PODEM (DEVEM) OS
POLÍTICOS SER BOAS PESSOAS?
Veio-me isto à cabeça já há tempos, quando foi
notícia a publicação do livro de memórias de Cavaco Silva…
Político boa pessoa?
Boa pessoa antes de ser político, um sacaninha durante o tempo da sua actividade como político? Possivelmente. Sacaninha porque a isso poderá ser constrangido, se não quiser ser empalmado pelos adversários e inimigos – para não falar dos próprios correligionários. E regressando à qualidade de boa pessoa logo que abandone as funções públicas.
Que tal? Muito esquemático, talvez.
Por acaso, já no pós-guerra francês, Albert Camus,
escrevia no Combat: nós queremos chefes que não nos deem vontade
de rir.
Ah, ah, ah… apetece-me dizer.
Personalização é conceito que se afasta dos domínios
institucionais e engrena na psicologia social, uma identificação com o grupo do
poder, grupo esse que na personagem detentora do poder se reconhece.
Chefes.
Houve quem dissesse (há muito tempo) que um bom
governo só resultava na homogeneidade que radicava no poder de um só.
Poder pessoal e personalização do poder. Chefes, ui!
Há um ponto a esclarecer: personalização do poder e
poder pessoal; não são a mesma coisa, apesar da proximidade prática e concreta
dos dois conceitos.
Poder pessoal é a realidade institucional; é a
pessoa que controla todos os poderes, que domina a mecânica do Estado – eis
aqui as velhas tiranias, as obsidiantes ditaduras, as monarquias e os antigos
regimes.

Haverá poder pessoal sem personalização do poder?
Parece que sim. Tanto quanto parece aos
especialistas pode haver (Kennedy, Roosevelt, Churchill). Mas o mais corrente,
claro, é a existência cumulativa das duas situações.
A fazer fé nos especialistas – e pode ser que isto
ande tudo ligado -, a forma que as mentes paranoides usam de mais frequência
para incrementar a auto-estima é através do exercício do poder. A demonstração
da razão que lhes assiste empresta-lhes a sensação de triunfo, a sensação
apaziguadora de rectidão pessoal e autoridade moral, a segurança. E aqui o
pendor litigante dos indivíduos paranoides, a necessidade de desafiar e
derrotar.
Que Cavaco era um político geralmente antipático,
empedernido, inacessível, duro, rigoroso, rígido, enfim, já se sabia. Ou era o
que parecia. A cara talhada a canivete não o ajudava, mas cada qual é como é, e
não nos podemos admirar que cada um leve aquilo que é e o seu estilo de ser
para a actvidade que desenvolve.
Mas ao abandonar os altos cargos, com setenta e
bastantes anos no corpo, e ao escrever memórias, não era nada de mais que
aproveitasse para trazer ao de cima, pela escrita, alguma bonomia, algumas das
amenidades pessoais que tivesse deixado entre parêntesis enquanto homem público
em altos cargos.
Mas não.
Quando alçapremado ao poder por empolgante maioria
absoluta, Cavaco Silva assumiu-se como “o chefe”. A mim pareceu-me sempre mais
um baço chefe de escritório do que um vibrante caudilho de governo ou um
venerável chefe de Estado. E foi como chefe que os súbditos o encararam e
aceitaram, eventualmente por pensarem que em tanta e tão aparente democracia o
que fazia mais falta ao país era mesmo um chefe. Há muito homem que não resiste
a ser tratado como chefe, nem que seja da chafarica mais infecta.

Um pouco de História…
Para ter mão forte sobre as massas populares – e
quem a tem sobre as massas populares também a tem sobre as outras massas – já
dizia o afamado Dr. Goebbels, é preciso um chefe. Mas um chefe que saiba impor
a sua personalidade. E assim porque as massas populares seriam aparentadas às
mulheres, preferiam um homem forte a um homem fraco – conheci algumas que
preferiam exactamente o contrário, mas isso seria outra conversa…
“As massas de uma nação rendem-se à palavra falada”
– repare-se: não escrita. E o chefe gerará paixão nos seus apaniguados na
medida em que ele for um apaixonado. Porque sem paixão não há chefia. E a
chefia é a concepção fanática da vida. “Todos os grandes movimentos se devem
aos grandes oradores e não aos grandes escritores”.
Goebbels propugnava mais: que as massas não tinham
necessidade nenhuma de ler.
Bem sei, era naquele tempo e naquela circunstância
histórica. Todavia, hoje por hoje, na iliteracia campeante promovida pelo novo
liberalismo que deixa os livreiros de cabelos em pé, o tempo pode estar a
voltar para trás, como cantou essoutro filósofo chamado António Mourão.
