A ARTE DE DISCUTIR
O mais proveitoso e
natural exercício do nosso espírito é a discussão – Montaigne dixit.
Ou então: Todos os dias os modos
estúpidos de outrem me advertem e aconselham. O que magoa impressiona e esperta
mais do que o agradável – torna ele, Montaigne, a dizer, na preciosa versão
portuguesa ipsis verbis do Prof. Agostinho da Silva.
Ah, sim transcrição subversiva esta,
nos tempos de hoje, em que pouca gente quererá aprender mais alguma coisita
para além do pouquíssimo que já sabe e lhe dá jeito ao trabalho, e só porque a
atitude de querer aprender supõe, como é óbvio, a realidade de uma ignorância a
respeito de qualquer coisa.
Uma ignorância que, mesmo para a gente
comum que todos os dias se acotovela no fast food da semana de trabalho
é especialmente custoso de admitir, e porque se há alguma coisa que eu ignoro é
porque não me faz falta nenhuma saber essa coisa, e se me aparece alguém com
uma conversa sobre qualquer assunto que eu ignore esse alguém é um chato
insuportável e é melhor para mim e para a minha auto-estima evitá-lo, como é
melhor evitar qualquer pessoa que me lembre da minha ignorância… e porque esta
época é a do pensamento positivo e da auto-estima, ou do desbragado optimismo
acerca de mim mesmo, e eu, mesmo que não
o seja, passei a sê-lo, bonito, inteligente, sábio, competente, bom
conversador, encantador, divertido e culto.
Da discussão nasce a luz? Bom, na
maior parte das discussões a que assisti não nasceu luz nenhuma e foram as
trevas que mais se adensaram e os abismos que mais se cavaram.
E também de grande parte das
discussões a que comecei por assistir nasceu uma zaragata e uma quesilia de
todo o tamanho, a uma unha negra das vias de facto.
Mas claro que Montaigne coloca a
questão nos seus pontos mais elevados e doutos e por isso é bom trazê-lo à
conversa. E até porque Platão, na sua República, pretendia interditar o
exercício da discussão aos espíritos ineptos e/ou mal formados.
Montaigne, num ensaio chamado Da
Arte de Discutir, começa por dizer que os tribunais condenam só no sentido
de que uma condenação possa servir de aviso a futuros prevaricadores. Os
tribunais não condenam pelo erro cometido. Rematada tolice seria. O que está
feito está feito e não se pode desfazer. O que é bom é que outros não sigam o
exemplo daquele que errou. Não se corrige aquele que se condenou à forca,
corrigem-se os outros que possam cometer actos merecedores da mesma forca.
Auto-elogio e auto-crítica: pontos
dicotómicos de uma discussão.
Literalmente: as qualidades que
mais aprecio em mim (mim: ele, Montaigne, está bem de ver) mais se
honram em me censurar do que em me elogiar. Todos acreditam no mal que dizemos
de nós próprios e todos duvidam do bem.
E evoca Catão, no dizer
que os avisados teriam mais a aprender com os loucos do que os loucos com os
avisados. E porque Pausânias chamava ao caso um velho tocador de lira que
mandava os discípulos ouvir o mau tocador de lira que morava na casa em frente,
só para aprenderem a aborrecer a desafinação e os compassos mal medidos.
Aprende-se pouco com os bons exemplos.
As lições que nos dão os maus exemplos podem ser mais proveitosas.
Atenienses e romanos muito prezaram a
arte da discussão nas suas academias, e a discussão é exercício mais útil do
que a actividade fracota e repousada em que consiste o estudo dos livros. O
estudo livresco entusiasma pouco, em comparação com o discutir, e porque o
discutir do mesmo passo que nos entusiasma nos ensina e exercita.
Há que frequentar e conversar com os
espíritos fortes. Os espíritos fortes apertam o interlocutor.
Diz Montaigne que um espírito forte o
provoca, o espicaça e o fere à esquerda e à direita, as ideias dele perseguem
as suas, espevitam o amor -próprio, a rivalidade, tudo o que nos pode elevar
acima de nós mesmos. Fugir é do acordo na discussão, do aborrecimento, da
inutilidade.
