UM EXEMPLO MORAL CONTRA VONTADE
Na verdade é o que sou: um exemplo
moral.Mas contra a minha vontade, disse o realizador
espanhol Pedro Almodovar.
Escrever,
filmar, montar, promover o filme. Em cada uma dessas fases criativas se
descobrem coisas sobre a história que se conta. Descobrem-se coisas sobre si
mesmo e sobre os outros. Pode ser o que inconscientemente se procura quando se
escreve ou se faz cinema: entrever os enigmas da vida, resolvê-los ou não. Em
todo o caso, revelá-los.
O
cinema é a curiosidade, no verdadeiro sentido da palavra.
Gosto de pensar que as salas de cinema
são um bom refúgio para os assassinos e os solitários. E também me agrada
considerar o grande ecran como um espelho do futuro.
Pedro
Almodovar dá-me a ideia do génio do cinema alternativo a Manuel de Oliveira que
poderiamos ter em Portugal se tivessemos a fortuna de sermos um país propício à
originalidade e ao nascimento de génios, em vez de imitadores seja do que for.
Pedro
Almodovar acentua: comecei a fazer filmes
quando a Espanha se tornou democrática.
Sem
o elemento democracia entende ele que nunca poderia tornar-se cineasta em
Espanha.
Quando estive em Cannes quis saudar o
público espanhol, porque foi o meu primeiro público e foi graças a ele que
continuei a fazer filmes.
Temas.
Descubro o meu tema ao escrever a
história. Nunca começa sabendo de antemão o tema que vai tratar. Pois por isso é que a escrita é uma grande aventura para mim. Imagina que
o tema está dentro dele e precisa de algum trabalho para que ele lhe apareça de
forma consciente. Sim, muitas vezes o
motivo narrativo que me leva a escrever é apenas um pretexto. Assim como
muitas vezes aquilo que ele pensava ser o centro da história desaparece à
medida que a escreve.
Não
se questiona sobre se é ou não um cineasta de vanguarda. (Ainda bem –
comentário meu). Eu trabalho na mais
figurativa das artes que é o cinema, diz. Cinema que, por sinal, ele acha
que não avançou tanto como a pintura, Nenhum cineasta conseguiu dar um
equivalente filmico do que foi o cubismo, o dadaísmo, o expressionismo ou a
abstracção. O cinema nunca se ultrapassou muito a si próprio. Por isso digo que há pontos de vanguarda que não têm lugar
no cinema.
Kitsch?
Nunca escrevi em espírito de paródia,mas
as religiosas de Negros Hábitos
pertencem conscientemente a um universo kitsch. Nessa época, as referências
dele vinham principalmente do cinema. Pensava em Sara Montiel.
É verdade que pensava em Sara Montiel quando
ela fazia papeis de religiosa. E pensava em mais quê? Talvez num certo cinema espanhol pop em que as boas irmãs educavam e salvavam adolescentes. Esses eram
filmes-trampolim para actrizes estreantes que depois seriam estrelas. Pense-se
em Marisol. Almodovar pensa também em Rocio Durcal. Então, Negros Hábitos é uma espécie de piscadela de olho… é, ao cinema religioso pop, assim como achei que o tratamento das
personagens apostava numa distância humorística. A Irmã Rosa foi-me inspirada
por um artigo sobre as religiosas que se consagram especialmente aos travestis.
Ora
aqui está ma coisa que Almodovar me está a ensinar e de que eu não fazia a mais
pequena ideia. Essas religiosas, diz ele, tentam dar aos travestis a possibilidade de
sairem da prostituição.
Tentei arranjar documentação sobre a
actividade dessas religiosas. Estava muito curioso de saber como se desenvolvia
a interacção travesti-religiosa. Seria engraçado, mas
Almodovar não conseguiu permissão para observar essa realidade de mais perto.
A
escrita e a técnica, amigo Almodovar. Ah,
cada vez suporto menos escrever para dar uma descrição técnica, informativa.
