AS AVENTURAS DO DINHEIRO
Uma
inferição pouco comum, com respeito a dinheiro e à moral dele: os homens do
dinheiro, os financeiros, sempre e sem descanso procuraram fórmulas e motivos
que excitassem a euforia no povo miúdo.
Estamos
num tempo que em pontos de ordem financeira talvez nenhum de nós esperasse um
dia viver. Tempos e costumes que se contêm numa sinistra palavra que nunca
contámos pronunciar a nosso respeito por ser mais própria de tempos remotos ou
de temas de ficção. E essa palavra é bancarrota. Instituições em bancarrota.
Países em bancarrota. Coisas do passado que se lêem em romances.
E
à colação da bancarrota vem um nome que fez história nas vidas económicas e
financeiras internacionais do século XVIII; John Law, escocês, batoteiro,
visionário, genial, percursor da vida aventurosa e fictícia do capital
financeiro.
Vamos
lá a ver se lhe consigo contar capazmente esta história moral.
John
Law nascera em Edimburgo 44 anos antes da morte de Luis XIV. Era filho de um ourives.
Era um barra em matemática.
Quanto
ao aspecto, este John Law, dizem, era uma figura elegante, de traços
aristocráticos, expressão desenvolta e maliciosa, muito apreciado pelas
mulheres. Ponto fraco? O jogo. Ponto fraco e ponto forte, quando ganhava, está
bem de ver. E no jogo, Law era um daqueles científicos, racionais, um
calculista das probabilidades, bom em matemática como ele era. Gabava-se da
infalibilidade de umas martingalas, um dobrar de paradas sobre o pano verde.
Mas apesar disso perdia muito dinheiro.
Vai
de Edimburgo a Londres e prossegue na vida de casinos e de conquistas
femininas. Por causa de umas saias disputadas com um elegante londrino, bate-se
com ele em duelo e mata-o. É preso. É condenado à forca.
Mas
a corte que o julgou pensa melhor no caso e admite que um duelo não pode ser
caso de forca. E mais importante do que isso, John Law, através de algumas
senhoras com quem se relacionara, dispõe de conhecimentos grados e preciosos no
mundo judiciário, e acaba por ser o rei Guilherme III a conceder-lhe um perdão
e a devolvê-lo à liberdade. O mais aborrecido é que o irmão do assassinado
também tem uns pauzinhos influentes para mexer, e recorre, ao abrigo de uma lei
escocesa, de onde se segue que John Law vai de novo bater com os costados na
enxovia.
Mas
não aquece o lugar nos calabouços. Evade-se. Só pára em Amsterdão. Como é que
sobrevive em Amsterdão? À pala do jogo, claro. Começa finalmente a ganhar.
John
Law ganha muito dinheiro ao jogo em Amsterdão. E estuda o funcionamento da
banca da cidade. E começa a especular em câmbios, aproveitando as facilidades
que o Banco de Amsterdão lhe dá. Internacionaliza-se. Especula sobre as casas
bancárias de toda a Europa. Percebe que aprendera a dominar certas técnicas
financeiras e ala de Amsterdão.
Fixa-se
por um tempo em Itália, para voltar à Escócia em 1700 e propor ao parlamento de
Edimburgo um mirífico esquema financeiro que duplicaria a riqueza nacional.
O
plano de Law é rejeitado pelos escoceses e ele parte para Londres. Depois para
Bruxelas. Chega a Paris. De casino em casino vai travando conhecimentos,
ganhando, perdendo, esbanjando, até encontrar no duque de Orléans, sobrinho do
rei, um companheirão de estroinices.
O
príncipe deixa-se fascinar com as ideias de Law quanto a dinheiros públicos. Ficam
amigos. D’Orléans
faz questão em que o amigo escocês apresente as suas ideias inovadoras a
Camillat, controlador geral das finanças do reino.
Camillat
ouve John Law com toda a atenção e expõe o plano a Luís XIV, que dá a ideia de
não ir muito fora dele, mas que solta um grito de horror quando se apercebe de
que o autor daqueles planos é um huguenote –
um protestante.
-
Não e não. Palavra de rei!
-
Ah, pois é, huguenote… mas ouça majestade…
-
Não, já disse! Que é lá isso, menino? Ai que temos o caldo entornado. Palavra
de rei. Não é não. E ainda te digo mais: não seria mau que esse huguenote fosse
amarrando a trouxa e se pusesse a cavar destes reinos o mais depressa possível.
