quinta-feira, 10 de dezembro de 2015


 

              A ARTE DE DISCUTIR


O mais proveitoso e natural exercício do nosso espírito é a discussão – Montaigne dixit.
 
 
Ou então: Todos os dias os modos estúpidos de outrem me advertem e aconselham. O que magoa impressiona e esperta mais do que o agradável – torna ele, Montaigne, a dizer, na preciosa versão portuguesa ipsis verbis do Prof. Agostinho da Silva.
 
 
Ah, sim transcrição subversiva esta, nos tempos de hoje, em que pouca gente quererá aprender mais alguma coisita para além do pouquíssimo que já sabe e lhe dá jeito ao trabalho, e só porque a atitude de querer aprender supõe, como é óbvio, a realidade de uma ignorância a respeito de qualquer coisa.


 
Uma ignorância que, mesmo para a gente comum que todos os dias se acotovela no fast food da semana de trabalho é especialmente custoso de admitir, e porque se há alguma coisa que eu ignoro é porque não me faz falta nenhuma saber essa coisa, e se me aparece alguém com uma conversa sobre qualquer assunto que eu ignore esse alguém é um chato insuportável e é melhor para mim e para a minha auto-estima evitá-lo, como é melhor evitar qualquer pessoa que me lembre da minha ignorância… e porque esta época é a do pensamento positivo e da auto-estima, ou do desbragado optimismo acerca de mim mesmo,  e eu, mesmo que não o seja, passei a sê-lo, bonito, inteligente, sábio, competente, bom conversador, encantador, divertido e culto.
 
                                                          
 
Da discussão nasce a luz? Bom, na maior parte das discussões a que assisti não nasceu luz nenhuma e foram as trevas que mais se adensaram e os abismos que mais se cavaram.
 
 
E também de grande parte das discussões a que comecei por assistir nasceu uma zaragata e uma quesilia de todo o tamanho, a uma unha negra das vias de facto.
Mas claro que Montaigne coloca a questão nos seus pontos mais elevados e doutos e por isso é bom trazê-lo à conversa. E até porque Platão, na sua República, pretendia interditar o exercício da discussão aos espíritos ineptos e/ou mal formados.
 
                                                           
 
Montaigne, num ensaio chamado Da Arte de Discutir, começa por dizer que os tribunais condenam só no sentido de que uma condenação possa servir de aviso a futuros prevaricadores. Os tribunais não condenam pelo erro cometido. Rematada tolice seria. O que está feito está feito e não se pode desfazer. O que é bom é que outros não sigam o exemplo daquele que errou. Não se corrige aquele que se condenou à forca, corrigem-se os outros que possam cometer actos merecedores da mesma forca.

 
Auto-elogio e auto-crítica: pontos dicotómicos de uma discussão.
 
                                                              
 
Literalmente: as qualidades que mais aprecio em mim (mim: ele, Montaigne, está bem de ver) mais se honram em me censurar do que em me elogiar. Todos acreditam no mal que dizemos de nós próprios e todos duvidam do bem.
 

                                                             
 
E evoca Catão, no dizer que os avisados teriam mais a aprender com os loucos do que os loucos com os avisados. E porque Pausânias chamava ao caso um velho tocador de lira que mandava os discípulos ouvir o mau tocador de lira que morava na casa em frente, só para aprenderem a aborrecer a desafinação e os compassos mal medidos.
 
 
Aprende-se pouco com os bons exemplos. As lições que nos dão os maus exemplos podem ser mais proveitosas.
 
 
Atenienses e romanos muito prezaram a arte da discussão nas suas academias, e a discussão é exercício mais útil do que a actividade fracota e repousada em que consiste o estudo dos livros. O estudo livresco entusiasma pouco, em comparação com o discutir, e porque o discutir do mesmo passo que nos entusiasma nos ensina e exercita.
 
 
Há que frequentar e conversar com os espíritos fortes. Os espíritos fortes apertam o interlocutor.
 
                                                             
 
Diz Montaigne que um espírito forte o provoca, o espicaça e o fere à esquerda e à direita, as ideias dele perseguem as suas, espevitam o amor -próprio, a rivalidade, tudo o que nos pode elevar acima de nós mesmos. Fugir é do acordo na discussão, do aborrecimento, da inutilidade.
 
