terça-feira, 15 de setembro de 2015


                               EKPLEXIS

      
             Homero apresenta-nos o mundo épico em forma de maravilha (tháuma), na certeza de que a palavra recitada e cantada era o mais excelente meio de comunicar e de recordar. A escrita assume real importância nas operações intelectuais lá para fins do século VIII e vai alterar a relação olhos/ouvidos enquanto instrumentos da consciência coletiva.
         Os poetas profissionalizam-se, mercenarizam-se, Pindaro, Simonides, aceitam encomendas de todo o mundo grego e assim se distanciam do público e se distinguem do cantor épico, homérico.
 
 
         A pintura é poesia muda; a poesia é pintura falante, diz Plutarco, citando Simonides. E é quando a poesia abandona o tom recitativo e estabelece compromissos com a experiência visual. É a tragédia que desponta nos imaginários, pronta a desenvolver-se.
         A tragédia é a narração visível, visual, uma nova organização dos materiais narrativos referidos à mitologia, a que se somam os efeitos acústicos, a voz, a música. Voz, música e visão relacionam-se, irmanam-se e o efeito é arrasador. Descobrem-se as virtualidades da metáfora como forma mais eficaz de descrição da experiência humana.
 
 
         A vida é comédia. A vida é tragédia. E Platão teria necessariamente de se meter nisto, e porque é nisto que a literatura ocidental inaugura as analogias entre o mundo e o palco. Somos todos um público numeroso para os outros – Epicuro o disse, pela boca de Séneca.
 
 
O universo será então o grande espetáculo, o homem será o espetador de si mesmo, da sua grandeza, do seu pensamento. Mas espetador da mesma guisa que o são os deuses, distanciado dos sofrimentos e dos conflitos da cena do mundo, da cena do palco.
Quando começa a tragédia e qual a origem dela?
 
                                                         
 
Incógnita. Aristóteles aponta para o ditirambo, a desaustinada representação coral que rendia louvores ao deus Dioniso, e que por fins do século IV se foi aplacando nos seus excessos, se foi tornando mais grave – ou mas lírica – no conto dos feitos dos deuses e dos heróis. Até se separar em definitivo do culto do deus nas festas que o honravam, as dionisíacas.


 
Nos começos do género tragédia a circunstância histórico-política é a tirania de Pisístrato e os subsequentes aperfeiçoamentos (e aprofundamentos) do estilo trágico atingem o ponto alto na época da nova democracia, exatamente no princípio do grande século V.
 
                                                                               
 
Digamos de caminho que Dioniso, o deus, é, ainda assim, importante e capital nisto tudo. Dioniso governava a vegetação, com acento peculiar na cultura da vinha, e por conseguinte no produto da fermentação, o vinho, claro está. Fosse por isso, Dioniso associou-se à loucura e ao êxtase. Caminhava pelos montes rodeado de sátiros com pés de cabra, seres imprecisos entre o homem e a besta, e acentuando bestialidades pela embriaguez e pelo desenfreado apetite sexual. E aqui entra a dança satírica, que Aristóteles considera ponto incontornável nos desenvolvimentos do género tragédia.
 
 
Mas Dioniso também acompanhava com as ménades (as loucas) e também nelas, e por elas, se libertava a energia física e a emoção da entrega ao culto do deus.
A tragédia talvez não existisse então sem a dionisíaca associação ao desvario, ao excesso, ao frenesim de romper com os limites entre homem e animal.
 
 
        A tragédia talvez não fosse considerada sem a dionisíaca associação à máscara. Dioniso venerava-se por intermédio de uma máscara pendurada numa árvore, numa coluna, e enfeitada com folhas de hera.
 
                                                                     
 
Assim, o ator mascarado produzia um efeito de fusão entre identidades díspares, antitéticas, macho/fêmea, homem/animal, amigo/inimigo, profano/ iniciado.
A máscara é inseparável da representação teatral ao induzir no público a disposição de se submeter a uma ilusão, a um jogo.
 
