SHAKESPEARE 400-SIR JOHN GIELGUD
É ano de Shakespeare.
Há
que evocar os grandes actores shakespeareanos.
Cá está um. E dos mais ilustres.
Sir John Gielgud.
Quem? A rapaziada nova tenho
a certeza de quem nem sequer ouviu falar dele, quanto mais vê-lo no cinema. Os
mais velhos, como eu, claro que sim.
Evidentemente que quem o conhece, tal como eu, conhece-o do
cinema, onde teve incontáveis participações em filmes de prestígio, certamente,
mas sem ser um actor popular, uma estrela de Hollywood, e raramente, que me
lembre, em papéis principais. O grande papel em que me recordo bem dele, assim
de repente, é num filme de Alain Resnais, Providence, com Ellen Burstyn e Dirk Bogard, em que fabulosamente
interpretava um escritor canceroso e alcoólico sempre deitado na cama, que confundia
as ficções que criava com a realidade da própria vida familiar. E diz ele que
foi um dos filmes que mais lhe agradou fazer.
No cinema foi de preferência aristocrata, alta patente
militar, cardeal, papa, rei… e mordomo. Mordomo em Arthur. Achou divertido e interessante
o seu trabalho nesse filme, Arthur,
com Dudley Moore e Lisa Minelli. Uma fantasia sobre um rapaz multimilionário
que guiava um Rolls Royce
a deitar dinheiro pela janela fora. Gielgud fazia de mordomo num sentido mais
ou menos paternal, tentando ajudar o rapaz milionário a crescer.
Filmes. Santa Joana, Beckett, Chimes at Midnight, Carga da Brigada Ligeira,
Crime no Expresso do Oriente, O Homem Elefante, Prosperos’s Book, Arthur,
Gandhi – assim de
memória, e os mais conhecidos.
Compreendeu depressa a enormidade das diferenças entre
representar em cinema e em teatro, e sobretudo para ele, depois de tantos e
tantos anos a actuar ao vivo sobre as tábuas.
Compreendeu a absoluta necessidade de paciência no trabalho
cinematográfico, as esperas de horas e horas entre dois takes, duas cenas, duas mudanças de
luz e de décor.
Compreendeu a prontidão mental e física que era precisa para
representar sem preparação, sem aquecimento, e sem continuidade, no momento
próprio, muitas vezes só um olhar, muitas vezes apenas uma reacção à deixa de
outro actor, outras vezes uma longa tirada, uma cena inteira, um amplo plano de
conjunto.
Era mister concentrar-se no pensamento, na ideia que está
por detrás da acção propriamente dita e ser parcimonioso e simples na execução
do que lhe era pedido. No cinema tudo depende dos movimentos da câmara, e um
actor nunca sabe ao certo quais as cenas que no final serão aproveitadas e
montadas. Tudo ao contrário do trabalho teatral, claro, em que o actor, desde
que sobe o pano, controla o espectáculo e se controla a si mesmo.
No cinema, o actor decide a sua interpretação, representa um
plano largo, aberto, geral, e depois tem de estar preparado para as repetições
em planos mais apertados, em detalhe, um gesto, uma cara, os planos mais pequenos
que vão completar uma cena. Vem alguém e diz “ponha a mão em cima do saco ao
dizer esta frase”. Vem outro e diz “toque com o dedo na sua gravata”. E
fazem-se coisas sem se saber por que se fazem, e é preciso conservá-las na
memória pelo menos durante uma semana, para fazerem raccord. O que é uma tremenda chatice,
porque se é obrigado a repetir minuciosamente gestos, movimentos que uma pessoa
naturalmente faz sempre de maneira diferente.
A assistente de continuidade está sempre à coca, lembrando
ao actor os exactos movimentos e gestos que fez duas semanas antes, quando o
plano principal foi filmado. E o pior de tudo é que, seja o que for que o actor
faça, de bom ou de mau, uma vez aceite pelo realizador, ficará gravado para
sempre. Nenhuma chance de improvisar, de aperfeiçoar no espectáculo seguinte.
Não há espectáculo seguinte.
