quarta-feira, 13 de abril de 2016


                  UM SÍTIO MAL FREQUENTADO

         
            Foi o Eça que o disse. Relativamente a Portugal, claro. Que não era um país, que era um sítio mal frequentado. E se Portugal era isso no tempo do Eça, como lhe  chamariamos hoje?
 
                 

Lord Byron, enquanto frequentador destas paragens, escreveu num poema a nosso respeito: “Poor paltry slaves!” – escravos miseráveis apesar de nascidos entre as mais nobres cenas. “Why, Nature, waste thy wanders on such men?” – com tal gente, ó Natureza, porque desperdiçaste os favores?
 

 
Passeando por Lisboa nos começos do século XX, o grande escritor espanhol Miguel de Unamuno está nas ruínas do Convento do Carmo, arrasado por um terramoto no século XVIII, e pensa na espécie de terramoto íntimo e moral que ainda então – ou já então - ameaçava o povo português. “A mansidão portuguesa só se encontra à superfície; raspai-a e logo haveis de encontrar uma violência plebeia que chegará a assustar-nos”.

               
 
É só lermos os jornais de hoje para aquilatarmos da propriedade destas palavras.
“Sim, sim, o treino de ontem deu indicações bastante positivas”.
“Foi uma reunião muito produtiva.”
“Sabe, tirei ilacções bastante úteis daquilo que vi”. “Pareceu-me uma decisão muito correcta.”
O clube acaba de perder um de muitos outros jogos. Na flash interview o capitão da equipa declara : “A equipa está de parabéns”.

 
Não pode acontecer nada neste país que não seja normal, e se possível correcto, Nada que não dê indicações positivas. Não há reunião que não seja produtiva, nem ilacções tiradas que não apontem para boas perspectivas. E contudo…
Mas também, e isto também é queiroseano, como povo religioso e temente, sempre preferimos a mentira piedosa à crueza da nossa verdade. Muitas das vezes, conhecermos a verdade de nós mesmos pode significar a depressão.
“Um povo”, torno a citar Unamuno, “triste na trivialidade das suas manifestações exteriores. Um povo triste mesmo quando sorri; uma literatura triste mesmo quando é jocosa ou cómica.”

 
Mas o ápice do atavismo saloio e optimista, da mentira impune, em suma, da ordinarice nacional, mais ainda ainda do que a política, na alta finança e na justiça, tem-se concentrado no futebol. Onde, de resto, política, finança e justiça também se acotovelam.

 
          Acotovelam, digo bem. E cotovelo por cotovelo, basta dizer do acórdão (ou lá o que é) do Conselho de Disciplina da FPF sobre o caso Slimani, onde os doutos juízes conseguem exercícios de absurdo que atropelam mortalmente o senso comum e troçam, já nem digo da inteligência, mas tão só do inocente acto de olhar, de ver  mil vezes repetido um facto em que esses doutos conseguem descortinar o que mais ninguém decortinou e passam o inominável absurdo do seu acórdão (ou lá o que é) ao estatuto de jurisprudência desportiva, onde o que aconteceu deixou de acontecer e passa a acontecer aquilo que não aconteceu.

                       
 
Um sítio mal frequentado, sem dúvida.

                      
                                    
Como produto televisivo o futebol tem sido promovido à escala dos exaustivos enjôos. Jogadas trinta vezes repetidas. Golos trinta vezes recalcitrados. O penalty que foi e o que não foi. O fora-de-jogo que por milímetros devia ter sido e o que pelos mesmos milímetros não devia ter sido. A mão na bola e a bola na mão. Em todos os canais. Dez, trinta, cem vezes repetidos.

                                                        
 
Compreende-se. A paixão política e ideológica abandonou as consciências e os corações da juventude e canalizaram-se-lhes os instintos (na maior parte das vezes maus) para o futebol. Ou ainda menos do que para o futebol, para a bola. Ou ainda menos do que para a bola, para o clubismo cego e fanático, exacerbado até à idiotice, algumas vezes até ao delito.

 
E assim, as claques clubisticas podem equivaler-se neste ´seculo XXI português às “jotas” partidárias da décadas de antanho como alfobres de facciosismo desmiolado.
A indústria.

                
 
E está mais que visto que é uma comunicação social ávida de lucros que vem atiçando os criminosos ódios clubísticos dando amplo espaço de irracionalidade a dirigentes bacocos no limiar do terrorismo verbal, e sobretudo a comentadores, os desaustinados que representam na arena comunicacional os respectivos clubes e que para melhoria das audiências televisivas são incitados aos modos de carroceiro, à linguagem de vão de escada, à estupidez de lançar os seus baldes de gasolina retórica no incêndio em que o futebol português tende a transformar-se para maior ganho das estações de televisão.
A indústria.


 
O futebol, diga-se, que já quase nada tem de desporto. É uma indústria. Ou é mais um meio sombrio de interesses inconfessáveis a frequentar o sítio, este sítio. Futebol é dinheiro, milhões. Futebol são negócios, milhões. Futebol é corrupção, milhões. Futebol é má educação de milhões. Futebol são milionárias campanhas de publicidade enganosa. Futebol são milhões de analfabetos. Futebol é baixíssima intriga para angariar milhões. Futebol é o louco fundamentalismo clubista que dá milhões a ganhar a muitos.
A indústria!


 
Acho pilhas de piada quando se diz de um apaixonante Benfica-Sporting que é apenas um jogo de futebol. Claro que não é. Quantos milhões andam directa e indirectamente envolvidps num simp,es Benfica – Sporting? Ui!
A indústria!

                        
 
Não se pode matar a indústria do futebol!, gritam os dirigentes.

                    
 
No mundo presente, em que somos obrigados a frequentar (também nós, as pessoas de bem) os sítios mais mal frequentados, a verdade é o que menos conta. Para tudo. E quem diz a verdade pode dizer a realidade. Da política ao futebol – passando pelas inevitáveis finança e justiça – o que vale e a mensagem que se transmite. A mensagem que tem de ser positiva, correcta, optimista. O falso optimismo e a falsa correcção que os gestores da realidade jornalística e televisiva pretendem fazer passar.

                   
 
Gestores da realidade, isso mesmo, advogados, juízes, politicos, jornalistas, economistas, treinadores de futebol, dirigentes sebosos e pacóvios, comentadores sectários ajuramentados, and so on, and so on…
 
Ai do mundo se a mensagem positiva e falaciosa desses não passar. Se ela não passar não significa que eles corram em busca da verdade. Se a enganosa mensagem não passer os chefes de marketing, os directores de comunicação (tardios discípulos de do Dr. Goebbels) inventam outra mensagem ainda mais optimista, ainda mais irrealista, e outra, e outra, até que a realidade lhes seja conveniente, até que a realidade se acomode aos seus desejos e finalmente fustigue aqueles que noutro tempo lhes eram somente adversários e que com o desenvovimento e o “progresso” dos meios de comunicação e das redes sociais se tornaram inimigos a abater sem piedade.



 

 

1 comentário:

  1. A mim espanta-me que ninguém comente este "desabafo" tão bem alinhado e pertinente...(eu pessoalmente não me interesso nada pelo futebol, mas a sua relevância é indiscutível)
    De qualquer modo, obrigada, caro Joel, por este texto.

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