Claro que ao dizer o que disse
Montaigne revela o seu espírito moderno, dinâmico, concorrencial, mercantil, um
espírito económico, enfim, ao promover, com a rivalidade, a emulação, o
amor-próprio, o espirito competitivo tão a la page na vida que se vai
construindo à nossa volta, o espírito de competição que hoje tanto se recomenda
às empresas e aos aspirantes ao empresariado; ao próprio Estado, que o deve
ser, competitivo, ao promover com competência as exportações, de modo a
equilibrar a sempre desgraçada balança de pagamentos.
E se o nosso próprio espírito sem
dúvida se fortalece no convívio com outros espíritos rigorosos, inversamente se
empobrece e se enfraquece – e até degenera – ao frequentar os espíritos baixos
e doentios.
Montaigne gostava de discutir e
discorrer com pouca gente e só com pouca e seleccionada gente a discussão lhe
ia a proveito. Era um elitista, sem dúvida, este Senhor Michel de Montaigne. E
ainda bem…
Mas se a estupidez é fraca coisa, não
conviver com ela, aborrecê-la e desesperar-se por causa dela não será mais boa
coisa.
Se Montaigne discutia e entrava em
disputa com facilidade dizia que era porque as opiniões não achavam nele
terreno muito fecundo para lançar fundas raízes. Nenhuma afirmação me
espanta, nenhuma crença me fere, por muito contrária que seja á minha.
Quem priva o seu entendimento do
direito de decidir, encara sem irritação as opiniões contrárias.
A contradição das opiniões
não me ofende nem me exalta. Só me estimula e me exercita. Fugimos a que nos
corrijam quando, pelo contrário, nos devíamos apresentar e oferecer à
correcção.
Muito bem, mas depois desta sentença Montaigne
não perde tempo a dizer que o espírito dele de boa vontade se apresenta e oferece
a correcção de outro, sim senhor, desde que esse outro faça a correcção em
forma de conversa e não de modo pedagógico, de cátedra. Estou de acordo.
Montaigne gostava de se travar de
razões com homens de bem e de expressão franca, corajosa, frontal. Porque nos
importaria a todos, e muito, fortificar os ouvidos, endurecer os ouvidos contra
certos sons, por exemplo, o som das palavras quando ele é cerimonioso. A
convivência da discussão deveria ser forte, viril, amizades que se
desenvolveriam na aspereza e no vigor da esgrima dos argumentos.
Quando me contradizem
despertam-me a atenção, não a cólera.
Seria útil que se fizessem
apostas nas discussões, para que tivéssemos um sinal palpável das nossas
perdas, e que um criado me pudesse dizer: no ano passado custou-vos por vinte
vezes cem escudos o ter sido ignorante e teimoso.
É bom apreciar a verdade venha ela de
onde vier. Montaigne fazia-o (diz ele). Rendia-se-lhe alegremente.
Entregava-lhe as suas armas de vencido.
Mas atenção, lá voltamos à mesma,
desde que não lhe fizessem ver essa verdade, como ele diz, de catadura muito
altiva e magistral. Aceitava as repreensões que porventura fizessem aos
seus escritos, e muita vez os tenho corrigido mais por cortesia do que por
neles ter reconhecido o erro. Mas reconhecia que era difícil transportar a
tais perfeições os homens do seu tempo…
Que diria o Senhor de Montaigne se
tivesse vivido neste?
Os homens do tempo de Montaigne não
teriam a qualidade da coragem de corrigir, a coragem se suportar a correcção, e
por isso mesmo as suas falas em presença uns dos outros eram dissimuladas, ou
seja, de circunstância, nada corajosas, e muito menos viris.
A minha inteligência
contradiz-se e condena-se tantas vezes a si mesma que me é igual que seja
outrem a fazê-lo, e sobretudo porque não dou à repreensão senão o valor que
quero dar-lhe.
O elogio mútuo, ah, sim, grande moeda de troca nas relações não só pessoais, mas sobretudo institucionais…
Moeda corrente nos nossos
quotidianos trabalhos, o elogio mútuo, é condição indispensável para se ser
reconhecido e progredir, na carreira, na vida.
Reconhecerei o teu valor
se me reconheceres o meu.
Reconhecerei o valor que
não tens se reconheceres o valor que eu também não tenho.