John Gielgud começou bastante cedo, mesmo assim, a fazer
cinema, 1931, em Londres. Mas é em 1935 que faz o seu primeiro filme
importante, O Agente Secreto,
com Hitchcock. Era uma estafa representar todas as noites no teatro e estar às
7 da manhã fresquinho no plateau
para filmar.
E então começa por não gostar de cinema; ou não gostar de
fazer cinema. A vantagem, está-se mesmo a ver, era ser incomparavelmente mais
bem pago do que no teatro. Mas também, por então, não tinha grande confiança em
si enquanto actor de cinema, e quando via o que tinha feito nos filmes
detestava o seu próprio trabalho.
Quando comecei a fazer
filmes, nos anos 30, sempre pensei que havia que ter o cuidado de ser
exactamente o que parecia, o que fez de mim um tímido perante a câmara.
E entre 1936 e 1952 não trabalha em cinema.
Com o tempo e a prática
deixei de me preocupar com a imagem que a câmara dava de mim, perdi a vontade
de me exibir, e procurei seriamente e somente viver a personagem.
Lembro-me de James Mason em Júlio César e da técnica impecável
que era a dele ao exprimir toda a personalidade do papel, tudo o que passava
pela mente da personagem, contudo sem recurso a caretas ou exageros de
expressão facial. E então comecei a encarar o cinema com outra atitude,
estudando o modo como os actores de cinema restringem ao mínimo e eficazmente
as expressões faciais.
Só em 1952 se sente bem a fazer cinema. Foi com Joseph Mankiewicz,
no papel de Cássio, precisamente em Júlio Cesar – com Marlon Brando.
Nesse filme, Julio César,
era o único inglês do elenco – não contava com James Mason, que era inglês mas
que há muito se mudara para Hollywood. E o receio que tinha era que os outros
actores, americanos, pensassem alguma coisa do género “olha lá vem este grande
senhor do teatro londrino a querer ensinar-nos a fazer Shakespeare”. Por isso
andara mudo e quedo nas filmagens, e nem uma nem duas quanto aos estilos de
representação ou de declamação de cada um.
A propósito desse filme, Júlio César, refere a modéstia do então jovem Marlon Brando, a quem, a
pedido dele, deu algumas sugestões para o célebre discurso de Marco António em
que Brando tem um dos seus momentos mais geniais.
Um dos menos felizes filmes em que entrou tinha por título O Primeiro Ministro e ele fazia de Disraeli, um dos maiores estadistas
britãnicos de sempre. Que era de ascendência judaica.
Por ter um nariz grande, muita
gente se convenceu de que John Gielgud era judeu, ou que, no mínimo, teria
sangue judeu, o que o indicava particularmente para papéis de judeu. Chegou a
perguntar ao pai se havia na família alguma pinga de sangue hebraico – e até
porque, pensava, boa parte dos melhores actores do mundo eram judeus. Mas não.
Não havia nada de judeu na família.
Mas nem foi por parecer judeu que
ele teve muita sorte com os papéis em que fez de judeu. Shylock, o principal
papel do Mercador de
Veneza, por exemplo, judeu. Nunca teria sucesso com ele.
Tentara representá-lo no teatro como um monstrengo, feio e sujo e com sotaque
estrangeiro. Mas em 1938 já os nazis andavam por aí e ele entendeu que o
público inglês gostaria de ver em Shylock um judeu simpático, quase um herói. E
sentiu que era isso que como actor romântico esperavam dele.
Na escola de teatro, Gielgud teve a dita de ouvir
pessoalmente uma lição de Bernard Shaw. Dessa sessão reteve ele uma ideia
principal, uma recomendação de Bernard Shaw aos jovens actores: nunca deveriam
aceitar como cachet menos de 8 libras por semana – estava-se nos anos 20.
Sempre quisera desempenhar no
palco shakespeareano o papel do rei Henrique IV. Nunca tivera essa dita. De
maneira que ficou encantado quando Orson Welles o convidou para o papel no seu
filme Chimes at Midnight (As Badaladas da Meia Noite), em
que o próprio Welles fazia de Falstaff.