 
Claro que ao dizer o que disse Montaigne revela o seu espírito moderno, dinâmico, concorrencial, mercantil, um espírito económico, enfim, ao promover, com a rivalidade, a emulação, o amor-próprio, o espirito competitivo tão a la page na vida que se vai construindo à nossa volta, o espírito de competição que hoje tanto se recomenda às empresas e aos aspirantes ao empresariado; ao próprio Estado, que o deve ser, competitivo, ao promover com competência as exportações, de modo a equilibrar a sempre desgraçada balança de pagamentos.
 
                                                                          


 
E se o nosso próprio espírito sem dúvida se fortalece no convívio com outros espíritos rigorosos, inversamente se empobrece e se enfraquece – e até degenera – ao frequentar os espíritos baixos e doentios.
 
                                                       
 
Montaigne gostava de discutir e discorrer com pouca gente e só com pouca e seleccionada gente a discussão lhe ia a proveito. Era um elitista, sem dúvida, este Senhor Michel de Montaigne. E ainda bem…
 
 
Mas se a estupidez é fraca coisa, não conviver com ela, aborrecê-la e desesperar-se por causa dela não será mais boa coisa.
 
 
Se Montaigne discutia e entrava em disputa com facilidade dizia que era porque as opiniões não achavam nele terreno muito fecundo para lançar fundas raízes. Nenhuma afirmação me espanta, nenhuma crença me fere, por muito contrária que seja á minha.
 
                                                                       


 
Quem priva o seu entendimento do direito de decidir, encara sem irritação as opiniões contrárias.
A contradição das opiniões não me ofende nem me exalta. Só me estimula e me exercita. Fugimos a que nos corrijam quando, pelo contrário, nos devíamos apresentar e oferecer à correcção.
 
                                                          
 
Muito bem, mas depois desta sentença Montaigne não perde tempo a dizer que o espírito dele de boa vontade se apresenta e oferece a correcção de outro, sim senhor, desde que esse outro faça a correcção em forma de conversa e não de modo pedagógico, de cátedra. Estou de acordo.
 
 
Montaigne gostava de se travar de razões com homens de bem e de expressão franca, corajosa, frontal. Porque nos importaria a todos, e muito, fortificar os ouvidos, endurecer os ouvidos contra certos sons, por exemplo, o som das palavras quando ele é cerimonioso. A convivência da discussão deveria ser forte, viril, amizades que se desenvolveriam na aspereza e no vigor da esgrima dos argumentos.
                                                                                                                         
 
Quando me contradizem despertam-me a atenção, não a cólera.
 
 
Seria útil que se fizessem apostas nas discussões, para que tivéssemos um sinal palpável das nossas perdas, e que um criado me pudesse dizer: no ano passado custou-vos por vinte vezes cem escudos o ter sido ignorante e teimoso.
 
                                                         
 
É bom apreciar a verdade venha ela de onde vier. Montaigne fazia-o (diz ele). Rendia-se-lhe alegremente. Entregava-lhe as suas armas de vencido.
Mas atenção, lá voltamos à mesma, desde que não lhe fizessem ver essa verdade, como ele diz, de catadura muito altiva e magistral. Aceitava as repreensões que porventura fizessem aos seus escritos, e muita vez os tenho corrigido mais por cortesia do que por neles ter reconhecido o erro. Mas reconhecia que era difícil transportar a tais perfeições os homens do seu tempo…
 
 
Que diria o Senhor de Montaigne se tivesse vivido neste?
 
 
Os homens do tempo de Montaigne não teriam a qualidade da coragem de corrigir, a coragem se suportar a correcção, e por isso mesmo as suas falas em presença uns dos outros eram dissimuladas, ou seja, de circunstância, nada corajosas, e muito menos viris.


 
A minha inteligência contradiz-se e condena-se tantas vezes a si mesma que me é igual que seja outrem a fazê-lo, e sobretudo porque não dou à repreensão senão o valor que quero dar-lhe.
 
                                                            
 

O elogio mútuo, ah, sim, grande moeda de troca nas relações não só pessoais, mas sobretudo institucionais…

Moeda corrente nos nossos quotidianos trabalhos, o elogio mútuo, é condição indispensável para se ser reconhecido e progredir, na carreira, na vida.
 