Reconheçamos e
manifestemos uns aos outros as qualidades e os talentos que não temos, ou temos
pouco, e seremos felizes para todo o sempre e sobreviveremos bem, e o mundo
acreditará em nós – e ainda que não repare nas nossas qualidades, o mundo
pensará que quem é estúpido e inculto é ele, mundo, se nós jurarmos solenemente
que passaremos a vida a dizer bem uns dos outros e que o mundo não repara nos
nossos talentos porque não está à nossa altura.
Montaigne ficava fulo com
isto.
Não há nada que nos
torne a sensibilidade mais delicada do que a boa conta em que nos temos e o
desdém que professamos pelo nosso adversário – citei.
Também dizia o nosso
ensaísta que era prazer insípido tratar com pessoas que nos admiram. Fala de
Antístenes, esse que recomendava aos filhos que nunca agradecessem nem que
exigissem dos outros os louvores. E também porque era impossível tratar de boa
fé um imbecil.
E as discussões, dizia
ele, Montaigne, que deveriam ser regulamentadas, porque quando governadas pela
cólera nada de melhor fazem do que acrescentar-nos defeitos. Começamos inimigos
das razões e acabamos inimigos dos homens.
Discussão. Cada um para
seu lado. Perde-se de vista o essencial na confusão do acessório. Passada uma
hora de disputa já não se sabe o que se procura na discussão. Uns atravancam-se
com as palavras. Outros, entusiasmados, não entendem o que se lhes objecta.
Outros ainda baralham e confundem o que se disse, pretextando uma fraqueza
súbita nos rins (Montaigne por sinal sofria dos rins).
E depois também temos os
que acabam por se render às razões contrárias, mas… cito textualmente: afectando
por ignorância despeitada um desprezo orgulhoso, ou com ar de imbecil modéstia,
a sua renúncia à luta.
Discutir.
Há quem faça valer o poder
da sua voz e dos seus pulmões. Há quem recorra à injúria. Há os que maçam o
interlocutor com preâmbulos e digressões inúteis. Eu sei lá! E muitas vezes a
agilidade argumentativa do outro vence os nossos sentidos, mas de modo nenhum
nos abala a convicção.
(Pergunto-me como seria
este intransigente Montaigne nas suas relações pessoais.)
Amo e honro o saber
como a mais nobre e poderosa aquisição dos homens. Mas naqueles que nele
alicerçam a sua fundamental capacidade e abdicam da inteligência na memória e
nada podem senão pelos livros, ah, nesses aborreço eu um pouco mais do que a
estupidez.
A sabedoria, ou a
sapiência, pode não melhorar o espírito. Pode até pesar sobre eles como massa
indigesta, pode até sufocá-los, aos espíritos.
Saber mais é uma coisa,
saber melhor é outra, e mais compensadora, coisa.
E lá diz o Montaigne: não
ganha quem corre mais, ganha quem corre melhor.
A forma e o conteúdo, a
velha querela intelectual.
Tanto pode fazer de
tolo o que disser a verdade como o que falar mentiras, porque o importante é a
maneira e não a matéria do que se diz.
O meu costume é olhar
tanto para a forma como para a substância, tanto para o advogado como para a
causa.
Pois claro. Toda a gente
pode falar a verdade, com verdade. Mas falar com método e ordem, com prudência
e capacidade, segundo Montaigne, poucos o podem. Não era a falsidade filha da
ignorância o que mais o incomodava: era a inépcia. E confessa ter deixado cair
negócios que lhe eram de bom lucro apenas devido à estupidez que punham nos
argumentos aqueles com quem negociava.
Para os criados e
subordinados, Montaigne estava sempre pronto a usar de paciência e tolerância
se se tratava de erros ou de faltas. O que lhe fazia perder a paciência eram as
idiotices e teimosias das alegações dos que falhavam, as desculpas, as defesas.
Acomodo-me melhor com os erros do que com a leviandade, a impertinência e a
estupidez.
E também ocorre aquilo
para que o divino Platão alertava: o que eu acho insano não o será devido à
minha própria insanidade? Não serei eu o culpado? A minha opinião não se poderá
voltar contra mim?
Erro universal entre os
homens: os argumentos que usamos em matérias incertas podem voltar-se contra
nós.