Gielgud tinha a noção de que o
filme, fascinante, repleto de momentos interessantíssimos, não fora um êxito
popular. Mas adorou trabalhar com Welles. Foi um filme feito aos bochechos,
rodado ora aqui ora ali, como quase sempre com Welles, e devido aos eternos problemas
que ele tinha de financiamento. Como tal, Gielgud só viu Welles a representar
Falstaff depois do filme pronto, e mesmo assim só quando o viu no cinema.
As cenas da sua morte, enquanto
Henrique IV, obviamente, foram rodadas no edifício abandonado de uma antiga
prisão, numas colinas perto de Barcelona. O pior é que as janelas não tinham
vidros e o frio de Novembro entrava por ali dentro e enregelava o pessoal.
Gielgud estava de malha nas pernas e uma leve camisa de noite. Sentava-se no
trono e tinha uma resistência eléctrica aos pés para se aquecer, enquanto Orson
Welles gastava as últimas pesestas do orçamento a comprar uma garrafa de brandy
para o manter quente e operacional.
No Old Vic, John Gielgud aprende o seu Shakespeare. E o Old
Vic pagava mal, e os actores, por via disso, quase não tinham vida social.
Gielgud chega ao famoso Old Vic em 1921 como jovem actor não
remunerado e ao abrigo de um acordo entre o lendário teatro e a escola de onde
ele provinha. A companhia estava cheia de velhos actores que de cinco em cinco
minutos davam saltadas ao bar e se exprimiam numa linguagem execrável. Começou
a fazer papéis de algum calibre logo em cinco peças, uma delas desconhecida e
sendo as outras quatro nem menos do que Hamlet, Peer Gynt, Henrique V e Rei Lear.
A
primeira fala que proferiu no palco foi: “aqui está o número dos franceses
mortos” - do Henrique V.
Em
1929 foi Romeu. Sem êxito. A peça, segundo a concepção do director era para não
passar das duas horas de representação e o resultado foi uma algaraviada dita
às pressas que o público mal percebeu. Depois vem um papel no Mercador de Veneza; depois o Malade Imaginaire, de Moliére, o Ricardo II, no protagonista. Sentiu-se
muito orgulhoso de si por lhe terem dado o papel, que seria um primeiro sucesso
pessoal.
Diz
ele que o celebérrimo Old Vic, naqueles anos 20, pelo menos, tinha isso de bom:
um actor podia experimentar as suas possibilidades sem ser nem precocemente
crucificado nem precocemente hiper-elogiado no dia seguinte. Depois foi Macbeth e os críticos não apareceram. O
sucesso ficou mais a dever-se aos leais frequentadores do Old Vic. Quando saiu,
entraram para a companhia nomes que dariam muito que falar no futuro, Tyrone
Guthrie, Charles Laughton, Flora Robson, James Mason.
Nos
seus começos, John Gielgud não se considerava um bom actor de composição, um
daqueles que, como ele dizia, representavam preferencialmente personagens
histéricas e neuróticas Mas pensava que se representasse com verdade talvez
isso fizesse dele, algum dia, um bom actor. Nos papéis de jovem, diz ele que a
tendência era para o exibicionismo, e por algum tempo a ambição dele não
passava de poder vestir em cena belos fatos e poder sentar-se nos belos sofás de
uma comédia francesa. Foi no Old Vic que perdeu essa mania.
Viu-se
sempre a si mesmo como actor um tipo frívolo, em comparação com outros dos seus
colegas shakespeareanos. Sempre adorei o lado barato, vulgar, do teatro, as
cartas dos admiradores, a adulação de certas pessoas para com o actor.
Pois, enquanto outros artistas da mesma estatura se
preocupavam mais com a qualidade intrínseca de uma representação do que com o
efeito que faziam no público, ele dizia com os seus botões: hoje está uma
boa casa, eu estou a ir maravilhosamente no papel, já fiz uma quantidade de
efeitos e tenho que me lembrar deles para os repetir amanhã à noite.
É melhor aprender as palavras do texto depois de se ter
ensaiado as movimentações de cena e ter reconhecido os espaços e a relação com
as outras personagens. Na opinião dele é isso que evita que o actor desate a
papaguear pura e simplesmente o seu texto, com perfeiçâo, mas sempre com
prejuízo da expressão.