As massas não teriam então necessidade nenhuma de
ler porque gostavam de se rever numa presença viva.

(E Cavaco até escusou de ser um orador, e menos
ainda um apaixonado…)
Na política, todos sabemos isso de sobra, há o dizer
e há o fazer. E tempo houve em que o princípio da actividade política era o
verbo e o político modelo era o ideólogo retórico. O dizer era capital, o fazer
logo se veria. A forma prevalecia sobre o fundo. A palavra era o instrumento da
acção política por excelência.
Não sei, não tenho competência nem estudos para
saber até que ponto as coisas mudaram assim tanto e tão radical e profundamente
– de resto, para quem alimenta de televisão o quotidiano disponível as coisas
parecem não ter mudado quase nada…
Mas os técnicos dizem que sim, que tudo mudou. Que o
cerne da acção política já não está no verbo, que está na ciência (política) e
na acção. Dizem que a política é saber fazer algo mais do que discursos. Fazer
algo mais no Direito Constitucional, na Economia, nas Finanças.
Fernandez de la Mora escreveu acerca das alterações
da sensibilidade popular. O pessoal já não ouve tanto quanto vê. Realizações
concretas é o que o público eleitor quer ver na acção política – para além de
continuar a ouvir a música dos discursos, de tentar compreender a comédia dos
pontos programáticos que os partidos propalam, de conformar-se com a hipocrisia
dos princípios.
O político no poder afirmar-se-á pelo que é estatisticamente
mensurável. E do puro político retórico, mui paulatinamente se passou ao perito
especialista. Não tem ideologia. É bacteriologicamente puro nesse particular. Não
tem cultura. Tem ciência. É um profissional. Boa pessoa? Escusa de o ser…
Cavaco marcou em Portugal uma época de viragem.
Justamente a dos tribunos loquazes da tradição primo-republicana – e que ainda
remanesceram um tanto no imediato pòs-25 de Abril – para um tempo de
tecnocratas, de peritos, de operadores de estatísticas mensuráveis, de
economicismo implacável e de um específico fanatismo que tudo reduz a números,
tentando fazer da política uma ciência exacta.
Como digo, Cavaco era um governante antipático mas o
pagode não lhe faltou com os votos, tomando-o por um político sério e
finalmente não retórico.
Daí a ser boa pessoa…
É mais do que sabido que a vitória dos Aliados na II
Guerra Mundial pôs um fim ao prestígio dos autoritarismos e abriu caminho ao
sistema demo-burocrático como o conhecemos.
Foi música celestial para a fácil tomada do poder
político pelo poder económico-financeiro, e de modo a que os governos e demais
instituições democráticas descambassem para a condição de instrumento desse
poder económico-financeiro – como todos os dias temos disso a evidência.
É daqui que decorre a emergência da mediocridade que
se segue ao poder dos últimos líderes carismáticos, De Gaulle ou Adenauer, por
exemplo, os que tinham prestígio político bastante para se imporem aos ditames
da finança. Mas esses prestigiados carismáticos foram desaparecendo e o poder
económico-financeiro ficou como quis, dono e senhor dos destinos (os nacionais
e os particulares) colocando às suas ordens políticos intelectualmente
medíocres, alcandorando-os ao poder pela força das máquinas partidárias de propaganda.
Máquinas de propaganda, é claro, financiadas pelo poder económico-financeiro.
Nem podia ser de outra forma.
Pensando no livro (por mim não lido,
aliás) de memórias de Cavaco Silva, inevitavelmente me ocorreram as figuras dos
dois últimos presidentes da nossa república, os que escreveram memórias, os que
ajustaram contas literárias (se assim se puderem chamar) com os primeiros-ministros
que lhes tocaram em sorte. Santana Lopes e José Sócrates.
Pormenores, dir-me-ão. Aceito. Fraquezas
da condição humana. Aceito. Porém, pormenores e fraquezas que marcam as duas
memórias, como se para os comentadores nada valesse a pena esgravatar do
conteúdo – talvez não valesse mesmo, não sei, não as li e não gostei, como
diria o crítico literário brasileiro.
Isto da política é o diabo...
Sim, se fossem mesmo boas pessoas não o
teriam feito – mas também, calhando, se fossem assim tão boas pessoas teriam
sido canonizados e não teriam ocasião de se conseguirem guindar a tão alta
magistratura.