Quantas vezes ao falar do
vizinho não zombamos de nós mesmos?
Quantas vezes detestamos
nos outros os defeitos que também são nossos?
E saborosas são as
palavras do nosso sábio a respeito disso: É dever de caridade que quem não
pode arrancar de si um defeito o procure arrancar de outrem em que esse defeito
porventura terá raízes menos duras e menos profundas.
Não é resposta quando
respondemos a alguém que nos aponta um defeito dizer que esse defeito também
ele o tem.
Montaigne manifesta-se
contra a gravidade, a empáfia, a pose que alguns usam na discussão. A condição
social eventualmente importante empresta autoridade (ilegítima, digo) a
palavras vãs. E quem o escuta, esmagado pelo peso da importância dos actos
pensará que um senhor tão respeitado e temido terá por força em si capacidades
invulgares de juízo. Sim, um homem a quem deram tão alevantadas
responsabilidades e cargos não pode deixar de ser mais hábil e dotado do que
aquele que ao passar o saúda de longe, aquele que ninguém conhece e a quem
ninguém chama.
E teríamos ainda os que na
discussão se refugiam no silêncio. Um silêncio que pretende ser de
subentendidos. Que pretende convencer os outros de que o silencioso sabe mais,
muito mais, do que o que quer dizer, e que assim desarmará por completo quem se
lhe pretenda opor no combate das razões. Este ficará sempre com a sensação de
estar a proferir irrelevâncias perante aquele cujo silêncio superior dá nota de
voar muito mais alto.
Megabiso, sátrapa persa do
século V, foi visitar Apeles à oficina. Esteve muito tempo calado, até que
desatou a língua e se pôs a comentar as obras que apreciava. Apeles deixou-o
falar e por fim disse-lhe: enquanto estiveste calado parecias uma grande
coisa com todos esses colares que trazes e esse luxo no vestir. Mas agora, que
te ouviram, até os moços da oficina se riem de ti.
Diz Montaigne muito
judiciosamente (como sempre, ou quase): o que admiro nos reis é a multidão
dos seus admiradores. Diante deles tudo se deve inclinar e submeter, salvo a
inteligência. Não foi a minha razão que eu ensinei a curvar-se e a flectir-se,
foram só os meus joelhos.
Da argumentação dos tolos
diz-se que por vezes é acertada. O caso é ver até onde eles podem compreender a
matéria; é investigar de onde lhes nasceu o discurso competente, as harmoniosas
razões. Investigar e perceber que todas essas coisas não são deles. Eles
têm-nas em depósito. Atiram-nas muitas vezes ao acaso e cabe-nos a nós dar-lhes
importância.
Nada me irrita tanto na
estupidez como a satisfação que tem de si própria, maior do que a que,
razoavelmente, pode ter qualquer inteligência.
Há assuntos que nos podem
levar a considerar um homem bastante sabedor, no entanto, se queremos
avaliar-lhe qualidades mais autênticas, mais próprias, ou intrínsecas, e toda a
força e beleza do seu espírito, bom seria indagar do que é mesmo dele e do que
exactamente dele não será; ou o que se lhe deve apreciar e louvar de talento
pela escolha do assunto, pela disposição, pelo ornamento e pela linguagem que
conferiu áquilo que não lhe pertencia.
Não ousar falar
francamente de si envolve alguma falta de coragem – estou
a citar. Uma inteligência firme e elevada, que tem juízos sãos e seguros,
usa em todas as circunstâncias os exemplos próprios como coisa alheia e
apresenta o seu testemunho como apresentaria o de um terceiro. É preciso passar
por cima de regras vulgares de civilidade, e isso em favor da verdade e da
liberdade.
Continuo a citar: ouso
não só falar de mim, mas falar só de mim; engano-me no caminho e fujo ao meu
assunto quando falo de outra coisa. Não me estimo tão imoderadamente nem estou
tão preso e metido em mim que não me possa distinguir e considerar à parte,
como a um vizinho ou a uma árvore.
É erro não ver até onde
vai o próprio valor, ou dizer mais do que aquilo que se vê.
Devemos mais amor a
Deus do que a nós mesmos, conhecemo-lo menos, mas falamos dele quanto nos
apraz.
Discutir... ui!
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