Mas
Luis XIV já estava com os pés para a cova. Há quem aconselhe Law a ir-se
deixando ficar, o rei estava por um fio. E Law, inconformado, insiste: o meu
sistema financeiro precisa da França…
e a França, já percebi, precisa do meu sistema financeiro… é muito simples…
Mas
mesmo assim Law deixa Paris.
Luis
XIV agoniza. John Law está na Hungria. Recebe certo dia notícias de França, e a
primeira coisa que faz é fretar uma carruagem que o leva a Paris. Quando chega,
Luis XIV está morto.
No
dia 1 de Setembro de 1715, o rei Luis XIV entregou a alma ao Criador e uma
esperança nova, uma esperança de regeneração, cresceu no coração dos franceses.
A morte do rei é sentida como uma libertação das submissões aos velhos métodos
de governo, é uma oportunidade aberta a novas experiências. Abaixo a velhada.
Viva a juventude.
Luis
XV tem 5 anos. Não pode governar. A França, liberta do velho rei, sonha com uma
nova vida de prosperidade e de festa, e quer na regência do reino, a
conduzi-los na nova vida, alguém desempoeirado, ousado. E esse alguém vai ser o
regente do reino, o duque Philippe d’Orléans.
Que tem 41 anos. Que é sobrinho do falecido monarca; falecido monarca que, por
sinal, nunca o quis perto dos negócios de Estado.
Philippe
d’Orléans era homem empreendedor, ainda que
marginalizado pelo tio, ainda que desempregado régio que se virara para a má
vida, os copos, o jogo, as zaragatas, os duelos, as aventuras, certamente para desafogar
a sua energia vital. Nunca esquecendo, entretanto, a sua condição de príncipe
de França.
Elevado
ao poder, Philippe d’Orléans
não se esquece dos seus companheiros da boa vida e nomeia alguns deles altos
dignitários e ministros, a começar pelo 1º ministro, um certo abade Dubois, e a
continuar num intelectual honesto, o duque de Saint Simon.
E por aqui se começa
a produzir uma reviravolta nos sistemas e estruturas de governo. Secretários de
Estado ao ar, e em lugar deles conselhos senhoriais – o duque de Noailles à frente do conselho
de Finanças.
Às
finanças do reino deixara-as Luix XIV em mísero estado, um descalabro total. A
dívida pública orçava pelo bilião e meio de francos – verba descomunal para o tempo. Os cofres
régios (ao contrário dos de Portugal em 2015) estavam vazios. Os títulos do
tesouro só eram aceites por 20 ou 30% do seu valor nominal. O esquema de
cobrança de receitas do Estado estava num caos. Os impostos eram irregularmente
distribuídos e só uma parcela deles entrava nos cofres reais, perdendo-se o
restante nas bolsas de oportunistas, traficantes e intermediários – não, não é,
é a França de 1715. Noailles organiza uma câmara de justiça para rever e
reformular um a um todos os processos, todas as contas, todos os
enriquecimentos havidos a custa dos dinheiros do Estado.
É
no dia 24 de Outubro de 1715 que John Law comparece perante o conselho de
finanças de França e expõe as suas ideias. O discurso é claro, nítido e
caloroso, qualidades discursivas que sempre dispõem bem quem ouve, que sempre
dispõem à euforia, como é próprio do capital e do lucro rápido e fácil.
Todavia,
o duque de Noailles sente-se tolhido de preconceitos. São as ideias de Law que
lhe soam algo demasiado novas e quiméricas, por um lado; por outro, faz-lhe
confusão partilhar o poder das finanças régias com um estrangeiro.
O
ponto essencial, para Law, era centralizar. Criava-se um banco régio onde todas
as receitas do Estado seriam concentradas. Esse banco central passaria a emitir
títulos que seriam entregues em pagamento a todos os credores do Estado, os
quais, credores, teriam sempre a alternativa de trocar esses papéis por
dinheiro contado.
Reza
a acta da reunião o seguinte: o senhor Law pretende que toda a gente seja
atraída para a posse destes títulos bancários mais do que por moeda sonante, em
vista da facilidade maior de pagamentos em papel e pela certeza de receber
sempre que desejar.
