quarta-feira, 10 de abril de 2013




BERLIM, OU O HOMEM DAS ESQUINAS OBLÍQUAS



            Não, também nunca fui a Berlim. E nem posso dizer que não gostasse de lá ir. O que tenho é as minhas exigências como turista.
            Adrian Leverkhün, personagem que os mais lembrados já identificaram como o protagonista do Doutor Fausto,  de Thomas Mann,  não tinha interesse nenhum em viagens feitas com a finalidade receptiva, ver coisas para adquirir cultura. Estou mais ou menos como ele.

          Viajar para adquirir cultura? Mas se conheço tantos viajados sem cultura nenhuma!
         É por isso que acho que tudo se deve passar ao contrário. Faz-se a viagem porque se conhecem coisas, porque se tem informação, porque se adquiriu previamente a cultura implicada nessa viagem. Cultura é justamente tudo aquilo que se deve levar para uma viagem. Caso contrário, acontece o que aconteceu a algumas daquelas pessoas que começaram a viajar logo a seguir ao 25 de Abril, com ordenados da função pública aumentados (oh, que tempos!) e quando a economia portuguesa parecia ser verdade: Roma, Nápoles, Florença e Veneza em cinco dias. Ao sexto dia, o mediano funcionário público de estatuto adquirido, com garantia de pleno emprego vitalício e ordenado aumentado, oh, sim, era uma pessoa viajada.   

        Então e que tal Veneza? “Ui! Uma porcaria velha e mal cheirosa. Detestei.”  
          Ou como o casal de portugueses que numa primavera há muito passada encontrei à porta de um hotel em Génova a deplorar uma Itália que não se renovava urbanisticamente com a necessária rapidez, uma Itália que insistia em se manter histórica e em manter de pé uma data de velhos palácios, “são bonitos, está bem, é como o outro, mas já fizeram a sua época, já não têm serventia para nada”. E Veneza? “Com Veneza nada há a fazer. Em vez de entrarem na modernidade, secarem aqueles canais e fazerem prédios modernos e ruas decentes por onde possam passar carros, não senhor. Veneza, meu amigo, é um caso perdido, nada daquilo já se pode renovar.” 
          Eis um português mediano viajado. Cultíssimo! Não sei se era funcionário público. Cheirou-me a engenheiro.
            Tudo isto para dizer que, bem vistas culturalmente as coisas, Berlim é cidade que não me desperta gulas de maior, não obstante lá se terem passado importantes, belas e desgraçadas coisas. Berlim não está nada parecida com o que culturalmente já foi. Está boa para ser visitada pelo casal português de que falei.     

                                  

            “Este homem é parvo”, pensa o leitor mais viajado, ou o mais ansioso por viajar. “Este homem não sabe o que está a dizer”. E terá a sua razão. Sou parvo. Sei lá o que estou a dizer. E sou pior: sou reaccionário. Entre outras coisas porque se fosse a Berlim teria de levar comigo obrigatoriamente a minha cultura, a minha cultura da cidade, porque a cultura, entre outras (e actualmente muito poucas) vantagens, tem a vantagem de ser uma coisa que se leva para uma viagem sem pesar na mala, sem ocupar espaço físico, sem se pagar pelo excesso.


            “Mas vá lá, seu parvalhão convencido, leve lá então a sua cultura para Berlim”. Está bem, mas se eu levar a minha cultura berlinense para Berlim o mais certo é não gozar muito com a viagem, visto que, como digo, a Berlim da minha cultura já não existe. Porque a Berlim da minha cultura, ou a cultura da minha Berlim, me obriga às visões impossíveis de uma Berlim de entre-guerras que já não há.
            O que é que eu quero dizer com isto? Quero dizer a Berlim expressionista. Já não há Alemanha expressionista. Mas se em vez de Berlim estivesse em causa Munique, poderia contentar-me com uma Munique romântica – que por acaso também já não deve haver, é claro. “Bom, daqui a nada este está-nos a dizer que a Alemanha já não existe só porque não existe na fantasia-retro-pseudo-cultural que é a dele”. Pois, meu amigo, é essa a vantagem de quem não viaja. Deter o tempo de uma cidade em ideais fantasias-retro. Culturais. Ou pseudo.


