EKPLEXIS
Homero apresenta-nos o mundo épico em forma de maravilha (tháuma), na certeza de que a palavra
recitada e cantada era o mais excelente meio de comunicar e de recordar. A
escrita assume real importância nas operações intelectuais lá para fins do
século VIII e vai alterar a relação olhos/ouvidos enquanto instrumentos da
consciência coletiva.
Os poetas
profissionalizam-se, mercenarizam-se, Pindaro, Simonides, aceitam encomendas de
todo o mundo grego e assim se distanciam do público e se distinguem do cantor
épico, homérico.
A pintura é poesia muda; a poesia é pintura
falante, diz Plutarco, citando Simonides. E é quando a poesia abandona o
tom recitativo e estabelece compromissos com a experiência visual. É a tragédia
que desponta nos imaginários, pronta a desenvolver-se.
A tragédia é a
narração visível, visual, uma nova organização dos materiais narrativos
referidos à mitologia, a que se somam os efeitos acústicos, a voz, a música.
Voz, música e visão relacionam-se, irmanam-se e o efeito é arrasador.
Descobrem-se as virtualidades da metáfora como forma mais eficaz de descrição
da experiência humana.
A vida é comédia.
A vida é tragédia. E Platão teria necessariamente de se meter nisto, e porque é
nisto que a literatura ocidental inaugura as analogias entre o mundo e o palco.
Somos todos um público numeroso para os outros – Epicuro o disse, pela boca de
Séneca.
O universo será então o grande espetáculo, o
homem será o espetador de si mesmo, da sua grandeza, do seu pensamento. Mas
espetador da mesma guisa que o são os deuses, distanciado dos sofrimentos e dos
conflitos da cena do mundo, da cena do palco.
Quando começa a tragédia e qual a origem
dela?
Incógnita. Aristóteles aponta para o
ditirambo, a desaustinada representação coral que rendia louvores ao deus
Dioniso, e que por fins do século IV se foi aplacando nos seus excessos, se foi
tornando mais grave – ou mas lírica – no conto dos feitos dos deuses e dos
heróis. Até se separar em definitivo do culto do deus nas festas que o
honravam, as dionisíacas.
Nos começos do género tragédia a
circunstância histórico-política é a tirania de Pisístrato e os subsequentes
aperfeiçoamentos (e aprofundamentos) do estilo trágico atingem o ponto alto na
época da nova democracia, exatamente no princípio do grande século V.
Digamos de caminho que Dioniso, o deus, é,
ainda assim, importante e capital nisto tudo. Dioniso governava a vegetação,
com acento peculiar na cultura da vinha, e por conseguinte no produto da
fermentação, o vinho, claro está. Fosse por isso, Dioniso associou-se à loucura
e ao êxtase. Caminhava pelos montes rodeado de sátiros com pés de cabra, seres
imprecisos entre o homem e a besta, e acentuando bestialidades pela embriaguez
e pelo desenfreado apetite sexual. E aqui entra a dança satírica, que
Aristóteles considera ponto incontornável nos desenvolvimentos do género
tragédia.
Mas Dioniso também acompanhava com as ménades
(as loucas) e também nelas, e por elas, se libertava a energia física e a
emoção da entrega ao culto do deus.
A tragédia talvez não existisse então sem a
dionisíaca associação ao desvario, ao excesso, ao frenesim de romper com os
limites entre homem e animal.
A tragédia talvez não fosse considerada sem a
dionisíaca associação à máscara. Dioniso venerava-se por intermédio de uma
máscara pendurada numa árvore, numa coluna, e enfeitada com folhas de hera.
Assim, o ator mascarado produzia um efeito de
fusão entre identidades díspares, antitéticas, macho/fêmea, homem/animal,
amigo/inimigo, profano/ iniciado.
A máscara é inseparável da representação
teatral ao induzir no público a disposição de se submeter a uma ilusão, a um
jogo.
Pela máscara, o público dispõe-se ao
extravasar das emoções pelo que é ficto, fingido, falso. Pela máscara, o
público imana-se emocionalmente com o Outro. Pelo olhar fixo da máscara o
público apreende a presença da divindade vigilante.
