shakespeare
400 – chaplin
Pela sua parte, Charlie Chaplin recusava-se
a fingir que gostava do teatro de Shakespeare. Porque a maneira própria que
ele, Chaplin, tinha de sentir andava mais ligada a temáticas da sua actualidade.
E porque para representar Shakespeare eram indispensáveis específicas
qualidades ostentatórias que ele não apreciava.
Sempre que ouvia uma
declamação shakespeariana só lhe dava a sensação de estar a ouvir uma
conferência erudita.
Que era belo, bem,
admitia que sim, mesmo que não apreciasse especialmente. E também, como se
disse, não gostava dos temas. Não gostava dos cortejos de reis, rainhas e de
todas as augustas personagens e de toda a pompa que as acompanhava.
Era uma posição que
só poderia estar relacionada com a sua personagem mesma, Charlie Chaplin, e com
o estracto social de onde provinha.
No tempo em que eu procurava ganhar o meu pão com queijo de cada dia
raramente me ocorriam peripécias relacionadas com a honra. Sou incapaz de me
identificar com as preocupações de um príncipe.
E não o preocupava nem um bocadinho só se a
mãe de Hamlet dormia com todos os homens da corte, nem se ralava nada com o
desgosto do filho por causa disso.
Chegou ao fim de
uma tarde de sábado e foi dar uma volta depois do jantar, na esperança de dar
com a casa de Shakespeare.
Vira numa rua à direita por puro instinto.
Pára diante de uma casa. Acende um fósforo. Lê uma tabuleta. CASA DE
SHAKESPEARE.
Quem o guiara até lá? Sem dúvida: o que
chamava de espírito simpatizante. Eventualmente o espírito do próprio Bardo.
Na manhã seguinte, no hotel, é visitado
pelo presidente da câmara e é acompanhado por ele que visita a casa de
Shakespeare.
Não foi capaz de ligar Shakespeare com
aquela casa. Impossível um espírito como o de Shakespeare ter podido viver ali,
ter podido crescer ali. Impossível.
Não lhe custava nada pensar que o filho de
um camponês emigrasse para Londres à procura de vida e se tornasse actor e dono
de um teatro. Agora que se tornasse poeta e dramaturgo e conhecesse tão
miudamente as cortes estrangeiras, os cardeais, os príncipes, isso não, não era
concebível.
Não é que lhe importasse grandemente saber
quem afinal tinha escrito as peças assinadas por William Shakespeare. Só lhe
custava acreditar que tivesse sido aquele rapazito de Stratford.
Só um aristocrata poderia ter escrito obra
de tal monta e complexidade. Fosse ele quem fosse. E até por aquele desprezo
pela gramática: que só podia ser atributo de um espírito dotado. E principesco.
Chaplin visitou a casa, ouviu as histórias
que se contava lá na terra, infância desregrada, maus resultados escolares,
desvarios, opiniões rudes de campónio, e tudo isso mais lhe fortaleceu a
convicção de inverosimilhança.
Por mais autodidacta, o moço não poderia ter
sofrido uma metamorfose intelectual ao ponto de ficar para a História como o
maior de todos os poetas.
E se até nas obras dos génios maiores as origens
plebeias se revelam aqui ou ali, de uma maneira ou de outra, em Shakespeare das
origens provincianas e humildes não há vestígio.
E de Stratford, Chaplin lá seguiu de
automóvel para Manchester.
Há muitos anos, quando visitei Stratford, também tudo me pareceu demasiado encenado, uma história para visitantes e turistas (e já nesses anos 70 eram numerosos...)
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