shakespeare 400 - uma sombra que passa,
um pobre actor
que gesticula
Desde que se conheceu e que pensou na vida, Laurence Olivier
conviveu intensamente com Shakespeare, o maior dramaturgo de todos os tempos,
não tenho rebuço de espécie nenhuma em concordar com ele, e ainda, para alguns,
muitos, o maior poeta, o maior filósofo. Para Olivier, e para lá de tudo isso,
ou integrando tudo isso, o maior ser humano de todos os tempos.
Vá entendido que Laurence Olivier não se preocupou muito com a identidade
real daquele (ou, quem sabe, daqueles) que ficaram para a posteridade
designados como William Shakespeare.
Para ele, Shakespeare existiu mesmo como criatura identificada e
singular. Ou foi Bacon que escreveu a imensa obra sob o pseudónimo de Shakespeare?
Foi Christopher Marlowe? Quem era Shakespeare, visto que a biografia, para
alguns, deixa certos pontos de interrogação? Teriam sido os actores do Globe a
escrever colectivamente as peças, assinando-as sob o nome de um dos menos
brilhantes de todos eles?
Olivier não se prende com miudezas. Shakespeare era Shakespeare,
um homem, um tipo genial. Fim de especulação. O maior. Aquele que com uma
reviravolta de humor e um levíssimo movimento de pena iria, tempos depois,
conseguir transformar, em segundos, um público que ri num público que se
aterroriza e chora. O mais inteligente, o mais espirituoso, o mais imaginativo,
o mais fogoso, o mais hábil, o mais pensador, o mais mágico. Willy Shakespeare.
E tudo isso sem falar das histórias que contou, muitas delas longe de serem
originais, muitas delas roubadas a outros autores, e que no entanto, contadas
por ele, preservavam uma cintilância e uma originalidade tais que pareciam ter
sido inventadas ontem de manhã.
E de toda a longa produção shakespeareana, Olivier escolhe Hamlet
como a maior obra de teatro de todas as épocas. Inesgotável. Onde um actor por
mais vezes que a represente encontra sempre algo de novo para exprimir. E, de
acordo com o calibre da paixão dele pelo bardo, Olivier, sempre fez tenção de mostrar
Shakespeare como um autor moderno, com validade altíssima para qualquer tempo e
qualquer lugar.
Para os desideratos de Olivier, força seria trabalhar com os
ritmos e com os tempos das falas de modo a produzir efeitos que ao público
parecessem absolutamente espontâneos. E, paralelamente, de modo a provocar
nesse público reacções espontâneas, reconhecimentos, identificações,
redescobertas. E isso até porque Shakespeare fora nos seus tempos um autor
popular, cujo trabalho com a linguagem viria a criar uma nova inteligência de
espectáculo.
E foi – diz Olivier - um autor maltratado ao longo dos séculos,
mutilado, reinterpretado, revisto, mal falado, mal representado, humilhado,
musicado, truncado, citado, esquartejado; um autor que foi pretexto e veículo para
milhares de actores, aqueles que, por intermédio dele, atingiram os pináculos
da grandeza e da fama, e aqueloutros que, por ele, desceram aos infernos do
fracasso artístico. Shakespeare foi sempre o maior desafio para um actor e
esteve mesmo a pontos de levar alguns à loucura.
O máximo desejo de Laurence Olivier, quando morresse, era poder
vir a encontrar Shakespeare, lá numa qualquer paragem ignota, em qualquer ponto
do Além, falar-lhe, e sobretudo ouvi-lo.
Hamlet:
a maior peça de teatro alguma vez escrita. E ponto final. Porque não haveria
tempo para discriminar aqui as razões de asserção tão absoluta. Quem o disse
foi Laurence Olivier, e eu sigo-o como posso, porque se houve autoridade na
matéria foi a dele.
E ai de quem algum dia tenha metido ombros à tarefa de
representar Hamlet. Esse seguramente ficou marcado por Hamlet para o resto da
vida, devorado por Hamlet, obsecado por Hamlet. Olivier fala com
conhecimento de causa. Foi o que se passou com ele, que nunca deixou de pensar
na personagem, de interrogar a personagem até à hora da morte, e que mesmo na
velhice, muitos anos depois de ter feito o seu último Hamlet, ainda gostaria de
voltar a fazê-lo, ainda descobria uma imensidade de coisas a dizer e a fazer.
A primeira vez que Laurence Olivier representa Hamlet é no Old
Vic, em 1937. Era então John Gielgud, por assim dizer, o modelo, o dono do
papel nos palcos londrinos. E a Olivier logo lhe ocorre, em contraposição ao
que ele pensava da encarnação de Gielgud, mostrar no palco um Hamlet de carne e
osso, verdadeiro, humano, contraditório, frágil e forte, bondoso e perverso.