Dioniso é o deus da tragédia. Que o mesmo é
dizer do espetáculo mimético, da identificação com o mundo mágico que os atores
mascarados representam, da alteridade da sua condição mesma, racional e
emocional, homem e besta.
A máscara
dionisíaca liberta os medos, as ansiedades, a irracionalidade que subjaz ao
esplendor da Atenas de Péricles.
E é a tragédia e o
seu poder de impressionar as massas (ekplexis)
que destina ao espectador o seu papel. Não já o tèrpsis, o prazer do recitativo épico ou da representação coral,
mas o envolvimento numa tensão de prazer e dor, alegria e angústia.
É o paradoxo trágico: o prazer do sofrimento.
A tragedia é a chamada à consciência de um
estado de crise. A tragédia desmonta, em tempo e espaço limitados, os aspetos
críticos na sorte de uma família ou de uma cidade.
Poesia do passado. Discursos de mensageiro.
Cantares de alegria. Lamentos mitológicos. Diálogo.
Ésquilo (Os
Sete Contra Tebas) usa o refrão que o coro entoa e obtém como efeito uma
multidão aterrorizada. O responsório lírico lamenta a vista do rei vencido que
rasga as vestes e põe a comunidade em sobressalto (Os Persas).
O público do teatro identifica-se com a
cidade ameaçada. Há desmaios, choro de crianças, aborto de mulheres quando em
cena aparecem as Fúrias (Euménides).
Há uivos de terror (Suplicantes). Há
o pavor e a profecia de Cassandra (Agamémnon).
Há murmúrios e rosnidos na entrada em cena de Io perseguida por um moscardo (Prometeu Agrilhoado).
Ésquilo e Sófocles utilizam um novo
estratagema dramatúrgico, o silêncio, e o efeito é tão poderoso como o do uivo
de dor ou o do grito de raiva. (Aristófanes, o comediógrafo, faz troça deles.)
Jocasta sai de cena em silêncio. Antígona: os instantes de acalmia anunciam o
deflagrar das desgraças. Em Colona, um Édipo já velho permanece mudo por longo
tempo cénico antes de rebentar em invetivas a Polinices. Na cena entra
Agamémnon e Klytemnestra Cassandra assiste silenciosa até romper em altos
brados de profecia. Pilades espera em contenção verbal antes de decidir
instigar Orestes a matar a mãe.
Um ponto temático essencial no desenvolver da
tragédia foi a incomunicação entre os homens e os deuses. A tragédia
significaria portanto um auge dos poderes da linguagem. Nas noites quentes de
Epidauro, repetem-se palavras como “justiça”, “bondade”, “nobreza”, “pureza” e
renovadas implicações ampliam e redefinem cada um destes conceitos.
A tragédia era palavra, era música e era
movimento. Era maquinaria cénica, também, a construir os prodígios do visual.
Movidos por gruas, os carros dos heróis podiam voar sobre o auditório
boquiaberto. Era Ésquilo o mais pródigo nos efeitos visuais.
A recitação era estilizada. Voz e dicção
atingiam os paroxismos da expressão e as personagens mascaradas vestiam com
luxo. Os músicos também se moviam e gesticulavam e eram também por isso, pela
visualidade expressiva das ações, altamente apreciados – Prónomos era o mais
afamado flautista e Pausânias referia-o pela “compostura do rosto e pelos
movimentos do corpo”, que enchiam de prazer o público trágico.
Haverá também a notar, para além da
expressividade evidente do que era visto, a expressividade trágica do
não-visto, as invisíveis e inauditas violências praticadas fora de cena. A
significação perturbante do que não se vê é um preciosismo dramatúrgico que se
valoriza precisamente porque não se vê. Alguns comentadores chamaram-lhe
“espetáculo negativo”.
Ocorrências que podiam ser contempladas à luz
do sol, e desmandos ocultos e inomináveis cometidos no interior do palácio,
indignas do dia, da vista humana, acrescentando à narração elementos de
mistério e de horror – o fascínio do espectador pelo que não se vê e se
imagina.