“Manuela sai à rua, espera por um táxi, chega à estação”. Todos os establishment
shots me aborrecem. Eu quero ir ao
essencial. E logo desde a escrita.
Na
montagem estava a etapa decisiva da realização de um filme. Questão de ritmo.
Questão de cadência de cenas. Quanto tempo esta personagem deve ficar á porta
do quarto daquela outra para que se sinta o tempo certo? Difícil.
O ritmo deve estar no interior dos
planos. O ritmo e a respiração do fllme devem ser encontrados desde a rodagem.
Eu faço filmes que encontram a sua orígem
na realidade, mas que não são estudos de costumes realistas. A realidade dá-me
a primeira linha do argumento, mas a segunda sou eu que a invento. E esta
segunda linha não aperfeiçoa a realidade a não ser do ponto de vista dramático.
Não a torna melhor nem mais bonita. Torna-a mais interessante
cinematograficamente. O cineasta aproxima-se de Deus. Faz com que as coisas aconteçam.
Mas
a ideia do cineasta como Deus suscitava a Almodovar algumas perguntas. Qual o
controlo que efectivamente se pode ter
sobre aquilo que se cria. Quanto custa ao criador criar as coisas que
cria. Que nível de dor sente ao ver o resultado da sua criação.
Escrever?
Sim, tomar notas sobre a realidade.
Como os esboços dos artistas? Isso mesmo.
Mas esboços literários. Os meus
esboços são sempre literários.
Em geral, quando os cineastas falam da
ideia que tiveram para um filme descrevem uma imagem. Essa imagem vai
conduzi-los à história. Mas com ele não se passava assim. Para mim, no início, há sempre palavras,
falas, uma história que me conduz às imagens do filme.
Filme
A Flor do Meu Segredo. A personagem
feminina reencontra o marido. Zanga-se com ele. Foi a primeira coisa que escrevi. Depois, perguntei-me: como é que esta
mulher chegou aqui? Como vai ela desenvencilhar-se?
Procuro os locais onde a personagem
viveu, as personagens secundárias que estão em relação com ela. É como que um
trabalho de detective. Um detective, entretanto, que seguia
pistas que ele próprio inventava. Diz ser essa a mecânica de escrita dos
escritores mesmos. É um processo
misterioso, mas comigo é assim que se passa. Às vezes leva-lhe um ou dois
meses. Outras vezes custa-lhe quatro anos. É
verdade. Mas a sequência-mãe tem de ser sempre forte.
Anda me sinto ligado a essa velha ideia,
segundo a qual, como dizia Rossellini, os filmes devem ser transparentes para o
espectador.
Praticaria
Almodovar um estilo de narração subsidiária do das Mil e Uma Noites, uma ficção interrompida por outra ficção, que é
por sua vez interrompida para que se volte à anterior. Porque gosta das
ramificações narrativas, dos desenvolvimentos vivos. E compreende que seja por
isso que os escritores gostam dos filmes dele: a narração literária estaria
muito mais avançada do que a do cinema.
Ecletismo
e liberdade. Considera o ecletismo estético-cinematográfico uma maneira muito fin de siècle de contar histórias. Hoje,
as pessoas voltar-se-iam mais facilmente para o passado, seleccionariam as
histórias desse passado e juntar-lhe-iam as histórias do presente. Em fins do
século XX haveria tendência para os balanços. Já se sabe o que aconteceu e
todos os estilos seriam possíveis. Mas ele não tivera uma educação clássica e
por isso o ecletismo dele era natural. Sempre fora indisciplinado e assim
mantivera alguma liberdade.
Roubar uma ideia a Brian de Palma? Em Que
Fiz Eu Para Merecer Isto roubei alguma
coisa de Carrie. Acho legítimo. Ele
próprio roubava, ele, Brian de Palma, ideias a outros cineastas, sendo ainda
assim um grande criador.