Mas antes de vestir a pele de Hamlet vai consultar um psiquiatra.
Hamlet podia ser caso de psiquiatria. A começar pela
eventualidade de Hamlet ser a primeira vítima conhecida do complexo de Édipo.
Há sinais no texto que remetem para um envolvimento sensual de
Hamlet com a mãe, e o mais palpitante desses sinais passa pela devoção dele ao
pai, ditada ela pelo sentimento de culpa de Hamlet.
Ninguém adoraria o próprio pai de tal jeito se não estivesse
possesso de culpas relativamente à sua relação com a mãe. O complexo de culpa
seria então a fonte do todos os problemas existenciais de Hamlet.
Esta ideia do complexo de Édipo de Hamlet é mais uma achega para
a comemoração do génio transcendente de Shakespeare, senhor de uma intuição que
o transportou para os arcanos do inconsciente, um problema que só três ou
quatro séculos mais tarde seria lançado como uma carta decisiva para cima da
terrível mesa de jogo dos comportamentos humanos.
E como o complexo de Édipo, também esse professor de
psiquiatria, Ernest Jones, consultado por Olivier e pelo seu encenador de 1937,
Tyrone Guthrie, toca noutro ponto da compleição psicológica de Hamlet: a
tendência para a homossexualidade. Provavelmente.
E terá Hamlet ido realmente para a cama com Ophelia? Ou tudo
teria ficado a um nível platónico – perguntas que um actor faz a si mesmo
acerca da sua personagem. E ao conversar sobre isto com um velho director de
teatro inglês, Olivier ouviu-lhe a peremptória resposta:
- Olha, filho, em
companhia que eu dirija, sim, sempre, Hamlet claro que foi para a cama com
Ophelia.
Hamlet seria isto? Hamlet seria aquilo? Hamlet teria feito isto,
teria feito aquilo? Mil perguntas que se escondem na personagem, no texto, mil misteriosas
obscuridades que Olivier gostaria de esclarecer não só nos dias de 1937, ao
estrear-se na peça, como ao longo de toda a sua vida.
Pode até penetrar-se a mente de Othello, de Coriolano, de
Ricardo III, mas nunca se pode dizer que se desceu ao fundo de Hamlet, do homem
Hamlet.
Hamlet pega na mão do actor que pretende ser ele e leva-o, e
trata-o com aspereza e reserva, tanto quanto o faz contemplar as mais
deslumbrantes estrelas do firmamento. Ele apanhou-me, e nunca mais me
largou.
Hamlet foi
o texto que Olivier mais vezes representou, inclusive no cinema, como é sabido;
inclusive no próprio local onde decorre a acção, no castelo de Elsinore, na
Dinamarca; e nunca uma récita lhe saiu igual a outra.
E de Hamlet, continuando pelo percurso profissional de
Laurence Olivier, e deixando de lado algumas outras criações famosas, como
Ricardo III, Shylock, Henrique V, ou Lear, vamos dar a Macbeth, peça em
que começou por interpretar um papel secundário, Lennox, em 1924, ainda na
escola. Mais tarde, 1928, faria Malcolm no Court Theater. E seria ainda em
1937, e ainda no Old Vic, tinha trinta anos, que viria a desempenhar a parte do
protagonista. Era um rapaz cheio de vigor, anto-domínio, ansiedade, confiança e
ambição. Já fora Hamlet. Já fora Henrique V. Já tinha a sensação estonteante de
que Shakespeare havia pensado nele ao escrever aquelas peças.
Considera Macbeth uma das mais conseguidas peças de Shakespeare.
E considera-o um soberbo especialista no tema da morte e das reacções humanas
às mais horripilantes novidades.
Macbeth
contém monólogos que não ficam a dever ao arqui-celebrado to be or not to be,
monólogos como o tomorrow, and tomorrow and tomorrow…
Amanhã, amanhã, e outra vez amanhã, e pequenos passos, dia a
dia, até à ultima sílaba do tempo. Apaga-te, breve candeia, que a vida é uma
sombra que passa, um pobre actor que gesticula em cena por uma hora ou duas e
que depois não se ouve mais…
…
uma história contada por um idiota,
cheia de som e fúria e que nada significa…
Olivier decidira juntar-se à companhia do Old Vic. Sabia que
para eles era uma presa valiosa devido à imagem cinematográfica que já trazia e
que poderia vir a reflectir-se nos resultados da bilheteira. Mas ele queria ser
tratado à séria, queria que esquecessem dele a faceta de estrela de cinema,
visto pensar que o actor inglês é (era, naquele tempo, talvez) respeitável só
depois de se ter afirmado nos clássicos.
