shakespeare
400 – noite de reis (o tempo)
Claro que sim,
Shakespeare é um jogador de tempos. Um mágico do tempo. Marlowe e Ben Johnson,
contemporâneos, eram-no igualmente. E se naquela época a magia era prestigiada,
porque não associá-la ao teatro, à representação? E também ao tempo e seus
conceitos, com os quais, aliás, a magia sempre jogou – o tempo é o campo ideal
da manobra do mágico, acho eu.
Bruxas, espectros,
magos, espíritos volantes, fogos fátuos. Nada mas próprio do que o Tempo para o
jogo das fantasmagorias – nada existe mais
do que aquilo que não existe.
Um lugar. Um tempo. Uma acção.
(Ou o lugar que é
todos os lugares, o tempo que é todo o Tempo, a acção que se pode compreender
no estatismo.)
O tempo desloca-se – diz Hamlet.
O relógio repreendeu-me pelo tempo que perdi
– Noite de Reis.
Não jures pelo tempo que há-de vir; tu
usaste-o mal ao abusares dele abusando do passado – Ricardo III.
O
Tempo é o maravilhoso. Era-o para Shakespeare e para o público do tempo, século
XVI. Algo que o nosso cérebro contemporâneo mal pode abarcar, porque o
maravilhoso se empoleirou no irracional.
Só pela capacidade
que tivermos que regressar aos jogos infantis e às antigas capacidades de
maravilha poderemos compreender mais larga e proveitosamente o mestre de
Stratford.
Há quem sustente
que a identificação com o mágico é mais natural nos povos anglo-saxónicos do
que nos continentais. Questão educacional. Será? A intervenção de uma bruxa ou
de um espectro na acção de uma peça ou de um filme pode não ter assim tanto de
anormal para um anglo-saxónico – ou para um chinês ou um japonês – como para o cartesianismo
de um francês.
Festas saturnais,
rituais pagãos, folclóricos, que tanta relevância social e psicológica tiveram
na Europa do século XVI, o S. João e o solstício de verão, o dia mais longo; a
Epifania, a noite de Reis, o dia mais curto; o carnaval: ei-los glosados por Shakespeare.
E cá temos o tempo, a periodicidade,
os ritmos. Festividades pagãs que garantiam e magnificavam o calendário,
imutabilidade e sucessão, cadência, tempo.
Era em muitas dessas festas que o
racionalmente impossível se realizava. O criado aparecia como patrão e o
contrário. A mulher apresentava-se como homem e vice-versa – e, pelo que dizem,
só o judeu continuava judeu. O tempo da loucura. Olhemos para Breughel, para
Bosch.
O isabelino Ben Johnson, entre 1605 e
1613, organizava bailes de corte para comemorar o breve esplendor da noite de
Reis, Twelfth Night, que Shakespeare,
ou alguém por ele pôs em cena em 1603 com um segundo título What You Will (Como Lhes Apetecer), a noite da loucura, cenas românticas à mistura
com intermédios cómicos, desvendando as antíteses humanas, a razão e a
sem-razão, a normalidade e o absurdo.
Tinha-se por costume e tradição na
noite de Reis, como no carnaval, a subversão das situações e dos estatutos
pessoais e sociais mais correntes em acontecimentos inesperados, impensáveis –
reprováveis!
Uma mulher, Viola, faz a corte a outra
mulher, Olívia e as coisas embrulham-se a partir daqui. Mas tudo acabará bem.
Um irmão gémeo desaparecido há muito inesperadamente reaparece. Truque habitual
em Shakespeare que remete para uma mitologia ancestral, a reaparição como
metáfora de um renascimento, como uma renovação associada à mitologia do Tempo.
Ó
tempo, és tu que deves deslindar tudo, não eu!
É
um nó demasiado apertado para que eu o possa desfazer.
Ou:
Estar
levantado depois da meia-noite e ir-se deitar então é deitar-se de manhã, o que
quer dizer que deitar-se depois da meia-noite é deitar-se a horas decentes.
A Noite
de Reis, no universo de Shakespeare pode considerar.se a mais completa
expressão da comédia, ou da primitiva função social da comédia, o renovar das
energias vitais, o que era atribuição do folclore. Enid Walsford diz mesmo que
a Noite de Reis é quintessência das
saturnais.
Toby faz nascer a luz das trevas e o
louco Feste comunica a Malvolio (símbolo da hipocrisia dos bem pensantes) que a
noite é apenas o dia.
Uma comédia que depressa descambaria
em drama se as personagens loucas e grotescas não existissem para revelar o
absurdo de tantas situações do mundo que parece viver alheio ao tempo.
Janus, mítico rei das itálias, e os
seus dois rostos. Janus o fundador das festas pagãs, como a saturnal máscara
antiga de dupla face. Do horror da tragédia à careta cómica como síntese do
sentido das saturnais.
O
torniquete do tempo exerce as suas vinganças.
Noite
de Reis é
o tempo teatral de todas as loucuras, mostra-nos um mundo em festa, se até as
horas e os dias enlouqueceram…
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