Almodovar
também faz profissão de fé em não ser aquele realizador cinéfilo que de quando
em vez não resiste à citação de outros realizadores que admira. Não é cinéfilo,
mas não se segue daí que não possa utilizar alguns filmes de outros como parte
activa dos argumentos próprios. Não o faz, contudo, como homenagem a ninguém.
Fá-lo como roubo. Passa a fazer parte activa da história que ele quer contar e
por isso não é homenagem. A homenagem é passiva. O cinema que viu converte-se
em experiência própria e automaticamente em experiência das personagens dele.
Pergunta-lhe
o entrevistador: achas que as dificuldades em reunir condições financeiras para
fazeres A Lei do Desejo resultaram de
uma censura moral disfaçada? Claro que
sim. Completamente. Já não há censura oficial em Espanha. Mas há uma censura
económica e moral. A Lei do Desejo é considerado por ele um filme-chave na
carreira. Sim, é. Recebi em Espanha
muitos prémios pelos meus filmes, mas por este nem um.
Por
falar em desejo, Alomodovar gosta tanto de Tennessee Williams que não só
envolveu Todo Sobre Mi Madre na peça Um Eléctrico Chamado Desejo,como ao
fundar a sua produtora lhe deu o nome de Deseo
Films.
Gosta
do teatro de Tennessee Williams, pensou em encenar algumas peças dele e não o
fez, porque?, por achar que a repressão sexual presente na obra de Williams
está desajustada aos tempos actuais e que para lhe dar algum cabimento teria de
pôr mulheres a representar alguns dos papeis masculinos, o que seria escândalo
por demais.
A minha educação enquanto espectador foi
feita nos filmes adaptados de peças de Tennessee Williams, em especial O
Eléctrico Chamado Desejo.
A Lei do Desejo,
o filme, ainda. Quando comecei a escrever
queria falar sobre o processo de criação, a maneira como a vida de um
realizador impregna o seu trabalho, o modo como ele vampiriza a sua própria
vida, parecendo viver apenas para escrever histórias, o modo como a união entre
a sua vida e a sua máquina de escrever se pode tornar, neste processo de
trabalho, uma coisa quase monstruosa.
Há uma necessidade de se sentir desejado,
mas é muito raro que dois desejos se encontrem e se correspondam. É uma das
tragédias do género humano.
Um
cineasta recebe carta do rapaz de quem gosta. Porém, não a carta que gostaria
de receber. Então, senta-se à máquina e escreve ele a carta que gostaria de
receber. E envia-a ao rapaz de quem gosta. E recomenda-lhe que a assine, que a
meta no correio e que lha reenvie.
Há
algo de surpreendente e de muito forte em Todo
Sobre Mi Madre. Será que Almodovar pôs nesse filme tudo aquilo de que
gosta?
Tudo o que gosto? Sim,
literatura, espectáculo, bastidores, mulheres, actrizes, mãe, filho, travestis. Tudo o que filmara em Todo Sobre Mi Madre parecia tocar-lhe o
coração. E era verdade.
Era
verdade. Tudo isso lhe era próximo, forte e profundo. É sem dúvida dos filmes mais intensos que já fiz. Quer dizer que
nos outros podem ter ocorrido sequências banais? Nâo. Mas neste eu quis ir ao essencial de cada sequência. Elipses,
muitas. Exacto. Dá uma sensação de
intensidade. Pode ser asfixiante.
O
mundo dos travestis e da prosituição
já ele o tratara noutros filmes… pois já, mas em Todo Sobre Mi Madre abordo-os de maneira diferente. Acho que com
os mesmos elementos e as mesmas personagens se podem fazer milhares de filmes.
Acerca
do tema do travestismo, Almodovar refere ter conhecido certas pessoas… conheci, conheci pessoas que viveram em
Paris, que fizeram implantes mamários em Paris e vieram trabalhar para
Barcelona, tal como Lola de Todo Sobre Mi Madre.
Essa
personagem de Lola seria inspirada directamente por um travesti. Foi inspirada por um travesti que era proprietário de um bar
em Barcelona e que vivia lá com a mulher. Bem, mas esse travesti, e aqui está a piada, proibia a
mulher de usar mini-saia, enquanto ele se podia passear em biquini. Por uma
questão de moral, digo eu.
