UM DIA GOSTAVA DE IR A S.PETERSBURGO
Claro que lhe imagino um azul dominante, o primeiro elemento
onírico de quem nunca esteve num sítio mas que traçou desse sítio uma
topografia, fez dele um desenho, compôs-lhe um enredo, inventou-lhe as
dimensões, atribuíu-lhe uma cor, à força de ver a realidade representada em
fotografia ou em filme.
E é evidente que eu não podia evitar o azul na minha falsa
memória de S.Petersburgo, o azul e o ouro do Ermitage, o azul certamente enxovalhado
do curso do Neva.
E
por falar em Neva, é inevitável pôr em S.Petersburgo, por cima do azul, o
branco dos invernos e ver a magnífica carruagem do czar e da czarina a entrar
os portões do Palácio desse Inverno, e até imaginar o dia 17 de Fevereiro de
1880, quando a sala de jantar do palácio, por efeito de uma acção anarquista,
explodiu dez minutos antes de o czar se sentar à mesa.
E ver o suporte do poder
do czar e da czarina – se ainda não se transformou em condomínio de luxo - a
tenebrosa fortaleza de S. Pedro e S. Paulo, onde o czar Pedro, o Grande matou o
próprio filho.
É imprescindível pormos cor nas cidades que não vimos. E
para S.Petersburgo já tenho bem boas cores, os tais azuis e os tais ouros das
monarquias sanguinárias, dos revolucionários e dos museus maravilhosos. Tenho o
branco do inverno. Falta uma cor, uma importantíssima cor a acrescentar à
História da velha Petrogrado. O vermelho. O vermelho do sangue da repressão
czarista e o vermelho das primeiras bandeiras (também vermelhas) que contra
esse sangue se levantaram.
Talvez muita gente não saiba que no dia 24 de Outubro de
1917 Lenine andava a fazer uma figura triste nos subúrbios de
S.Petersburgo. Tinha rapado a pêra e tinha posto um chinó. Parecia um cómico de
província. Mas era a maneira mais expedita de se disfarçar de operário e de se
misturar com a multidão, já que tinha a cabeça a prémio.
Nesse dia, S.Petersburgo formigava de gente na expectativa
de um magno acontecimento. Os exércitos imperiais tinham debandado das frentes
de guerra e muitos dos soldados tinham vindo a pé para casa. Dezenas de milhar
de desertores andrajosos andavam, portanto, pela cidade a mendigar. Os cidadãos
circulavam pelas ruas à toa. O quê, e quando, e onde, poderá acontecer alguma
coisa?
Mas
os teatros funcionavam e os cafés estavam cheios. O levantamento dos operários
é que estava iminente. O governo acumulava tropas na cidade, na inútil
precaução (como no Barbeiro de Sevilha)
de reprimir o levantamento popular.
Lenine
hesitava quanto à marcação do dia exacto para a greve geral e consequente
sublevação contra a ditadura de Kerenski. Trotzki discordava.
Trotzki
não precisava das massas trabalhadoras para nada. Entendia que para avançar com
a revolução a primeira coisa a fazer não seria atacar directamente o Palácio de
Inverno, ou seja, o governo.
A
primeira coisa a fazer seria neutralizar a máquina do Estado. E para isso as
massas operárias sublevadas só vinham atrapalhar. Sem a máquina do Estado a
funcionar não haveria governo. O exército, os junkers e os cossacos fiéis a Kerenski acumulavam-se em
pontos-chave e poderiam reprimir as massas amotinadas com a maior das
facilidades. O que não podiam era travar a acção dos mil homens discretos,
treinados e prontos para tudo que Trotzki tinha a desenvolver manobras
invisíveis no terreno, divididos em dez grupos de cem, disfarçados entre a
chusma, misturados com o caos que reinava na cidade, a infiltrarem-se nas
centrais telefónicas e telegráficas, nos escritórios, nos ministérios, no
estado-maior, nas centrais eléctricas, nos gasómetros, nas estações de caminhos
de ferro.
Para
desencadear a acção revolucionária Trotzki precisava só de um pequeno grupo de
homens silenciosos e prontos a intervir nos pontos vitais do funcionamento do
Estado. No pensamento de Trotzki, a revolução era tão somente um problema
técnico.
O grupo dos mil homens de Trotzki era composto por operários
escolhidos a dedo nas fábricas Putilov,
marinheiros da esquadra do Báltico, soldados dos regimentos letões. E
eram engenheiros. Operacionais enquadrados por engenheiros. E o principal
cérebro desses técnicos era um xadrezista chamado Antonov-Ovsienko. Desarmados,
entravam e saíam dos sítios onde se controlava a máquina do Estado, tomavam
nota de tudo, rotinas, itinerários, topografias, horários, asseguravam-se da
planta das condutas subterrâneas do gás, da água, da electricidade e dos fios
do telefone e do telégrafo. Levaram um mês a treinar, invisíveis. Ninguém lhes
passava cartão. Ninguém dava por eles. Quando chegou a hora…
Mas qual era a hora? Para Lenine, o dia 23 era demasiado
cedo e o dia 26 era demasiado tarde. É a 24 de Outubro que Trotzki dá a ordem
para desencadear o ataque. Tirando Lenine, os homens do partido bolchevista,
reunidos no Smolny para um congresso decisivo, não sabiam de nada.
E em poucas horas, e praticamente sem mortos, os comandos de
Trotzki tinham nas mãos a máquina do Estado russo.
O
governo estava reunido no Palácio de Inverno, fortemente guardado, à espera dos
acontecimentos. A chatice era que eles não sabiam ao certo o que vinha a ser um
acontecimento. A chatice era que os acontecimentos já tinham acontecido e eles
não sabiam; a chatice era que já não podiam comunicar com ninguém, dar ordens,
desencadear um contra-ataque.
Os
acontecimentos aconteceram sem acontecerem como se esperava. A máquina do
Estado estava paralizada. Os pontos chave estavam nas mãos dos mil homens de
Trotzki e as pontes do rio Neva estavam guardadas. Era impossível entrar na
cidade.
Trotzki entrega a revolução a
Lenine já prontinha, numa bandeja.
Lenine
já pode tirar a peruca e tornar a deixar crescer a pêra e o bigode. A revolução
de Outubro tinha sido muito simples. Agora era só ir prender Kerenski ao
Palácio de Inverno.
Eu, quando calha viajar, faço-o sobretudo para estar nos
lugares onde a História aconteceu.
E diga-se, já agora, que quando mais tarde, com Lenine já
mumificado, Trotzki se zanga com Estaline
e tenta a mesma táctica para o arredar do poder, está ultrapassado. Perde.
Estaline já lhe conhecia o jogo. Tinha tomado as devidas, e neste caso úteis,
precauções contra o tacticismo de Trotzki.
S.Petersburgo: azul, ouro, branco e vermelho. O Ermitage. O
Smolny. As avenidas do rio Neva. O Palácio Maria. O Teatro Marinski. O Palácio
Tauride. O Palácio de Inverno. A fortaleza de S. Pedro e S. Paulo – se ainda
não for condomínio de luxo. Lugares onde se representaram as as comédias e as
tragédias da cidade. Um dia gostava de lá ir. Mas são demasiadas horas de voo para um velho fumador
impaciente.
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