E se essa vulgaridade do ajuste de
contas era de esperar da vulgaridade mesma, intrínseca, do provinciano sobre o modernaço
tecnocrata, que era o frio Cavaco, digo, não a esperaria eu da inutilidade
retórica e dos fumos humanistas incomparavelmente mais cultos e refinados de
Sampaio.

Isto da política é o diabo...
Quem vai para a política? E porquê?
Houve quem tivesse ido para salvar o
mundo. Em tempos mais puros, diria, quando a ética e a moral ainda tinham
algumas possibilidades. Odiernamente pode ser que alguns entrem na política
para salvar o mundo, muito bem, mas, perante a enormidade da empresa, acabarão
por se salvar a si mesmos, o seu próprio mundo, porque não…
Há os que vão para política já
destinados a voar alto. E há os que querem governar a vidinha e já vão
sentenciados à medíocre obscuridade, os proto-caciques autárquicos, por
exemplo, ou os vagos deputados da última bancada.
Professor de Finanças, ministro de Sá
Carneiro, Cavaco estava destinado ao voo alto de parecer, pelos modos e pela
comunicação pessoal, o Salazar que se podia arranjar em democracia.
Advogado, com a baixa evidência política
enquanto activista nas crises académicas dos anos 60, seguida de acção no
civilizado micro-esquerdismo do MES dos anos 70, não seria imediatamente
previsível para o apagado Sampaio um destino glorioso nos mais altos cargos –
presidente da câmara da capital já não era nada mau.
Questão de conjunturas. Possivelmente.
De tempos históricos mais ou menos propícios. Questão de temperamento ou de
qualidade de ambição. Também.
Ainda assim, gosto de distinguir os
dois, Sampaio e Cavaco (por ordem de entrada em cena presidencial). Distinguir
as diferenças entre o homem visceralmente de esquerda que era Sampaio, e o
homem visceralmente de coisa nenhuma para lá da vaidade sorna e da ambição
pessoal que era Cavaco.
Boas pessoas?
Bem, não sei se por afinidades mais
ideológicas, acho que consigo deduzir essa qualidade de boa pessoa mais
presente, infinitamente mais, em Sampaio do que em Cavaco. Acho. Daí à
realidade é que não sei. Não conheci nem um nem outro, o que não me autoriza
juízos dessa qualidade. Ambos me eram antipáticos por razões substancialmente
diferentes que não interessa para agora discriminar.
Porque, lá está o óbvio, uma coisa é
ser-se boa pessoa no concerto dos amigos e da família, enquanto cidadão comum,
e outra coisa é sê-lo enquanto dirigente político.
Então oiça lá, seu bloguista de água doce,
mas o político deixa de ser uma pessoa lá por ser político? Pois é. Deixa.
Passa a ser um símbolo. Deixa, ou pode deixar, conforme as alturas a que
ascenda. Se deve deixar é outra questão. Mas que pode deixar pode, e geralmente
deixa.
Na mais baixa acepção passa a ser
símbolo do seu partido, um homem de partido, e por isso mesmo detentor de verdades
oscilantes e alinhadas quando ditas da boca para fora, e de decisões que
comprometem primeiramente os seus seguidores.
Na mais alta das acepções passará a ser o
homem de Estado, de falas e decisões que antes de mais dependem não tanto dele
mas da razão de Estado. É muita carga para um homem comum e boa pessoa.
Haverá portanto os que se adaptam e
esquecem a antiga qualidade de boa pessoa e serão boas pessoas consoante a
circunstância. Haverá os que conseguem trazer essa qualidade de boa pessoa para
a vida pública e para a decisão nacional. Se tal for compatível. Do que se
duvida.
Haverá os que se possam sentir nas suas
sete quintas, sem rebates de consciência, e porque, finalmente, se alçaram a
uma condição supra-humana em que ser boa pessoa é o que menos importa para o
bom cumprimento da função. Mas também temos os que cumprem menos bem a função
exactamente porque deixaram à porta do palácio em que trabalham o
condicionamento ético-moral de serem bons seres humanos.
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ResponderEliminarA «superioridade moral», ainda que republicanicamente elocubrada entre os modos balbuciante e comediante, não constitui neste sistema de gestão política prioridade real, efectiva ou sequer pragmática.
ResponderEliminarContinuo à espera que um dia dê "à estampa" os seus discursos de rádio (lidos e guardados os poucos que me mandou)e, AINDA, esta crítica, este olhar (des)apaixonado pela nossa vida. Diga-me, avise-me. Às vezes, parece-me ler o velho "Diário de Lisboa" e alguns dos seus queridos jornalistas... Abçs
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