Foi assim mesmo, e quando me contaram
essa história fiquei impressionado. Era a manifestação perfeita do carácter
irracional do machismo. E guardei esta história com a ideia de me servir dela
um dia.
O
machismo – isto digo eu – não deve ser muito mais do que a exacerbação de um
conceito moral. E alimenta-se por isso de uma restrição moral muito forte. Não
sei, isto digo eu.
E
um dia, em Barcelona, Almodovar faz pesquizas para a tal personagem de Lola. E
descobre coisas espantosas.
Conheci um travesti de 45 anos que andava na prostituição com o
filho que tinha vinte e poucos e que também era travesti. Quando o rapaz fez anos o pai travesti e a mãe ofereceram-lhe como prenda uma
operação às mamas.
As
cenas mais bizarras de Todo Sobre Mi
Madre são inspiradas na realidade, mas, pelo que nos diz Almodovar, estão
ainda um bocado aquém da realidade.
As
mães de Almodovar ficam sempre próximas da sua própria mãe. E a mãe-personagem
de Almodovar sempre foi uma mãe da classe social da qual ele provinha.
No
tempo desta entrevista, Almodovar ainda tencionava produzir um filme em vídeo
sobre a própria mãe. Punha-a diante da câmara e convidava-a a falar. E que
falasse o mais possível. A mãe tinha necessidade de falar. E está visto que,
como ele é cineasta, não poderia evitar exercer-se com tal, nem que fosse a mãe
o objecto filmico. Pensou fazê-la ler os textos de que ele gostava e que
gostaria de ouvir ditos pela voz da mãe. E, caso interessante, os textos que
ele gostaria que a mãe lesse, alguns deles, eram de Truman Capote, nomeadamente
o prefácio à Música Para Camaleões.
Acabará por ser um personagem de Todo
Sobre Mi Madre a lê-lo.
Todo Sobre Mi Madre
é um filme que Almodovar dedica às actrizes que desempenharam no ecran papeis
de actrizes, algo que, diz ele, constitui
um género de pleno direito no cinema.
É a mãe que te põe no mundo. É ela que te
inicia nos mistérios do mundo, nas coisas essenciais, nas grandes verdades. Talvez
ele idealizasse um tanto as mães. As mães que aparecem nos filmes dele ele
concorda que são iniciadoras. Angela
Molina em Carne Viva. Sim.
Comporta-se com Liberto Rabal como uma mãe quando lhe ensina a fazer amor o
melhor possível. Inicia-o numa coisa importante que é o acto físico do amor.
Não
era que a religião tivesse assim tanta importância para ele… eu acredito é nos rituais… pois sim, mas não acreditava no que quer que
porventura existisse por detrás dos rituais. Mas a mãe era crente… sim, crente na forma espanhola, de maneira
pessoal, não espiritualmente, uma crença material e prática. Como assim? Quero dizer, mais idólatra do que
transcendente. Ele achava que os espanhóis iam à igreja e tudo isso, mas
tinham uma religião doméstica, com santos venerados em casa.
Todo Sobre Mi Madre fala sobretudo sobre
o pôr um ser no mundo, da maternidade… bom, maternidade que afinal
é paternidade… sim, e vice-versa. Almodovar quer dizer que para lá das
circunstâncias de cada um… claro, hombre,
existe um instinto animal… que nos incita a engendrar… e a defender o que engendraste e
a exercer direitos sbre esse ser que engendraste…
Um
filme também… sobre a solidariedade entre
as mulheres, uma solidariedade que se manifesta ao sabor das provações da vida.
