quinta-feira, 14 de julho de 2016


shakespeare 400 – noite de reis (o tempo)


        Claro que sim, Shakespeare é um jogador de tempos. Um mágico do tempo. Marlowe e Ben Johnson, contemporâneos, eram-no igualmente. E se naquela época a magia era prestigiada, porque não associá-la ao teatro, à representação? E também ao tempo e seus conceitos, com os quais, aliás, a magia sempre jogou – o tempo é o campo ideal da manobra do mágico, acho eu.
 
 
        Bruxas, espectros, magos, espíritos volantes, fogos fátuos. Nada mas próprio do que o Tempo para o jogo das fantasmagorias – nada existe mais do que aquilo que não existe.
        Um lugar. Um tempo. Uma acção.
        (Ou o lugar que é todos os lugares, o tempo que é todo o Tempo, a acção que se pode compreender no estatismo.)
 
 
        O tempo desloca-se – diz Hamlet.
        O relógio repreendeu-me pelo tempo que perdi – Noite de Reis.
        Não jures pelo tempo que há-de vir; tu usaste-o mal ao abusares dele abusando do passado – Ricardo III.
 
        O Tempo é o maravilhoso. Era-o para Shakespeare e para o público do tempo, século XVI. Algo que o nosso cérebro contemporâneo mal pode abarcar, porque o maravilhoso se empoleirou no irracional.
        Só pela capacidade que tivermos que regressar aos jogos infantis e às antigas capacidades de maravilha poderemos compreender mais larga e proveitosamente o mestre de Stratford.
 
 
        Há quem sustente que a identificação com o mágico é mais natural nos povos anglo-saxónicos do que nos continentais. Questão educacional. Será? A intervenção de uma bruxa ou de um espectro na acção de uma peça ou de um filme pode não ter assim tanto de anormal para um anglo-saxónico – ou para um chinês ou um japonês – como para o cartesianismo de um francês.
        Festas saturnais, rituais pagãos, folclóricos, que tanta relevância social e psicológica tiveram na Europa do século XVI, o S. João e o solstício de verão, o dia mais longo; a Epifania, a noite de Reis, o dia mais curto; o carnaval: ei-los glosados por Shakespeare.
 
 
E cá temos o tempo, a periodicidade, os ritmos. Festividades pagãs que garantiam e magnificavam o calendário, imutabilidade e sucessão, cadência, tempo.
 
                                                             
 
Era em muitas dessas festas que o racionalmente impossível se realizava. O criado aparecia como patrão e o contrário. A mulher apresentava-se como homem e vice-versa – e, pelo que dizem, só o judeu continuava judeu. O tempo da loucura. Olhemos para Breughel, para Bosch.
 
 
O isabelino Ben Johnson, entre 1605 e 1613, organizava bailes de corte para comemorar o breve esplendor da noite de Reis, Twelfth Night, que Shakespeare, ou alguém por ele pôs em cena em 1603 com um segundo título What You Will (Como Lhes Apetecer), a noite da loucura, cenas românticas à mistura com intermédios cómicos, desvendando as antíteses humanas, a razão e a sem-razão, a normalidade e o absurdo.
 
 
Tinha-se por costume e tradição na noite de Reis, como no carnaval, a subversão das situações e dos estatutos pessoais e sociais mais correntes em acontecimentos inesperados, impensáveis – reprováveis!
Uma mulher, Viola, faz a corte a outra mulher, Olívia e as coisas embrulham-se a partir daqui. Mas tudo acabará bem. Um irmão gémeo desaparecido há muito inesperadamente reaparece. Truque habitual em Shakespeare que remete para uma mitologia ancestral, a reaparição como metáfora de um renascimento, como uma renovação associada à mitologia do Tempo.
 
 
Ó tempo, és tu que deves deslindar tudo, não eu!
É um nó demasiado apertado para que eu o possa desfazer.
Ou:
Estar levantado depois da meia-noite e ir-se deitar então é deitar-se de manhã, o que quer dizer que deitar-se depois da meia-noite é deitar-se a horas decentes.
 
 
A Noite de Reis, no universo de Shakespeare pode considerar.se a mais completa expressão da comédia, ou da primitiva função social da comédia, o renovar das energias vitais, o que era atribuição do folclore. Enid Walsford diz mesmo que a Noite de Reis é quintessência das saturnais.
Toby faz nascer a luz das trevas e o louco Feste comunica a Malvolio (símbolo da hipocrisia dos bem pensantes) que a noite é apenas o dia.
 
 
Uma comédia que depressa descambaria em drama se as personagens loucas e grotescas não existissem para revelar o absurdo de tantas situações do mundo que parece viver alheio ao tempo.
Janus, mítico rei das itálias, e os seus dois rostos. Janus o fundador das festas pagãs, como a saturnal máscara antiga de dupla face. Do horror da tragédia à careta cómica como síntese do sentido das saturnais.
 
 
O torniquete do tempo exerce as suas vinganças.
Noite de Reis é o tempo teatral de todas as loucuras, mostra-nos um mundo em festa, se até as horas e os dias enlouqueceram…



Sem comentários:

Enviar um comentário