Law
é que esconde uma parte do jogo. Não fala das despesas e dos riscos de transporte
de sacos cheios de dinheiro. Não fala na sua ideia de multiplicar os símbolos
monetários muito possíveis de confundir com riqueza e património reais. Ainda
assim, não convence o conselho de finanças. Não era aquele o momento mais
próprio para levar a cabo experiências arriscadas. Mas John Law não desanimava
por tão pouco.
John
Law manobra, suborna, bajula, seduz, tenta capitalizar para a sua ideia as
acrimónias que havia entre os membros do gabinete do regente, fala do gosto
pela novidade que era a marca cultural da sociedade depois da morte de Luis
XIV.
Até
que em Maio de 1716, no dia 2, o duque de Orléans o autoriza a criar um banco,
não régio, um banco privado, chamado de banco geral, com um capital de 6
milhões divididos em 1.200 acções nominativas de 5.000 francos cada. O banco
beneficiará do privilégio de poder emitir títulos de todo o numerário depositado
nas suas caixas. Tais títulos serão valorizados não em francos correntes mas
numa outra moeda que se chamará escudo –
ou escudo bancário.
Nunca
mais ninguém quereria negociar sem ser em escudos bancários – que representavam um peso real e
constante em metal, ao contrário do suporte do franco, sempre a diminuir na sua
correspondência com os valores em ouro e prata. E como este banco geral auferia
de uma honesta corretagem sobre as operações que fazia, os lucros começaram a
ser substanciais, a pontos de poder, ao cabo dos primeiros seis meses, oferecer
aos accionistas uns bons 7,5% de dividendos.
O
regente do reino anda contente que nem um rato. O duque de Noailles finge-se
rendido aos estratagemas de Law e convida os credores da coroa a deixarem-se
ressarcir em títulos do banco geral.
John
Law, se não inventava, pelo menos punha em acção a modalidade financeira da
emissão de títulos do tesouro. Pensa num banco de negócios. Mas o capital do
banco geral, para Law, era um capital adormecido. Era preciso acrescentar-lhe
movimento, inventar-lhe uma aventura financeira de maiores proporções.
Desde
1682 que a França possuía, pelo menos teoricamente, as terras do vale do
Mississipi, na América, um território imenso que ia do golfo do México ao
Canadá. Tinham-lhe chamado Louisiana, honrando o rei Luis XIV. Falava-se de
mirabolantes riquezas de ouro e esmeraldas escondidas no subsolo. E era, além
do mais, um espaço onde, em 1716, não havia mais do que duas centenas de
colonos franceses. John Law, o nosso financeiro, pensa no assunto.
E
tanto pensa no assunto John Law que entrevê ali uma excelente ocasião de
desenvolvimento dos dinheiros do seu banco. O direito de exploração do
território fora dado a um negociante parisiense chamado Antoine Crozat, que
dessa concessão não sacara ganhos que se vissem e que por isso a ela
renunciara.
Law vê o furo, O caminho estava aberto à ousadia aventureira do
capital. Era urgente fundar uma companhia, uma companhia do ocidente, para
tomar o lugar do tal Antoine Crozat e explorar as riquezas do vale do
Mississipi. Um privilégio real é obtido, ainda que à custa de algumas
restrições.
A
companhia do ocidente, por 25 anos, ficaria com o monopólio do comércio com a
Louisiana. Porém, o capital da companhia, 100 milhões de francos, seria
integralmente subscrito em títulos do Estado e em condições de paridade.
Acontece
que tais títulos haviam perdido 70% do seu valor, donde, o capital de 100 milhões
se ficar por uns tristes 30 milhões. Mas a companhia avança. Quase sem
capitais. Apenas com uma receita de 4 milhões –
cerca de 10 milhões de francos novos.
Com
meios tão exíguos, como seria possível à companhia do ocidente valorizar um
território tão desmesurado como o da Louisiana? Law sabe dos perigos, mas,
jogador, tem uma confiança inaudita na sua sorte.
Começa
a construir-se uma frota marítima. Reúnem-se os contingentes de futuros colonos
franceses da América, arregimentam-se soldados. São prometidos condados e
ducados americanos aos aventureiros que queiram embarcar em mais esta novíssima
aventura do capital financeiro em movimento.
A
9 de Fevereiro de 1718 é nomeado um governador. Chamava-se Jean Baptiste
Lemoyne, era senhor de Brieuville, era homem teso, oficial da tropa, de origem
canadiana.