 
Pela máscara, o público dispõe-se ao extravasar das emoções pelo que é ficto, fingido, falso. Pela máscara, o público imana-se emocionalmente com o Outro. Pelo olhar fixo da máscara o público apreende a presença da divindade vigilante.
Dioniso é o deus da tragédia. Que o mesmo é dizer do espetáculo mimético, da identificação com o mundo mágico que os atores mascarados representam, da alteridade da sua condição mesma, racional e emocional, homem e besta.
 
 
         A máscara dionisíaca liberta os medos, as ansiedades, a irracionalidade que subjaz ao esplendor da Atenas de Péricles.
 
                                                                            
 
         E é a tragédia e o seu poder de impressionar as massas (ekplexis) que destina ao espectador o seu papel. Não já o tèrpsis, o prazer do recitativo épico ou da representação coral, mas o envolvimento numa tensão de prazer e dor, alegria e angústia.
É o paradoxo trágico: o prazer do sofrimento.
 
 
A tragedia é a chamada à consciência de um estado de crise. A tragédia desmonta, em tempo e espaço limitados, os aspetos críticos na sorte de uma família ou de uma cidade.
Poesia do passado. Discursos de mensageiro. Cantares de alegria. Lamentos mitológicos. Diálogo.
 
 
Ésquilo (Os Sete Contra Tebas) usa o refrão que o coro entoa e obtém como efeito uma multidão aterrorizada. O responsório lírico lamenta a vista do rei vencido que rasga as vestes e põe a comunidade em sobressalto (Os Persas).
 
                                                                
 
O público do teatro identifica-se com a cidade ameaçada. Há desmaios, choro de crianças, aborto de mulheres quando em cena aparecem as Fúrias (Euménides). Há uivos de terror (Suplicantes). Há o pavor e a profecia de Cassandra (Agamémnon). Há murmúrios e rosnidos na entrada em cena de Io perseguida por um moscardo (Prometeu Agrilhoado).
 
 
Ésquilo e Sófocles utilizam um novo estratagema dramatúrgico, o silêncio, e o efeito é tão poderoso como o do uivo de dor ou o do grito de raiva. (Aristófanes, o comediógrafo, faz troça deles.) Jocasta sai de cena em silêncio. Antígona: os instantes de acalmia anunciam o deflagrar das desgraças. Em Colona, um Édipo já velho permanece mudo por longo tempo cénico antes de rebentar em invetivas a Polinices. Na cena entra Agamémnon e Klytemnestra Cassandra assiste silenciosa até romper em altos brados de profecia. Pilades espera em contenção verbal antes de decidir instigar Orestes a matar a mãe.
 
                                                          
 
Um ponto temático essencial no desenvolver da tragédia foi a incomunicação entre os homens e os deuses. A tragédia significaria portanto um auge dos poderes da linguagem. Nas noites quentes de Epidauro, repetem-se palavras como “justiça”, “bondade”, “nobreza”, “pureza” e renovadas implicações ampliam e redefinem cada um destes conceitos.
A tragédia era palavra, era música e era movimento. Era maquinaria cénica, também, a construir os prodígios do visual. Movidos por gruas, os carros dos heróis podiam voar sobre o auditório boquiaberto. Era Ésquilo o mais pródigo nos efeitos visuais.
 
 
A recitação era estilizada. Voz e dicção atingiam os paroxismos da expressão e as personagens mascaradas vestiam com luxo. Os músicos também se moviam e gesticulavam e eram também por isso, pela visualidade expressiva das ações, altamente apreciados – Prónomos era o mais afamado flautista e Pausânias referia-o pela “compostura do rosto e pelos movimentos do corpo”, que enchiam de prazer o público trágico.
Haverá também a notar, para além da expressividade evidente do que era visto, a expressividade trágica do não-visto, as invisíveis e inauditas violências praticadas fora de cena. A significação perturbante do que não se vê é um preciosismo dramatúrgico que se valoriza precisamente porque não se vê. Alguns comentadores chamaram-lhe “espetáculo negativo”.
Ocorrências que podiam ser contempladas à luz do sol, e desmandos ocultos e inomináveis cometidos no interior do palácio, indignas do dia, da vista humana, acrescentando à narração elementos de mistério e de horror – o fascínio do espectador pelo que não se vê e se imagina.
A tirada do Mensageiro de Édipo dá conta da incapacidade humana de relatar certos factos, “certas desgraças que mais atingem os homens”. Seguia-se com a vista o vulto de Jocasta até entrar nos aposentos e as portas fechavam-se ao acto que ela cometia.
 