E que é uma glorificação da frase essencial de O Eléctrico Chamado Desejo: “sempre
dependi da bondade de desconhecidos”…
Existiria
tal solidariedade entre os homens? Ele diz que não. Não conhece muitos homens –
excepção feita aos religiosos – a tentarem ajudar-se, a organizarem-se. Coisa
que nem sequer pode imaginar. Parecer-me-ia
grotesco. E quanto á ideia dele de melodrama? O essencial. O desejo de ir
ao coração das coisas, retirando do caminho o que não seja necessário. Daí as
elipses. Que o entrevistador acha um tratamento paradoxal para um melodrama. Paradoxal, sim. Mas eu gosto do cinema de
sentimentos, embora os filmes sentimentais no geral não me agradem. E não
lhe agradavam em particular os filmes sentimentais feitos no EUA.
Era
pouco menos do que um milagre um filme ser recebido pelo público com as
intenções que o realizador lá tinha posto.
Somos muito complicados. Cada um de nós
vê um filme com as próprias referências, através da nossa própria história.
Mas
elementos há em filmes dele que ele acha familiares a toda a gente, que toda a
gente conhece e é capaz de sentir. Não
que eu seja pretensioso e diga que consegui exactamente o que queria, mas tenho
a impressão de que há elementos em mim mesmo que podem ser compreendidos em
todo o mundo por toda a gente.
Outra
coisa: Almodovar, um cineasta da família.
Estranho?
Pode parecer estranho, mas é um tema em que eu acho que se lhe manifesta
poderosamente o génio inovador. Ele aponta a circunstância que pode
caracterizar o fim do século XX: a ruptura da família. Doravante seria possível
criar uma família com outros membros, com outras relações, aliás, com outras
relações biológicas. E acha ele que as famílias são instituições a respeitar
seja qual for a natureza e a constituição delas. Porque há que sublinhar o
essencial: que os membros da família se amem.
Mas
as tuas personagens sempre viveram com uma ideia diferente de família - a “voz”
do entrevistador. Eu esqueço-me dos
filmes que fiz. Repara, uma das religiosas de Negros Hábitos fundou uma família com um padre e um tigre. Sempre vi as coisas com esse espírito. Em Saltos
Altos a personagem de Victoria Abril
estava à espera do filho de um homem que se travestia para se tornar mãe dele…
famílias multiformes, que assentam na afeição.
Em
Todo Sobre Mi Madre, repara que a
família também é um grupo de teatro. Muito
bem, consequência do facto de eu ser um cineasta e trabalhar em equipa com
muita gente. Almodovar gosta desse tipo de família constituída pelas
pessoas que trabalham juntas e que têm uma base emocional a uni-las.
Penso que a salvação provém do grupo que
te acompanha. Sentes-te menos só e o grupo de trabalho acaba por se tornar a
tua família.
Será
que Almodovar pensou no falecido colega alemão Fassbinder, que criara uma
família de colaboradores e que misturava a criação artística com a vida real?
Não. Almodovar considera-se menos depedente do que Fassbinder das pessoas que o
rodeiam. E além disso diz que recusa fazer como Fassbinder que tiranizava as
pessoas com quem trabalhava.
O
grande plano. Diz que tem um conteúdo narrativo muito forte e é de utilização
complexa. O grande plano é uma espécie de
radiografia da personagem e não permite a mentira. É fácil tecnicamente, mas
tem que se estar muito seguro do que a personagem deve transmitir nesse preciso
momento. E também muito seguro da maneira como o actor vai passar esse
sentimento.
Um
pensamento curioso de Almodovar: hoje em dia, na vida real, existem muitas
profissões que não se podem exercer como deve ser se não se for actor. E é
verdade. As histórias do cinema ou do
teatro repetem-se na vida, mas nunca
verdadeiramente acabam da mesma maneira. E queria fazer um filme sobre uma
mulher que sabe fingir na perfeição, que sabe representar e desempenhar um
papel e que vai desenvolver esse dom no quadro do seu trabalho.
Não sou vaidoso ao ponto de acreditar que
cada um dos meus flmes vai ser um sucesso imediato. A incerteza é um estado
normal, mesmo quando se está contente com o filme que se terminou.
