
Melhor seria se Odisseus (Ulisses) tivesse
morrido em Tróia. Os Aqueus lhe teriam erguido um túmulo e a glória dele seria
transmitida à descendência.
Grandes momentos havia marcados pelos sons mais
retumbantes: o trovão de Zeus; o grito de Aquiles ao saber da morte de
Patroclo, grito que até Tétis ouvira na profundeza dos mares.
Agamémnon conta o dia em que caiu assassinado às
mãos da mulher, Klytemnestra, afirmando ter ouvido nas vascas da agonia a voz
de Cassandra assassinada ao seu lado.
A memória sobrevive segundo o ouvido. Poesia
épica e tragédia. O ouvir e o ver a representação das emoções mais fortes.
Ver.
Penélope reconhece Ulisses ao cabo de prolongado e subtil jogo de olhares. Ver.
Príamo e Aquiles entreolham-se de surpresa na Ilíada: o corpo de Heitor deveria ser levado; Príamo não devia
vê-lo.
E no angustiado coração ele deixara viver a ira.
Se à vista do filho, o ânimo se irasse
contra Aquiles e o matasse
e assim violasse a ordem de Zeus.
O rei está presente. A assembleia tem
os olhos fitos nele quando administra sentenças
justas (Hesíodo – Teogonia).
E
quando surge na assembleia olham-no e adoram-no como a um deus com uma
reverência breve (Homero – Odisseia).
A voz do rei é suave e convincente
(para Hesíodo), e caminha entre a multidão de cidadãos e a visão desse caminhar
encarna a ordem da cidade, e o ver e o ouvir caracterizam a sociedade da
cultura oral, onde o olhar personifica os valores políticos e culturais.
Na tragédia, a admiração gera-se quando
o olhar identifica a relação do herói com a cidade, com a comunidade cultural,
e quando, pelo olhar do espetador, perpassaram os cambiantes da dor, da
perplexidade ou da compaixão.
Porém, o mais emocionante espetáculo
que pode ser dado a ver na cidade é o da guerra.
Homero regista a afinidade entre o
público anónimo da cidade e os deuses do Olimpo na contemplação dos espetáculo
da guerra, quando os deuses observavam com toda a atenção o que se ia passando
na planície de Tróia.
É na guerra que a cidade se
espetaculariza e encena o seu poder. Serve tanto para motivação interna como
para demonstração de poderio perante os outros estados.
O desfile dos exércitos, as armas que
rebrilham ao sol helénico, os cavalos, os cães, os equipamentos, empolgam os
cidadãos, reforçando-lhes a consciência do seu poder e dos recursos abundantes
da cidade. É um meio de propaganda política.
Tucidides contou a excitação do pov0 quando do
embarque da expedição à Sicília em 416 AC. A trágica parada de guerra era a
parada da glória ateniense que convergia para um fatal destino.
Xerxes conduz os exércitos à batalha e uma vez
lá chegado reserva-se um lugar de espetador dos combates. Nas Termópilas e em
Salamina manda chamar à sua presença um secretário cuja função é a de anotar os
nomes dos que cometem os mais sangrentos e heroicos feitos.
Mas o espetáculo não acrescenta lucidez nem às
massas nem ao seu rei. O espetáculo é venda para os olhos do conhecimento, é
cegueira sobre o verdadeiro sentido dos acontecimentos.
O regresso de tropas pode ser tão espetacular
como a partida, e seja na vitória como na derrota. Voltam os desfiles de
tropas, as armas refulgentes, os equipamentos, e mais as presas, e mais os
prisioneiros que serão escravos no dia seguinte, e mais toda a sorte de
despojos destinados à exibição num santuário para que todos possam ver. São
levantados monumentos aos mortos. São conferidas publicamente honrarias aos
valentes. São elevadas as mais belas e tocantes orações.
A oração fúnebre de Péricles no primeiro ano da
guerra do Peloponeso é um espetáculo avassalador, quando os ossos dos
guerreiros caídos são exposto numa tenda e depois levados em procissão até às
portas da cidade e lançados numa vala comum.
Quando a cidade vive a sua derrota muda-se
evidentemente o cariz do espetáculo, todavia sem que o sentido desse espetáculo
deixe de prevalecer.
Tudo continuará teatralizado. O rei desfilará
entre gemidos (Ésquilo – Os Persas) e
rasgará as vestes esplêndidas, e todos os valentes desfilarão em silêncio,
obscuros, votados ao esquecimento, esgueirando-se por ínvias vielas, fugindo
dos olhares dos espetadores, mordidos
pela má sorte.
Bem sabiam os gregos dos efeitos do espetáculo sobre
as emoções da multidão. Um trágico chamado Frínico apresenta o seu drama A Conquista de Mileto. Os atenienses
choram e enfurecem-se e propõem no areópago a aplicação ao autor de uma multa
de mil dracmas. Razão: tinha avivado neles a memória de um sofrimento do seu
próprio povo, os jónicos, e todo o teatro
explodira em pranto. É o que conta Heródoto.
Outro aspeto do axiothèeton, o concurso, a competição. Agòn foi palavra em primeiro uso equivalente para assembleia
pública e depois para competição. Os gregos pelavam-se por jogos, despiques,
concursos, e fossem eles de que tipo fossem. As próprias assembleias públicas
não raro descambavam em competições oratórias.
Hesíodo competiu com um poema, a célebre Teogonia, num desses certames, e ganhou
um prémio que o levou à escrita de Os
Trabalhos e os Dias.
Platão referiu os concursos que entusiasmavam os
espectadores, comédia, tragédia, música, ginástica, corridas, pugilato,
recitações rapsódicas. Até as raparigas competiam entre si na poesia, e na ilha
de Lesbos eram organizados desfiles de moda e concursos de beleza feminina.
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