O Old Vic, para Olivier, era como Old Bailey, o famoso tribunal
de Londres. No Old Vic seria ele julgado pela sua qualidade com os clássicos.
No Old Vic poderia eu abrir o meu caminho até á pele da serpente
teatral vestida por Burbage, por Garrick, por Kean, por Irving ou por
Barrymore, uma pele que trazia um nome escrito - William Shakespeare.
Burbage, Garrick, Kean, Irving e Barrymore são gente real (e
daí…) enormes actores, lendários shakespearianos.
Nessa primeira incursão de Olivier na personagem de Macbeth, em
1937, todas as proporções da encenação eram estilizadas, alteradas. Levadas a
uma dimensão olímpica. A caracterização era de tal modo carregada que sugeria
uma máscara, falso nariz, falso queixo, testa ampliada e saliente, sobrancelhas
exageradamente carregadas. Uma abordagem irreal e poética. Olivier observa que
construiu uma representação de Macbeth, em vez de deixar Macbeth existir
através de si e do seu corpo.
Caracterização. A experiência dos verdes anos em Macbeth ensinou a Olivier que a mais
efectiva aparência da personagem é a que vem da vida interior do actor.
Declamar as deixas com propriedade ou sem ela é qualidade ou defeito que nenhum
make up melhora ou disfarça. Tudo terá de nascer na cabeça e no coração,
antes de se pensar na cara: olhemos para os actores gregos da Antiguidade a
representarem nus…
Essa produção de 1937 conheceu infindáveis vicissitudes e problemas.
De tal ordem que, apesar dos ensaios feitos até no dia de Natal, ela não estava
pronta a tempo para a estreia.
Era a maldição de Macbeth.
A tradicional superstição que se calhar – e não sei porquê, as bruxas? – vem
dos tempos do próprio Shakespeare e anda
ligada a Macbeth, e diz que a montagem de Macbeth traz sempre
consigo algum azar – e (já o disse noutro texto) não esqueçamos que quando,
aqui em Lisboa, ardeu o Teatro Nacional D. Maria II, era Macbeth que
estava em cartaz.
No
Old Vic, em 1937, estreia de Macbeth é cancelada. Adiada. Olivier nunca
acreditara na superstição, mas naqueles dias estava muito inclinado a
acreditar.
Dois dias depois, preparada a companhia para finalmente estrear Macbeth,
aconteceu a morte de uma das actrizes fundadoras do Old Vic, Lilian Baylis. Uma
morte admissivelmente precipitada pela comoção que resultou do adiamento da
estreia de Macbeth, uma desonra, caso inédito na gloriosa história do
Old Vic até então. Mas para os supersticiosos a morte de Lilian Baylis ainda era
obra da maldição da peça. Mais uma. Nem podia haver outra explicação.
Com excepção do histórico David Garrick, no século XVIII, um
verdadeiramente grande Macbeth jamais aparecera nos palcos. As expectativas
cresciam portanto sobre a estreia daquele jovem e tão dotado actor.
É um papel que exige dotes naturais, artísticos, físicos, aos
quais Mr. Olivier não poderá actualmente corresponder. Ele não se parece com um
tigre da Hircânia, nem com um rinoceronte. A voz, que nos grandes monólogos
deve poder vibrar como um violoncelo, soa demasiado aguda, não é uma natural
voz de baixo, nem sequer soa bem no registo central de um barítono…
Palavras de um crítico londrino então dos mais respeitados,
James Agate, enumerando algumas das deficiências de Olivier para o que na peça
é pedido, ou pelo menos sugerido, aquelas parecenças com o tigre da Hircânia ou
com o rinoceronte. Mas, bem feitas as contas, o crítico acabaria por
condescender em que não fora exactamente um fiasco.
Muito mais tarde, 1955, em Strattford, Laurence Olivier
registaria em Macbeth um dos grandes triunfos da carreira. Nem precisara
de caracterização. A voz tinha amadurecido e ganho volume e poder expressivo. A
experiência de vida entretanto adquirida, diz ele, tinha feito toda a diferença
dos dias da estreia no papel, em 1937, até porque ganhara uma compreensão da
peça naturalmente muito mais aprofundada do que em 1937. Enquanto em 37, para encarnar
Macbeth, se servira principalmente da técnica e da imaginação, em 55 trabalhara
sobre as sabedorias e experiências pessoais, por forma a tornar Macbeth, a
despeito de tudo, de toda a crueldade, um ser humano real.