Na
altura em que Pedro Almodovar disse o que atrás se leu, Todo Sobre Mi Madre acabava de estrear em Espanha e preparava-se
para competir em Cannes. Abril de 1999. Eu
tinha dúvidas sobre o ir ou não ir a Cannes. O que o incomodava mais era a competição. Não gosto nada da ideia de poder ver filmes
opondo-os uns aos outros.
Há
um filme que lhe transmite a plena sensação de ter entrado seriamente na
linguagem do cinema. Negros Hábitos.
Depois veio Que Fiz eu Para Merecer Isto.
E foi outro avanço. Um avanço até de ordem pessoal. Senti-me livre para tratar um assunto inspirado pela minha história
pessoal, pela minha família, pela minha classe social. Senti-me mais confiante
e mais feliz a dirigir actores. E é nesse filme que Almodovar dá o passo
decisivo para o que, segundo penso, viria a ser uma das mais notórias
características do estilo dele. O abater das barreiras do género. A mistura
entre drama e comédia. Dirá ele que tal facto se viria a tornar uma marca de
fabrico.
Pensava
que os filmes dele descreviam uma muito coerente progressão, que o filme
seguinte completaria o que fora dito no filme que o precedera. E é claro que falo em termos gerais, diz
ele, porque Matador, que se seguiu a Que Fiz Eu Para
Merecer Isto, é sem dúvida o filme que
mais insatisfeito me deixou.
Almodovar
escreve um novo argumento. Avança depressa. Està à escrita faz 15 dias, porém
sobre notas que vem tomando desde há dois anos. Gostaria de ter a certeza de
estar a escrever o argumento do seu próximo filme, mas não se sente em
condições de saber se esse argumento é absolutamente ridículo ou absolutamente
maravilhoso. Ou, quem sabe, se as duas coisas ao mesmo tempo.Tudo pode depender
da maneira como esse argumento for filmado. É, em qualquer dos casos, material
de risco.
Pensa
que poderá flmar aquele argumento e apresentar o filme sob pseudónimo. Todos
saberão que o filme é dele, mas sob pseudónmo sentir-se-à mais livre. E também
sob pseudónimo será menos importante para ele saber se o filme resulta ridículo
ou não.
Suponho
eu que se tratasse do filme que viria a chamar-se Habla Com Ella. Mulheres que por acidente ou doença deixavam de
falar. Homens que com elas, em situações diversas embora, convivem. Gosto da ideia de dois homens que continuam
as suas vidas com mulheres que já não falam, mas que são tão expressivas como
esses homens, se bem que de outra forma. Não era fácil para ele. Mas a
ideia excitava-o.
Achou que todos se sentiram recompensados
quando recebeu o Oscar por Todo Sobre Mi Madre. Porque era o
primeiro para um tipo de cinema que marchava no sentido oposto ao da
mentalidade da maioria. Sente que os filmes dele estão à margem e que todos
aqueles que não pensam em termos de mercado se sentiram recompensados com o Oscar que ganhou. Muitas pessoas me disseram sentir-se identificadas com o meu Oscar, os
que queriam continuar a trabalhar sem serem presas do mercado.
Ter-se-á
então Almodovar comprometido a ficar refém desse espírito anti-mercado
cinematográfico. Mas não queria tornar-se um exemplo moral. Porém, na verdade… na verdade é o que sou: um exemplo moral. Mas
contra a minha vontade. Diz ele que a trajectória é… como é? Faz o que queres fazer, confia em ti, sê
paciente, não te vendas, e obterás o melhor. Mas não seguiu essa
trajectória, diz, por imperativos morais. Não, segui-a porque era mesmo o que eu queria
fazer.
(Baseado
no livro de entrevistas com Pedro Almodovar, assinado por Frédéric Strauss, da
editora 90 graus, intitulado
justamente Conversas com Pedro Almodovar.)
O cinema português só teve um criador digno dos epítetos de génio, original, excepcional, etc: João César Monteiro.
ResponderEliminarÉ verdade. Apesar de não gostar de todos os seus Filmes...
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