shakespeare 400 – hamlet e o tempo
É mesmo Hamlet que o diz: o tempo desloca-se.
Di-lo evidentemente por palavras. Ao autor toca apresentar ao público as provas
do que declama a sua personagem, fazer com que o público viva com a personagem
a tragédia do tempo.
Shakespeare
mostra-nos os sinais desse tempo deslocado, subvertido, imponderável. Durante
quanto tempo está o Espectro na presença de Hamlet? Impossível saber. O tempo
comporta a sua mesma impossibilidade. O tempo do Espectro não admite medida,
concretização.
O pai de Hamlet
terá sido assassinado pelo irmão, Cláudio, com a cumplicidade da cunhada (mãe
de Hamlet), casada com o cunhado no próprio dia das exéquias do marido.
É quando no pátio
da ronda do castelo de Elsenor soa a concreta meia-noite que o Espectro do rei
assassinado aparece a Hamlet e lhe revela a verdade – há quem assinale em
Shakespeare a estranha pontualidade dos fantasmas régios.
O tempo
desarticula-se para Hamlet, desestrutura-se pelo aparecimento do Espectro do
pai.
Porquê, quando,
como, onde – foi o rei assassinado?
O rei foi
envenenado por uma substância que lhe introduziram no ouvido quanto dormia a
sesta debaixo de uma árvore do jardim do castelo.
A palavra de um
Espectro pode fazer prova de um delito?
Cabe a Hamlet a
obrigação de desvendar a verdade repondo a ordem no tempo desarticulado.
Quando uma trupe de
cómicos passa por Elsenor, Hamlet contrata-os para representar o assassinato do
pai segundo as indicações fornecidas pelo Espectro, e para ver como reage o
casal usurpador.
O teatro no teatro.
O velho truque do tempo. O tempo desmembrado e subvertido que se pode
reconstituir pela representação do seu ideal. Porque o teatro é uma máquina do
tempo, um elemento de revelação. Um tempo da verdade plausível. A busca da
verdade, de toda a verdade, terá de passar pela reconstituição do tempo que lhe
é próprio.
E o tempo
declara-se eloquentemente sobre duas categorias de vida, o sono e a morte, e
competentes relações entre um e outra.
A deusa Nix (a
Noite) era mãe de dois gémeos, Hypnos e Thanatos. Hypnos, de olhos fechados, é
amamentado pela mãe, e Thanatos, pelo contrário, amamenta-se de olhos abertos.
E mais a coincidência temporal de sono e morte no mesmo espaço, a noite.
Se o tempo se
deslocou, só a verdade poderá remeter o pêndulo dos relógios à regularidade
rítmica ordinária.
Mas a representação
dos cómicos da tragédia da morte do rei não interpelou o casal usurpador. A
desordem do mundo permanece intocada pela representação ideal. A consciência do
tempo permanece confusa. A verdade não se manifestou. A busca da verdade na
ordem do tempo é tarefa impossível. Hamlet fica isolado no seu desígnio – na
sua verdade, no seu tempo deslocado. Não compreende os outros, os outros não o
aceitam. É um louco.
O louco que se
confronta com a caveira de Yorick, o bobo, falecido há anos. O odor dos mortos
é sinal do tempo. Nenhum mortal, nem o grande Alexandre, se eximiu a fedor do
seu corpo morto, castigado pela ordem regular do tempo.
Shakespeare domina
os meios expressivos para impor uma dimensão dos tempos, o da acção, o da
consciência, o da reminiscência do público. O tempo é uma operação intelectual
que ao palco compete objectivar.
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