Nunca lhe deu jeito trabalhar um papel em casa. Era dos que
desenvolvia o trabalho nos ensaios com os colegas, entre críticas, sugestões,
experimentações.
Ao estudar os textos, temeroso dos longos discursos das
personagens shakespeareanas, optava por concentrar-se primeiro nas pontuações,
vírgulas, pontos finais, de exclamação, de interrogação, assim estava já a
respirar o texto.
Em
1929-30 faz Hamlet, papel em que ficaria como um dos máximos intérpretes de
todos os tempos. Tinha 25 anos.
Esses
anos 1929-1930 foram muito gratificantes . Era enfim o jovem actor que começava
a voar pelas próprias asas, e nesse período começou a desenvolver grande
interesse pela encenação.
Interessante,
a propósito, a sua visão do trabalho dos encenadores. O genuino encenador dificilmente se poderá dizer que existe mesmo.
Muitas das suas aparentemente originais ideias resultam de memórias e
impressões de peças que viu. É difícil definir o que é de facto um encenador,
para além de tentar criar um bom ambiente nos ensaios e de saber tecnicamente
como dispor os actores em cena em cada momento.
Cá
para mim, e agora falo eu, isto que Gielgud diz como sendo pouca coisa, já acho
uma grande coisa, sobretudo o saber colocar os actores em cada cena…
Muitos
dos melhores actores ingleses eram admiráveis encenadores. Pelo menos ele assim
os considerava. E talvez porque muitos deles encenavam as peças em que também
representavam. Mas a certa altura começou a voga dos encenadores que nunca
tinham sido actores, Peter Brooks, Peter Hall, Komisarjevsk. Mas os actores em
geral sentiam-se mais à vontade com encenadores que eram ou tinham sido
actores. Porque esses compreendiam mais facilmente os problemas técnicos do actor.
O
grande problema do actor-encenador é a tentação a que dificilmente resiste de
impor ao elenco o seu próprio estilo de representar, enquanto um encenador outsider, por assim dizer, o que mais
gosta é de fazer sobressair a individualidade de cada intérprete, e assim criar
mais um contraste de personalidades artísticas do que uma unidade de estilo – o
que não raras vezes produz resultados extraordinários.
Quando
lhe propuseram Hamlet, a maior peça
de todos os tempos em que o protagonista é um jovem, pensou que arriscaria um
fiasco e que não seria capaz de melhor do que uma má cópia de um qualquer dos
Hamlets que tinha visto – uns doze. Começou a estudar o papel e a entrar na
personagem de Hamlet como se estivesse a aprender a nadar. E depois compreendeu
que o texto o agarraria e ele agarraria na personagem desde que procurasse nela
a mais profunda verdade.
Pensava
que muitos actores passavam por alto os aspectos desagradáveis de Hamlet; ou
que as grandes estrelas de meia idade do teatro eduardiano romantizavam a
personagem, incluindo nelas John Barrymore, que ele admirava, mas a quem
reprovava o enfatizar da hipótese de Édipo do príncipe da Dinamarca.
Ir
ao teatro e ver Hamlet representado
por um actor de 25 anos era uma experiência nova para o público de então. Os
actores da época nunca faziam Hamlet antes de chegarem aos 40. E a juvenilidade
de Gielgud era um espanto novo, uma tensão nova logo nas cenas de abertura.
Em
1939 foi Hamlet no lugar devido, no pátio do castelo de Elsinore, na Dinamarca,
num festival de teatro que Laurence Olivier havia inaugurado dois anos antes –
a Ofelia era Vivien Leigh. A guerra tinha rebentado havia um mês. A tensão era
considerável e juntava-se ao frio e à chuva, e pior ainda na noite em que um
vasto grupo de marinheiros alemães de passagem pela Dinamarca ocupou as
primeiras filas da plateia – um alarme que se provou falso; os marinheiros
alemães deram mostras da maior civilidade.
Em
1944, no Haymarket Theatre, representa Hamlet pela última vez em Londres.