O segundo Macbeth, de 55, chegava à carreira de Olivier
no momento oportuno, na idade perfeita para desenvolver todos o seus poderes
artísticos. Aliás, muita coisa lhe sucedera ao longo da vida e da carreira no
tempo mais próprio. Era um afortunado. Toda a vida estivera no sítio certo e na
altura certa. Tinha um natural instinto do tempo e da oportunidade. Embora
também fosse dos que acreditavam que o tempo e o lugar certos estão nas mãos de
cada um de nós e que cada ser humano, por acção ou omissão, cria o seu destino
– ou, no mínimo, representa, pela vontade, um papel preponderante no próprio
destino.
Em Othello, a parte preferida, a que sempre fizera com
qualidade reconhecida, era a de Iago.
É o crítico Kenneth Tynan que o desafia a interpretar pela
primeira vez o Mouro. Mas, para Olivier, o grande e mais artisticamente
compensador papel em Othello continuava a ser o de Iago. E sempre havia
lido e entendido a peça através dos pontos de vista de Iago.
- Mas se chegar a fazer
de Othello - diz ele a Tynan - não
quero ao pé de mim um Iago maquiavélico, quero um Iago honesto, mesmo honesto,
como vem escrito na peça.
Representara sempre Iago num registo mais de comédia. Nada de
perigos. Nada de ameaça. Mais do que um vilão de teatro do século XVI, Iago era
um fulano interessante, socialmente muito aceitável, encantador mesmo. Assim,
Iago seria mais plausível como filho da mãe, efectivamente perigoso, uma
ameaça, quando ninguém desconfiaria de tipo tão pachola, tão sériozinho.
A crítica poderia nem gostar. Mas gostava ele. O seu Othello era
Ralph Richardson, outro monstro da cena britânica que Olivier não considerava
talhado para o Mouro. Porquê? Porque era um chato como Othello.
Mas, como eu ia a dizer, é proposto a Olivier ser Othello, e ele
tem reservas a opor. Othello era um loser. Olivier sentia isso, não
obstante os feitos de guerra.
E pensando na génese da peça, Olivier concebeu uma fantasia. Shakespeare
e o seu primeiro actor, Richard Burbage, uma noite, teriam chegado a uma
estalagem e começado num concurso de copos – ou de canecas. A cerveja teria
corrido copiosamente. Com ambos já muito atravessados, o actor, Burbage, de
olhos vítreos fitos em Shakespeare, teria dito
- Will, meu velho, fica sabendo que sou muito menino para
representar, e bem, seja qual for o papel que te passar pela carola escrever.
Shakespeare, que também não estaria mais sóbrio, replicou,
- Ah, sim… então deixa estar que qualquer dia te arranjo um… e
sempre quero ver…
E no dia seguinte
Shakespeare ter-se-ia posto à escrita e ter-lhe-ia saído uma personagem
estranha e inusitada. Othello. Um mouro. Dedicada ao seu amigo Richard Burbage.
Laurence Olivier tinha a certeza de que alguma coisa do género
teria acontecido.
Olivier achava o papel de Othello mal conseguido, a personagem
mal desenhada. Partia do princípio de que a primeira reacção de Othello para
Iago poderia ter sido qualquer coisa como… come on… vá lá… eu bem sei que o
que tu queres é o posto do Cassio… é ou não é?, vês como eu sei… então vá lá,
conta-me toda a verdade que tu sabes… come on… Sabedor da verdade, ou da
suposta verdade, pela boca do honesto Iago, Othello fica na pior, vai aos
arames, deixa-se dominar pelos ciúmes. E grita, e ruge, e pensa em sangue,
sangue…
Semelhante ao Pôntico cuja corrente gelada e o imparável curso
nunca recuam e avançam para o Propôntico e o Helesponto, assim os meus
sangrentos pensamentos jamais olharão para trás…
Agora e para sempre adeus paz de espírito, adeus alegria, adeus
meus batalhões emplumados, adeus guerras gloriosas, corcel fogoso, trombeta,
estandarte real… adeus… adeus a todas as honrarias… tudo isso acabou para
Othello…
Gritar, rugir, correr, rolar-se pelo chão, tudo isso repugnava
um tanto a Laurence Olivier enquanto Othello. Era fácil o show off de
principiante, dizer: olha para mim, público, repara como a minha força e o
meu poder podem descer tão baixo, onde nunca ninguém desceu. E tudo assim,
em grande, em ruidoso, até á última cena, o assassínio de Desdémona, um ponto
alto, seguido de mais dois ou três berros. E depois o grande silêncio da morte.