 
Reconhecerei o teu valor se me reconheceres o meu.
Reconhecerei o valor que não tens se reconheceres o valor que eu também não tenho.
 
                                          
 
Reconheçamos e manifestemos uns aos outros as qualidades e os talentos que não temos, ou temos pouco, e seremos felizes para todo o sempre e sobreviveremos bem, e o mundo acreditará em nós – e ainda que não repare nas nossas qualidades, o mundo pensará que quem é estúpido e inculto é ele, mundo, se nós jurarmos solenemente que passaremos a vida a dizer bem uns dos outros e que o mundo não repara nos nossos talentos porque não está à nossa altura.
Montaigne ficava fulo com isto.
 
 
Não há nada que nos torne a sensibilidade mais delicada do que a boa conta em que nos temos e o desdém que professamos pelo nosso adversário – citei.
Também dizia o nosso ensaísta que era prazer insípido tratar com pessoas que nos admiram. Fala de Antístenes, esse que recomendava aos filhos que nunca agradecessem nem que exigissem dos outros os louvores. E também porque era impossível tratar de boa fé um imbecil.
 
 
E as discussões, dizia ele, Montaigne, que deveriam ser regulamentadas, porque quando governadas pela cólera nada de melhor fazem do que acrescentar-nos defeitos. Começamos inimigos das razões e acabamos inimigos dos homens.
 
                                            
 
Discussão. Cada um para seu lado. Perde-se de vista o essencial na confusão do acessório. Passada uma hora de disputa já não se sabe o que se procura na discussão. Uns atravancam-se com as palavras. Outros, entusiasmados, não entendem o que se lhes objecta. Outros ainda baralham e confundem o que se disse, pretextando uma fraqueza súbita nos rins (Montaigne por sinal sofria dos rins).
E depois também temos os que acabam por se render às razões contrárias, mas… cito textualmente: afectando por ignorância despeitada um desprezo orgulhoso, ou com ar de imbecil modéstia, a sua renúncia à luta.
 
 
Discutir.
Há quem faça valer o poder da sua voz e dos seus pulmões. Há quem recorra à injúria. Há os que maçam o interlocutor com preâmbulos e digressões inúteis. Eu sei lá! E muitas vezes a agilidade argumentativa do outro vence os nossos sentidos, mas de modo nenhum nos abala a convicção.
(Pergunto-me como seria este intransigente Montaigne nas suas relações pessoais.)
 
 
Amo e honro o saber como a mais nobre e poderosa aquisição dos homens. Mas naqueles que nele alicerçam a sua fundamental capacidade e abdicam da inteligência na memória e nada podem senão pelos livros, ah, nesses aborreço eu um pouco mais do que a estupidez.
 
                                                             
 
A sabedoria, ou a sapiência, pode não melhorar o espírito. Pode até pesar sobre eles como massa indigesta, pode até sufocá-los, aos espíritos.
Saber mais é uma coisa, saber melhor é outra, e mais compensadora, coisa.
E lá diz o Montaigne: não ganha quem corre mais, ganha quem corre melhor.
A forma e o conteúdo, a velha querela intelectual.
 
 
Tanto pode fazer de tolo o que disser a verdade como o que falar mentiras, porque o importante é a maneira e não a matéria do que se diz.
 
                                                             
 
O meu costume é olhar tanto para a forma como para a substância, tanto para o advogado como para a causa.
Pois claro. Toda a gente pode falar a verdade, com verdade. Mas falar com método e ordem, com prudência e capacidade, segundo Montaigne, poucos o podem. Não era a falsidade filha da ignorância o que mais o incomodava: era a inépcia. E confessa ter deixado cair negócios que lhe eram de bom lucro apenas devido à estupidez que punham nos argumentos aqueles com quem negociava.
 
 
Para os criados e subordinados, Montaigne estava sempre pronto a usar de paciência e tolerância se se tratava de erros ou de faltas. O que lhe fazia perder a paciência eram as idiotices e teimosias das alegações dos que falhavam, as desculpas, as defesas. Acomodo-me melhor com os erros do que com a leviandade, a impertinência e a estupidez.
E também ocorre aquilo para que o divino Platão alertava: o que eu acho insano não o será devido à minha própria insanidade? Não serei eu o culpado? A minha opinião não se poderá voltar contra mim?
 