Alguns espectadores tinham-no visto nos começos, aos 25 anos, tinham visto as
suas primeiras récitas, e em 1944 viam as últimas, e consideravam que fora
melhor no papel aos 25 anos.
O
mais sensacional Hamlet da carreira de Gielgud, segundo o próprio, aconteceu em
1936, em Nova York. Nessa altura bateu o record da Broadway em número de
espectáculos seguidos, 101, um record que pertencia a John Barrymore. E o
record de Gielgud manteve-se até aos anos 60, quando foi batido por Richard
Burton, e ainda assim numa encenação dele mesmo, Gielgud. Tinha tido sempre
sorte em Nova York.
Sim,
estava em Nova York como na sua segunda casa. Sempre fora feliz ali, fizera lá
grandes amigos. Vira a cidade crescer e mudar desde a primeira vez que lá tinha
posto os pés, em 1928. Para ele, a 5ª Avenida, da Catedral de St.Patrick até ao
Plaza, era um das mais elegantes artérias do mundo; assim como as torres do
Central Park West a cintilar ao sol eram para ele a visão mais mágica e
romântica que se podia ter de uma cidade.
Voltando
a Hamlet, era de opinião de que
Hamlet não é papel que um actor deva representar tantas vezes seguidas. Há
demasiadas oportunidades nesse papel que encorajam um actor a experimentar todo
o tipo de efeitos e de truques. É preciso ser dirigido por alguém com mão firme
para manter o actor numa linha homogénea de representação. É um papel de uma
violência física inaudita. Tanto que Burton lhe pediu que, como encenador, o ajudasse
a definir as passagens onde podia descansar, uma vez que não queria apoiar a
interpretação na neurose ou na histeria.
Hamlet é uma peça longa e muito conhecida (pelos públicos
mais cultos, evidentemente), e a tentação de fazer dela uma sucessão de números
de efeito, um show-off, em lugar de
apresentar uma personagem e uma trama em progressão, é muito grande.
Quando
decidiu dirigir Burton na Broadway pareceu-lhe impossível conseguir inventar
qualquer coisa de novo, ou de interessante. Estava possuído pelos fantasmas,
não os da peça, mas os dos tantos Hamlets que tinha feito e visto ao longo da
vida. E como Richard Burton não se sentia bem em vestes isabelinas, foi
resolvido que a peça seria encenada com guarda-roupa contemporâneo, as roupas
do dia-a-dia, como se de mais um ensaio se tratasse.
Dessa
vez, o problema com o resto da companhia de actores americanos foi a constante
solicitação que esses actores, formados pelo Método do Actor’s Studio, lhe
punham acerca das motivações das suas
personagens. Mas infelizmente - diz Gielgud – o Método não funciona em Shakespeare. Não se trata de um drama
intelectual, género Ibsen ou Strindberg; em Shakespeare, grande parte das
personagens não são individualizadas, ou individualmente desenvolvidas.
A
título de curiosidade, diga-se que a última vez que Sir John Gielgud
representou Hamlet foi na Òpera do Cairo, uma matiné para as escolas, o teatro
estava à cunha de miudagem. Bem, pensou
ele, é a última vez que farei este papel
maravilhoso. Tenho 45 anos e está mesmo na hora de desistir dele.
Na
primeira récita, e logo na cena de abertura, o actor que fazia de Horatio diz a
frase, “meu senhor, julgo que o vi ontem à noite” (refere-se ao Espectro do pai
de Hamlet, claro) e cai nos braços de Gielgud com um ataque epiléptico. O
público saltou nas cadeiras e Gielgud gritou para os bastidores que descessem o
pano. O actor que fazia de Horatio recuperou para o dia seguinte, mas Gielgud
nunca mais se esqueceu do actor que lhe arruinou a última actuação em Hamlet.
Em Macbeth não se sentia pessoalmente com o estofo
necessário de personalidade, voz e presença para sublinhar o lado guerreiro e
gigantesco da personagem. E então tratou de lhe desenvolver o lado visionário,
um tanto romântico, poético, e com ele alguma debilidade de carácter, essa
debilidade de carácter que surge à superfície quando a mulher o manda matar o
rei Duncan.