            A Berlim da minha fantasia é uma Berlim de espectros alongados. Uma cidade onde, por uma ninharia qualquer, um homem pode perder a sua sombra ou deixar de se ver reflectido num espelho. Uma certa Berlim mística e mágica, cenário de combate entre forças obscuras no íntimo de homens aterrorizados que aparecem e desaparecem por esquinas oblíquas, que beberricam em cabarets de fantasmas; uma Berlim arquejante de sobreviventes e desempregados da vida; a excessiva Berlim dos vencidos e humilhados de uma Primeira Guerra; a Berlim de onde brotou uma estética.

            Na noite de S. Silvestre o diabo reserva-me sempre uma surpresa especial. Ele sabe bem como fincar o seu fino espeto no meu peito e com espantosa ironia regalar a vista com o sangue que esguicha do meu coração. E todavia, isto foi escrito por um alemão que viveu muitos anos antes dessa Primeira Guerra. E.T.A. Hoffmann.
            Claro, o expressionismo é o diabo. E o diabo, depois de o ter feito abundantemente na Idade Média, frequentou assiduamente Berlim pelos decénios de 10 e 20. Até se transformar em estética e comunicação. 
       

       O diabo é o autor das linhas interrompidas e das formas distorcidas das cenas onde uma suposta realidade supostamente se desencadeia. Foi mesmo o demónio expressionista quem regulou a luz baça e os densos fumos dos famosos cabarets berlinenses. Foi o diabo que sempre perpetrou as dolorosas derrotas alemãs. Foi o diabo que marcou o compasso das tragédias pessoais dos habitantes da cidade. Foi o diabo que regulou o tráfico em Alexanderplatz ou na Wilhelmstrasse. Era o diabo o enigmático recepcionista que registava viajantes furtivos e culpados nos lobbies dos grandes hotéis dos anos 20. O diabo conduziu os pensamentos abstractos e doentios dos berlinenses do meu sonho cultural. E o diabo hoffmaniano fez mais: esteve presente e chegou a governar Berlim por treze infindáveis anos, a começar em 33 e rematando o seu trabalho em 45.


                                                                         

            O berlinense actual, alimentado pela cultura do mercado e babado com a pós-pós-modernidade da arquitectura, vê os factos e as coisas com muito mais pretensa lucidez, tenho a certeza, do que o berlinense expressionista da minha cultura. Mas esse berlinense expressionista ia mais longe: não via o real tal como era; tinha visões. Para o berlinense expressionista os factos e as coisas nada eram em si mesmos, porque guardavam uma essência oculta que só ele, homem expressionista, podia esmiuçar e manter eternamente secreta. O berlinense expressionista não se contentava com a realidade porque via na evidência do visível uma realidade falsa. O homem berlinense julgava ver das pessoas e dos objectos, para além da forma imediata e perecível, a sua significação eterna: uma expressão e uma latência mágicas, sangrentas. E por isso se desligava da sociedade, da moral e da mesquinhez da lógica e dos remorsos burgueses. E por isso se abandonava, deleitado e deprimido, aos seus impulsos e assim vivia o êxtase maligno do espírito. O berlinense expressionista chamava-se a si mesmo um adolescente apocalíptico e opunha-se aos velhos, aos expoentes do conformismo. Hölderlin reconhecia o tormento, a dilaceração de alma, o paroxismo dos seus compatriotas, os eternos bárbaros, como lhes chamou.

            Pelo cinema, com os estranhos gabinetes dos Drs. Caligari, e pelo teatro, com as formidáveis encenações de Max Reinhardt, o expressionismo foi arte e atingiu expressão e universalismo, e por essas veredas fez subir a cidade aos pináculos do seu significado profundo. Os anos 20 foram uma ameaça apreciada nos palcos, nas telas e nos ecrans. O expressionismo foi uma estética de ameaça. Uma ameaça que se cumpriu. Uma estética que se fez vida demasiado verdadeira.


            A Noite de Cristal é um alto e desgraçado momento de vida do homem expressionista. Outra noite, a dos Facas Longas, dá no momento próprio a cutilada final nas costas do realismo que ainda pudesse subsistir na alma do berlinense, do homem expressionista.


         Depois, o incêndio do Reichstag. Depois, a ascensão de Hitler, de Himmler, de Goebbels. Os pesadelos raciais. As celebrações guerreiras entre as sombras maléficas projectadas pela luz dos archotes de Nuremberg. A iniciática das SS. A guerra. Estalinegrado. Por fim, a queda. O bunker.