Em Junho de 1718, 800 novos colonos e soldados desembarcam nas
costas da Louisiana. 68 deles são escolhidos pelo governador para habitar um
lugar selvagem e pantanoso, mas muito bem situado, nas margens do Mississipi. E
era bom que se desse um nome ao sítio. Qual é que há-de ser? Talvez um nome que
fosse uma homenagem ao regente do reino e padrinho da aventura, o senhor duque
de Orléans. Olha, calha bem. Está dito. O sítio fica a chamar-se Nova Orleans.
John
Law, o escocês, o jogador de casino, é o imperador do novo mundo.
Cantou
assim uma velha índia, ao ver abaterem-se as árvores que serviriam de matéria
prima à construção das primeiras casas da Nova Orléans: diz-me o Grande
Espírito que tempos virão em que entre o rio e o lago haverá tantas casas
habitadas por homens brancos quantas as árvores que crescem nesta floresta.
Os
custos da colonização eram astronómicos. Quem andava pior do que uma barata era
o conselheiro das finanças do reino, o duque de Noailles. Mas o regente
continuava embalado na conversa de John Law e substituía o Noailles nas
finanças. Law marcava pontos. O problema era o parlamento de Paris. Mas Law
todo ele era companhia do ocidente, todo ele era Nova Orléans. Todo ele era
Mississipi.
O
negócio das acções da companhia do ocidente corria numa pequena rua chamada
Quincampoix, no bairro dos ourives e dos cambistas.
De
princípio, as transacções eram feitas em lojas, mas rapidamente essas lojas
foram pequenas para tanto movimento e o comércio das acções passou para o meio
da rua, que por acaso estava interdita a trânsito de carruagens. A pequena rua
Quincampoix transformava-se na Bolsa de Paris.
A
confusão era muita. As desordens não eram raras. Foi preciso vedar as
extremidades da rua com grades de ferro e pôr piquetes de soldados a
guardá-las. Um pobre corcunda ganhou rios de dinheiro só por alugar a sua
corcunda como escrivaninha aos agiotas com pressa de trocar assinaturas.
John
Law vai apimentar o jogo fazendo saber que ele mesmo, em pessoa, irá adquirir
um grande pacote de acções acima do preço do momento e só pagáveis a três
meses.
É
nesta ambiência de euforia e ganância que vão começar a acontecer histórias
desgraçadas, uma delas a triste história de Manon, Manon Lescaut, que o Abbé
Prevost verteu em romance –
best seller do séc. XVIII –
e que Massenet e Puccini puseram em música.
Mas
claro que os lucros da empresa do Mississipi só apareceriam a prazo muito
alargado. Law sabia disso. E queria benefícios imediatos. Para tanto, manobrou
de forma a que outras companhias se fundissem com a sua. Em concreto, as velhas
e moribundas companhias de comércio ainda do tempo de Luis XIV, a companhia do
Senegal, a companhia das Indias ocidentais, a companhia da China.
Parecia
suficiente, mas não lhe chegava. John Law consegue fazer-se adjudicar outras
concessões, como a do fabrico de moeda, ou o contrato do tabaco. Tudo reverterá
em investimento da companhia do Ocidente, que toma então o nome de Companhia
das Ìndias.
O
curso e a cotação das acções sobem, de dia para dia, de hora para hora. Ganham-se
fortunas colossais em poucos dias. Há lacaios cheios de sorte e de esperteza
bolsista que se tornam milionários do dia para a noite.
E
as novas do Mississipi chegavam a Paris envoltas num aroma exótico e
encantatório de Eldorado.
A especulação estava a acelerar. O jogo dos títulos
da companhia do Mississipi, em risco, em aventura, em adrenalina, deixam os
jogos de casino a perder de vista, como ingénuas brincadeiras de garotos.
Voltaire
escreveu: é um jogo novo e prodigioso onde todos os cidadãos jogam uns
contra os outros.
O caso Manon Lescaut vem já a seguir neste blog.
E digam lá se não está já tudo inventado...Esta história é muito familiar aos nossos tempos. Obrigada Joel por tão interessante informação.
ResponderEliminarE digam lá se não está já tudo inventado...Esta história é muito familiar aos nossos tempos. Obrigada Joel por tão interessante informação.
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ResponderEliminarFeliz Ano Novo e... continuação de boas QUESTÕES DE MORAL!