A tirada do Mensageiro de Édipo dá conta da
incapacidade humana de relatar certos factos, “certas desgraças que mais
atingem os homens”. Seguia-se com a vista o vulto de Jocasta até entrar nos
aposentos e as portas fechavam-se ao acto que ela cometia.
“Um deus qualquer indicou o caminho a Édipo”,
e Édipo arromba as portas fechadas do apartamento de Jocasta e vê o corpo dela
suspenso da corda. “O espetáculo horrível”. O espetáculo horrível que foi
ocultado ao público na sua execução e que é revelado à vista de Édipo e o
obriga a vazar os próprios olhos quando finalmente o vê. “Oh, terrível
catástrofe para a vista humana!”, grita o Coro.
Marginal ou irracional que o tema trágico
fosse, ainda que indireto, diferente, a representação em palco refletia a vida
da cidade, o quotidiano, a dissidência nas famílias e nas instituições, a
democracia. Os atores eram cidadãos, os coreutas eram cidadãos, e os autores
também podiam representar.
O teatro era um edifício público e no final
das festas dionisíacas reunia a assembleia a deliberar quanto à normalidade em
que tinham ou não decorrido as festas.
Nas dionisíacas, e paralelamente às
representações dramáticas, eram anunciados os benfeitores da cidade, desfilavam
os filhos dos cidadãos mortos em combate. A cidade exibia-se aos olhos dos
aliados, promovia-se, encenava-se a si mesma para admiração das cidades
vizinhas.
Refletindo a vida corrente da cidade, a
tragédia encenava os conflitos que domestica ou publicamente lhe punham em
causa os ideais, o que era de aprovar, o que era de excluir, o que era de
reprimir.
O poder e a fúria das mulheres, por exemplo,
era dramatizado na Orestreia por
Ésquilo, por Sófocles nas Tarquínias,
por Eurípedes na Medeia. A inversão
dos papéis e a queda dos poderosos na miséria viam-se nas personagens de Édipo,
de Jasão, de Creonte, de Penteu. A brutalidade ateniense da política e,
evidentemente, da guerra, era criticada por Eurípedes nas Troianas. A indulgência para com os invasores desfeiteados está nos Persas, de Ésquilo. O Ajax, de Sófocles, pretendeu afirmar o
valor da democracia e do compromisso em face do autoritarismo intransigente da
aristocracia. E mais os perigos do exercício do poder (Antígona, Os Persas, Orestreia), as consequências funestas das
divisões políticas na cidade (Sete Contra
Tebas).
A tragédia assumiu-se perante a cidade como
reflexão acerca das ações e comportamentos, repropondo-os e reexaminando-os à
luz das necessidades práticas do compromisso político e da cooperação, valores
cimeiros da sociedade democrática.
Outro aspeto crucial da tragédia era o pôr em
relevo a questão (trágica) da decisão. Mais isso, ainda, do que o definir das
culpas e dos castigos.
Um dos protagonistas é posto perante
alternativas de valor oposto e é obrigado a decidir entre a atitude mais neutra,
e por conseguinte mais convencional e segura, e um acto ousado, arriscado, de
resultados imprevisíveis.
“Que fazer?”, grito recorrente numa das
crises íntimas da personagem. Hesitações, vacilações, mudanças de parecer.
Intransigência tão funesta como a indecisão.
E enfim, temáticas familiares apresentadas a
um público que tinha experiência da vida das assembleias e dos tribunais.
Ainda que utilizando meios naturalmente
diferentes, os poetas trágicos da Grécia elevaram-se à estatura dos grandes
filósofos incansáveis na procura da compreensão da vida, da dor, da justiça, da
moral. O público das noites de Epidauro, espectador de Sófocles e de Ésquilo,
também conhecia Platão e Aristóteles.
Para quando o regresso á radio?
ResponderEliminarSempre magnifico.
Ou à escrita em livro de crónicas? Há tanto a aprender! Tanto para (a)acomparar ! (salvo o AO a que não adiro...) Abr
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