 
“Um deus qualquer indicou o caminho a Édipo”, e Édipo arromba as portas fechadas do apartamento de Jocasta e vê o corpo dela suspenso da corda. “O espetáculo horrível”. O espetáculo horrível que foi ocultado ao público na sua execução e que é revelado à vista de Édipo e o obriga a vazar os próprios olhos quando finalmente o vê. “Oh, terrível catástrofe para a vista humana!”, grita o Coro.
Marginal ou irracional que o tema trágico fosse, ainda que indireto, diferente, a representação em palco refletia a vida da cidade, o quotidiano, a dissidência nas famílias e nas instituições, a democracia. Os atores eram cidadãos, os coreutas eram cidadãos, e os autores também podiam representar.
 
 
O teatro era um edifício público e no final das festas dionisíacas reunia a assembleia a deliberar quanto à normalidade em que tinham ou não decorrido as festas.
Nas dionisíacas, e paralelamente às representações dramáticas, eram anunciados os benfeitores da cidade, desfilavam os filhos dos cidadãos mortos em combate. A cidade exibia-se aos olhos dos aliados, promovia-se, encenava-se a si mesma para admiração das cidades vizinhas.
 
                                                        
 
Refletindo a vida corrente da cidade, a tragédia encenava os conflitos que domestica ou publicamente lhe punham em causa os ideais, o que era de aprovar, o que era de excluir, o que era de reprimir.
 
 
O poder e a fúria das mulheres, por exemplo, era dramatizado na Orestreia por Ésquilo, por Sófocles nas Tarquínias, por Eurípedes na Medeia. A inversão dos papéis e a queda dos poderosos na miséria viam-se nas personagens de Édipo, de Jasão, de Creonte, de Penteu. A brutalidade ateniense da política e, evidentemente, da guerra, era criticada por Eurípedes nas Troianas. A indulgência para com os invasores desfeiteados está nos Persas, de Ésquilo. O Ajax, de Sófocles, pretendeu afirmar o valor da democracia e do compromisso em face do autoritarismo intransigente da aristocracia. E mais os perigos do exercício do poder (Antígona, Os Persas, Orestreia), as consequências funestas das divisões políticas na cidade (Sete Contra Tebas).
A tragédia assumiu-se perante a cidade como reflexão acerca das ações e comportamentos, repropondo-os e reexaminando-os à luz das necessidades práticas do compromisso político e da cooperação, valores cimeiros da sociedade democrática.
 
 
Outro aspeto crucial da tragédia era o pôr em relevo a questão (trágica) da decisão. Mais isso, ainda, do que o definir das culpas e dos castigos.
Um dos protagonistas é posto perante alternativas de valor oposto e é obrigado a decidir entre a atitude mais neutra, e por conseguinte mais convencional e segura, e um acto ousado, arriscado, de resultados imprevisíveis.
“Que fazer?”, grito recorrente numa das crises íntimas da personagem. Hesitações, vacilações, mudanças de parecer. Intransigência tão funesta como a indecisão.
 
 
E enfim, temáticas familiares apresentadas a um público que tinha experiência da vida das assembleias e dos tribunais.
Ainda que utilizando meios naturalmente diferentes, os poetas trágicos da Grécia elevaram-se à estatura dos grandes filósofos incansáveis na procura da compreensão da vida, da dor, da justiça, da moral. O público das noites de Epidauro, espectador de Sófocles e de Ésquilo, também conhecia Platão e Aristóteles.

                                                     
  

2 comentários:

  1. Para quando o regresso á radio?

    Sempre magnifico.

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  2. Ou à escrita em livro de crónicas? Há tanto a aprender! Tanto para (a)acomparar ! (salvo o AO a que não adiro...) Abr

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