Gielgud levantava um Macbeth que, diz ele, era o oposto do
Macbeth de Laurence Olivier, o qual ele considerava o Macbeth definitivo, com
crime e assassínio no coração desde o momento em que entrava em cena.
Durante anos, já mais para a segunda metade da carreira,
andou em tournée
com um one man show
intitulado The Ages of Man
em que recitava Shakespeare. A estreia foi em Nova York e ele por uma unha negra
não faltava a essa estreia por ter ido passar um fim de semana em Havana.
Começara por estranhar o hotel em que se hospedara: estava praticamente vazio.
E no dia seguinte percebeu: a revolução rebentara; Fidel Castro entrava em
Havana. Passou um dia inteiro no
consulado americano à espera de um visto de saída. Chegou ao teatro
novaiorquino duas horas antes da função.
Nunca se sentiu, todavia, muito seguro – ou só mais tarde se
sentiu - a interpretar peças contemporâneas. E começou a ser solicitado para o
teatro moderno em 1956. E assustou-se com a experiência. Em Shakespeare, um
actor treina-se para projectar a voz e a personagem, enquanto em Tchekov se
treina para uma representação intimista. Chegado a Albee, Osborne, Edward Bond,
David Storey ou Harold Pinter, todos eles originais mas estranhos à sua escola,
assustou-se.
Descobriu então que os modernos dramaturgos não gostavam de
discutir as próprias obras, não estavam à vontade, evitavam o mais possível
falar, enquanto ele estava sempre ansioso por se encontrar com eles e lhes
pedir algumas luzes sobre a sua personagem.
Ressentia-se, ao fazer teatro moderno, da falta de uma
estrutura convencional numa peça, das implicações grande parte das vezes
abstractas, dos diálogos sem uma aparente sequência, das referências oblíquas,
onde não havia climaxes nem óbvias entradas e saídas de cena.
Nunca tivera paciência para Brecht, para Beckett. Tinha
dificuldade em lê-los, quanto mais em representá-los, e pensava que se não
tinha o prazer de os ler, o público também não sentiria qualquer prazer em
vê-lo a representá-los. Mas com o tempo acabou por se habituar e adaptar…
Gostava de fazer filmes, e até televisão, sem dúvida, mas… o
teatro era a sua realidade, o teatro e a sensação de uma plateia subitamente
silenciosa e concentrada, um público totalmente rendido às suas palavras, sem
um murmúrio… eram esses os grandes momentos da sua vida.
Ao escrever o livro em que me baseio, An Actor and His Time, John Gielgud citava um actor
seu contemporâneo que, de cada vez que um realizador o convidava para um papel,
respondia: “qual dos meus cinco tipos de velho você quer?” Gielgud tinha um
certo medo de se ouvir dizer as mesmas palavras. Mas enfim, era preciso andar
para a frente e estar agradecido por continuar a ter a oportunidade de dar a
escolher a um realizador entre os cinco tipos de velho que se tem em carteira.
Sir Arthur John Gielgud, nasceu a
14 de Abril de 1904 e morreu a 21 de Maio do ano 2000. Sempre teve um
particular amor pelos animais e descendia de uma família de grandes tradições no
teatro inglês. A avó, Kate Terry, grande actriz do seu tempo, felicitou-o
calorosamente quando ele se iniciou na profissão de que na verdade gostava.
“Mas
não penses que vais ter um caminho atapetado de rosas, porque na vida de teatro,
como em qualquer outra profissão, haverá sempre pedradas e flechas para te
atingir. Sê simpático e afável com todos os teus colegas, mas, se possível, não
cries intimidade com nenhum. É um conselho de meus pais que eu passo para ti,
porque o acho muito avisado. A intimidade no teatro gera ciúmes mesquinhos, o
que se torna muito incomodativo.”
Talvez um conselho que não tenha utilidade apenas para a
gente da vida artística.
Com este texto percorre-se, na minha opinião modesta, uma vida, uma carreira, um tempo "de actor". Não concordo com a expressão "antigamente é que era bom". É bom, sim, rever realidades passadas. E projectar o futuro.
ResponderEliminarParabéns pelo detalhe do texto, deu-me imenso prazer a ler.