  
                                               
                                   

            O espírito e a estética que a cidade inventara desciam sobre os últimos dias de Hitler quando, no bunker dessa Berlim, convocava pateticamente os astrólogos que ainda sobrevivessem entre as chamas e a ruína; quando assassinava o seu cão favorito; quando grotescamente casava com Eva Braun; quando ia ao armário dos venenos privados que tinha no gabinete e ingeria a pastilha de cianeto em gesto coordenado com o disparar da pistola para a própria boca; quando representava enfim o seu papel na peça expressionista que ajudara a conceber. E isso feito alguns poucos metros abaixo da Berlim fantasmática de fogo e escombros, quando não havia já pedra sobre pedra: era o expressionismo vivido que se abatia sobre a cidade real com a força do cumprimento de uma profecia. De uma estética. De uma cultura.


            Que me interessa a Berlim envidraçada, brilhante, financeira, arquitectónica, festivalesca e hiper-racional de hoje, desprovida de tragédia e de cenografias, uma cidade que o diabo já não frequenta e onde as coisas parecem exactamente aquilo que são?
                     


            Como poderia eu levar para Berlim a cultura que tenho de Berlim?
           
                        

2 comentários:

  1. Para levar para Berlim a cultura que possui de Berlim deveria, para começar, não ir de avião, mas sim de comboio. Passando por Jena, Leipzig e Magdeburgo, através da mítica floresta de duendes da grande Planície Norte europeia.

    Deveria ficar num apartamento habitacional, familiar ou comunitário, ou então hospedar-se numa Pensão modesta, talvez no Bairro de Kreuzberg, junto à Ponte da Porta da Silésia (reservada em exclusivo aos moradores de Berlim-Oeste com autorização especial de visita a familiares do outro lado do Muro, durante os tempos da R. D. A.) e, de preferência, deveria ir no Outono.

    Deveria evitar ostensivamente toda a zona central da "nova arquitectura" pós-moderna, tecnocrática e falante do Esperanto artístico e cultural, bem como toda a zona "cosmopolita" do Turismo de luxo (e do lixo) e das super-defendidas Embaixadas ocidentais mais poderosas (lá se ia a Porta do Brandeburgo e o troço inicial da Avenida Sob as Tílias, mas paciência), e fugir do mostruário obsceno de ostentação da longa Kurfürstendamm (Ku'damm), os "Campos Elíseos" de Berlim, assim como dos centros comerciais e das passeatas turísticas organizadas.

    E começar por ir a Potsdam e depois ao Wannsee, antes de mergulhar específicamente em Berlim.

    Aí, evitar as enchentes, escolhendo os dias da semana em que os Museus não são gratuitos ou mais baratos, e percorrer as zonas mais populares ao final da tarde e princípio da noite, nas velhas esplanadas e cervejarias de Bairro, olhando bem os idosos - grande parte do atual fascínio de Berlim reside no magnético, mas quase insuportável, olhar dos mais idosos, em especial no das mulheres (já que homens idosos quase não há...).

    Subir à Torre das Telecominicações (Alex), na Alexanderplatz, ponto de visita obrigatório dos antigos turistas de Leste à R. D. A., dará uma boa perspectiva da traça urbana central, reerguida dos escombros ("Auferstanden aus Ruinen", tal como começava o Hino da ex-Alemanha Oriental...) após 45.

    E procurar lojas com velhos Mapas, livros nos alfarrabistas, ir à Feira da Ladra local (Mercado das Pulgas) e perder-se nos corredores dos principais Museus, ou ficar tranquilamente a ler num relvado à beira do Rio Spree, ou num dos muitos Cafés de inspiração parisiense e huguenote, poderão ser outras maneiras de penetrar na magia única e envolvente de Berlim, que apesar da destruição física e humana por que passou continua a sentir-se, ou pressentir-se, de uma forma difícil de explicar, mas que indelévelmente marca o visitante menos superficial da Cidade.

    Tenho lá amigos onde pode ficar, se conseguir fazer algumas concessões (não demasiadas) a um certo convencionalismo e provincianismo tripeiro (dela) e bávaro (dele), mas com larga vantagem para a simpatia e a generosidade.

    Sabe onde me contactar...

    Boa viagem!

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  2. Como eu o compreendo. Estudei em Londres nos anos 60 e em Berlim nos anos 70. A Londres voltei e não me encontrei e a Berlim também tenho receio de voltar. Concordo totalmente consigo, viajar tem muito que se lhe diga. Consumir locais e países, isso é fácil...

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