UM SÍTIO MAL FREQUENTADO
Foi o Eça que o disse. Relativamente a
Portugal, claro. Que não era um país, que era um sítio mal frequentado. E se
Portugal era isso no tempo do Eça, como lhe
chamariamos hoje?
Lord
Byron, enquanto frequentador destas paragens, escreveu num poema a nosso
respeito: “Poor paltry slaves!” – escravos miseráveis apesar de nascidos entre
as mais nobres cenas. “Why, Nature, waste thy wanders on such men?” – com tal
gente, ó Natureza, porque desperdiçaste os favores?
Passeando
por Lisboa nos começos do século XX, o grande escritor espanhol Miguel de
Unamuno está nas ruínas do Convento do Carmo, arrasado por um terramoto no século
XVIII, e pensa na espécie de terramoto íntimo e moral que ainda então – ou já
então - ameaçava o povo português. “A mansidão portuguesa só se encontra à
superfície; raspai-a e logo haveis de encontrar uma violência plebeia que
chegará a assustar-nos”.
É só
lermos os jornais de hoje para aquilatarmos da propriedade destas palavras.
“Sim, sim, o treino de ontem deu indicações bastante positivas”.
“Foi uma reunião muito produtiva.”
“Sabe, tirei ilacções bastante úteis daquilo que vi”. “Pareceu-me
uma decisão muito correcta.”
O clube acaba de perder um de muitos outros jogos. Na flash interview o capitão da equipa declara
: “A equipa está de parabéns”.
Não pode acontecer nada neste país que não seja normal, e se
possível correcto, Nada que não dê indicações positivas. Não há reunião que não
seja produtiva, nem ilacções tiradas que não apontem para boas perspectivas. E
contudo…
Mas
também, e isto também é queiroseano, como povo religioso e temente, sempre
preferimos a mentira piedosa à crueza da nossa verdade. Muitas das vezes,
conhecermos a verdade de nós mesmos pode significar a depressão.
“Um
povo”, torno a citar Unamuno, “triste na trivialidade das suas manifestações
exteriores. Um povo triste mesmo quando sorri; uma literatura triste mesmo
quando é jocosa ou cómica.”
Mas o
ápice do atavismo saloio e optimista, da mentira impune, em suma, da ordinarice
nacional, mais ainda ainda do que a política, na alta finança e na justiça,
tem-se concentrado no futebol. Onde, de resto, política, finança e justiça também
se acotovelam.
Acotovelam,
digo bem. E cotovelo por cotovelo, basta dizer do acórdão (ou lá o que é) do
Conselho de Disciplina da FPF sobre o caso Slimani, onde os doutos juízes
conseguem exercícios de absurdo que atropelam mortalmente o senso comum e
troçam, já nem digo da inteligência, mas tão só do inocente acto de olhar, de
ver mil vezes repetido um facto em que
esses doutos conseguem descortinar o que mais ninguém decortinou e passam o inominável
absurdo do seu acórdão (ou lá o que é) ao estatuto de jurisprudência
desportiva, onde o que aconteceu deixou de acontecer e passa a acontecer aquilo
que não aconteceu.
Como
produto televisivo o futebol tem sido promovido à escala dos exaustivos enjôos.
Jogadas trinta vezes repetidas. Golos trinta vezes recalcitrados. O penalty que foi e o que não foi. O fora-de-jogo
que por milímetros devia ter sido e o que pelos mesmos milímetros não devia ter
sido. A mão na bola e a bola na mão. Em todos os canais. Dez, trinta, cem vezes
repetidos.
Compreende-se.
A paixão política e ideológica abandonou as consciências e os corações da
juventude e canalizaram-se-lhes os instintos (na maior parte das vezes maus)
para o futebol. Ou ainda menos do que para o futebol, para a bola. Ou ainda
menos do que para a bola, para o clubismo cego e fanático, exacerbado até à
idiotice, algumas vezes até ao delito.
E
assim, as claques clubisticas podem equivaler-se neste ´seculo XXI português às
“jotas” partidárias da décadas de antanho como alfobres de facciosismo
desmiolado.
E
está mais que visto que é uma comunicação social ávida de lucros que vem
atiçando os criminosos ódios clubísticos dando amplo espaço de irracionalidade
a dirigentes bacocos no limiar do terrorismo verbal, e sobretudo a
comentadores, os desaustinados que representam na arena comunicacional os
respectivos clubes e que para melhoria das audiências televisivas são incitados
aos modos de carroceiro, à linguagem de vão de escada, à estupidez de lançar os
seus baldes de gasolina retórica no incêndio em que o futebol português tende a
transformar-se para maior ganho das estações de televisão.
O
futebol, diga-se, que já quase nada tem de desporto. É uma indústria. Ou é mais um
meio sombrio de interesses inconfessáveis a frequentar o sítio, este sítio. Futebol é
dinheiro, milhões. Futebol são negócios, milhões. Futebol é corrupção, milhões.
Futebol é má educação de milhões. Futebol são milionárias campanhas de publicidade
enganosa. Futebol são milhões de analfabetos. Futebol é baixíssima intriga para
angariar milhões. Futebol é o louco fundamentalismo clubista que dá milhões a
ganhar a muitos.
Acho
pilhas de piada quando se diz de um apaixonante Benfica-Sporting que é apenas um
jogo de futebol. Claro que não é. Quantos milhões andam directa e
indirectamente envolvidps num simp,es Benfica – Sporting? Ui!
No
mundo presente, em que somos obrigados a frequentar (também nós, as pessoas de
bem) os sítios mais mal frequentados, a verdade é o que menos conta. Para tudo.
E quem diz a verdade pode dizer a realidade. Da política ao futebol – passando pelas
inevitáveis finança e justiça – o que vale e a mensagem que se transmite. A
mensagem que tem de ser positiva, correcta, optimista. O falso optimismo e a falsa
correcção que os gestores da realidade jornalística e televisiva pretendem
fazer passar.
Gestores
da realidade, isso mesmo, advogados, juízes, politicos, jornalistas, economistas,
treinadores de futebol, dirigentes sebosos e pacóvios, comentadores sectários
ajuramentados, and so on, and so on…
Ai do
mundo se a mensagem positiva e falaciosa desses não passar. Se ela não passar não
significa que eles corram em busca da verdade. Se a enganosa mensagem não passer
os chefes de marketing, os directores
de comunicação (tardios discípulos de do Dr. Goebbels) inventam outra mensagem
ainda mais optimista, ainda mais irrealista, e outra, e outra, até que a
realidade lhes seja conveniente, até que a realidade se acomode aos seus
desejos e finalmente fustigue aqueles que noutro tempo lhes eram somente
adversários e que com o desenvovimento e o “progresso” dos meios de comunicação
e das redes sociais se tornaram inimigos a abater sem piedade.
A mim espanta-me que ninguém comente este "desabafo" tão bem alinhado e pertinente...(eu pessoalmente não me interesso nada pelo futebol, mas a sua relevância é indiscutível)
ResponderEliminarDe qualquer modo, obrigada, caro Joel, por este texto.