 
Erro universal entre os homens: os argumentos que usamos em matérias incertas podem voltar-se contra nós.
Quantas vezes ao falar do vizinho não zombamos de nós mesmos?
Quantas vezes detestamos nos outros os defeitos que também são nossos?
E saborosas são as palavras do nosso sábio a respeito disso: É dever de caridade que quem não pode arrancar de si um defeito o procure arrancar de outrem em que esse defeito porventura terá raízes menos duras e menos profundas.
Não é resposta quando respondemos a alguém que nos aponta um defeito dizer que esse defeito também ele o tem.
 
                                                       
 
Montaigne manifesta-se contra a gravidade, a empáfia, a pose que alguns usam na discussão. A condição social eventualmente importante empresta autoridade (ilegítima, digo) a palavras vãs. E quem o escuta, esmagado pelo peso da importância dos actos pensará que um senhor tão respeitado e temido terá por força em si capacidades invulgares de juízo. Sim, um homem a quem deram tão alevantadas responsabilidades e cargos não pode deixar de ser mais hábil e dotado do que aquele que ao passar o saúda de longe, aquele que ninguém conhece e a quem ninguém chama.
 

E teríamos ainda os que na discussão se refugiam no silêncio. Um silêncio que pretende ser de subentendidos. Que pretende convencer os outros de que o silencioso sabe mais, muito mais, do que o que quer dizer, e que assim desarmará por completo quem se lhe pretenda opor no combate das razões. Este ficará sempre com a sensação de estar a proferir irrelevâncias perante aquele cujo silêncio superior dá nota de voar muito mais alto.
 
                                                             
 
Megabiso, sátrapa persa do século V, foi visitar Apeles à oficina. Esteve muito tempo calado, até que desatou a língua e se pôs a comentar as obras que apreciava. Apeles deixou-o falar e por fim disse-lhe: enquanto estiveste calado parecias uma grande coisa com todos esses colares que trazes e esse luxo no vestir. Mas agora, que te ouviram, até os moços da oficina se riem de ti.
Diz Montaigne muito judiciosamente (como sempre, ou quase): o que admiro nos reis é a multidão dos seus admiradores. Diante deles tudo se deve inclinar e submeter, salvo a inteligência. Não foi a minha razão que eu ensinei a curvar-se e a flectir-se, foram só os meus joelhos.

 
Da argumentação dos tolos diz-se que por vezes é acertada. O caso é ver até onde eles podem compreender a matéria; é investigar de onde lhes nasceu o discurso competente, as harmoniosas razões. Investigar e perceber que todas essas coisas não são deles. Eles têm-nas em depósito. Atiram-nas muitas vezes ao acaso e cabe-nos a nós dar-lhes importância.
Nada me irrita tanto na estupidez como a satisfação que tem de si própria, maior do que a que, razoavelmente, pode ter qualquer inteligência.
 
 
Há assuntos que nos podem levar a considerar um homem bastante sabedor, no entanto, se queremos avaliar-lhe qualidades mais autênticas, mais próprias, ou intrínsecas, e toda a força e beleza do seu espírito, bom seria indagar do que é mesmo dele e do que exactamente dele não será; ou o que se lhe deve apreciar e louvar de talento pela escolha do assunto, pela disposição, pelo ornamento e pela linguagem que conferiu áquilo que não lhe pertencia.
Não ousar falar francamente de si envolve alguma falta de coragem – estou a citar. Uma inteligência firme e elevada, que tem juízos sãos e seguros, usa em todas as circunstâncias os exemplos próprios como coisa alheia e apresenta o seu testemunho como apresentaria o de um terceiro. É preciso passar por cima de regras vulgares de civilidade, e isso em favor da verdade e da liberdade.
 
                                                        
 
Continuo a citar: ouso não só falar de mim, mas falar só de mim; engano-me no caminho e fujo ao meu assunto quando falo de outra coisa. Não me estimo tão imoderadamente nem estou tão preso e metido em mim que não me possa distinguir e considerar à parte, como a um vizinho ou a uma árvore.
 
 
É erro não ver até onde vai o próprio valor, ou dizer mais do que aquilo que se vê.
 
                                                            
 
Devemos mais amor a Deus do que a nós mesmos, conhecemo-lo menos, mas falamos dele quanto nos apraz.
Discutir... ui!
 
 

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