E o público a sair da sala, a murnurar “oh, graças a Deus que esta
chumbada acabou”. Uma parte difícil como
um raio, de facto, este Othello – pensa Olivier. Porque continuava a sentir a
peça como sendo de Iago e não de Othello.
Nem o papel o preenchia, nem ele se sentia em condições de
abarcar o papel com a sua personalidade. Também sabia difícil desembaraçar-se
da personagem mal removesse da cara a maquilhagem.
Havia que entrar suavemente na pele de Othello, começar
pacificamente a representação, não perturbar ninguém logo de entrada, ganhar a
confiança do público, e pouco a pouco começar a revelar-se. Era a única maneira
de fazer o público ir acreditando na verdade dos rugidos de cólera e ciúme à
medida que a trama se desenrolasse. Seria pela gestão minuciosa e delicada dos
ritmos que conseguiria, nem que fosse por instantes, aqui e ali, convencer o
público da verdade da situação de Othello. Não pretendia uma actuação
sensacionalista, retumbante. Só queria do público uma meia suspeita de que o
que via era verdade. Precisava de trabalhar muito para obter os efeitos que
queria.
Ver quadros. Estudar maneirismos, gestos, movimentos, caminhar,
estar parado. A personagem ia aparecendo. Imagens e sons cavalgavam na cabeça
dele. Guardar uma imagem no íntimo e depois achar-lhe correspondências numa pintura.
Compreender qual o aspecto que lhe convinha apresentar. Um homem forte, direito,
mas descontraído como um leão. Decerto que os modos de Othello seriam até
graciosos. Tinha até a certeza de que no campo de batalha, quando matava um
inimigo, Othello o fazia esteticamente, com distintíssima beleza plástica.
Preto. Eu tenho de ser preto. Eu tenho que me sentir preto até
ao mais fundo da minha alma. Eu tenho que viver o mundo de um homem preto.
Mas tinha a certeza de que Othello sempre se sentira superior
aos brancos. Se porventura conseguisse descascar a própria pele, por baixo dela
Olivier poderia achar uma outra camada de pele, desta vez negra. E outra coisa
ainda: teria de ser belo, muito, muito belo.
Era custoso, e no entanto fascinante, tentar despojar-se da sua
condição de homem branco. Nunca o lograria, em toda a verdade, mas momentos
houve em que se convenceu disso.
Reaprender a andar. Pernas relaxadas. Equilíbrio perfeito. Não
encontrava era o ritmo que queria, a sensualidade do corpo, o balanço de
caminhar com a subtileza ameaçadora de um leopardo negro.
Othello provinha da terra e o seu ser escuro fora aquecido por
um sol escaldante. E nisto, Olivier tem um lampejo de génio. Descalça os
sapatos. Não fica contente e descalça as meias. Levantava-se. Andava.
Encontrava o movimento imaginado. Digno, sensual. Positivo.
A fala. Othello falaria como um estrangeiro que laboriosamente
aprendera uma nova língua. Não falaria então o veneziano com toda a
naturalidade. A atitude moral de Othello fora a do homem que estudou as
maneiras de impressionar os outros e de modo a que o Senado de Veneza o
considerasse puro, claro de intentos, friamente corajoso – a estátua do homem
perfeito, a que Shakespeare acrescentara uma breve fissura, a fissura que ao
abrir-se fizesse desmoronar fragorosamente a estátua. Othello descobre-se
ciumento. Era essa a decepção dele quanto à sua pessoa.
A voz. Othello teria uma voz mais profunda do que a sua. Uma voz
de baixo. Uma voz em tons de veludo violeta escuro. Era preciso desde logo
trabalhar a voz. Todos os dias. Baixar-lhe as ressonâncias, e sabendo que na representação
não se deve dar tudo. O público, ao perceber que o actor está a dar tudo
exige-lhe sempre mais. É bom guardar sempre alguma coisa de reserva.
Sente que se não deu em doido na preparação de Othello pouco
faltou. Houve momentos da vida quotidiana em que até se convenceu de que era
mesmo preto.
Sim, e preto ficaria em cada noite. O corpo todo. Max Factor
2880. Uma camada de castanho por cima. E mais Negro Number 2. Castanho sobre
preto para atingir uma rica cor de mogno. E depois polir-se com meia jarda de chiffon.
Brilho. A macieza da cor. Tom azulado nos lábios. Uma cabeleira muito frizada.
Fazer ressaltar o branco dos olhos.
Nos bastidores. A peça começou. Othello espera o momento de
entrar em cena. Respiração profunda. De pé. Postura de homem forte com um quê
de felino pronto a formar o salto. Descontraído como um leão. Belo. Um homem
que sabe matar plasticamente, com a mais absoluta beleza.
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