POR EXEMPLO, NÃO ME APETECIA NADA IR A
PEQUIM
- Senhor Presidente, tenho a honra de lhe entregar esta carta do
presidente da república francesa, em que o general de De Gaulle me encarrega de
ser seu intérprete junto do presidente MaoTsé Tung e de Vossa Excelência.
Palavras de André
Malraux, então ministro da Cultura francês ao chegar, em Pequim, à presença do
presidente Liu Shao Chi. Mao Tsé Tung estava lá.
E só mesmo um pateta inconsciente
poderia negar, ou mesmo minimizar, a função da leitura prévia numa mística de
viagem. Mas não foi só a Malraux que por acaso recorri como leitura prévia
para mais esta viagem que não fiz. A mulher de Hemingway, Martha Gelhorn nessa
época, apesar de endurecida como repórter de guerra, e muito machona por sinal,
deu por paus e por pedras quando lhe deram a beber o vinho de cobra que o
exército chinês bebia. Era feito de arroz fermentado e no fundo da garrafa lá
estavam duas pequenas serpentes enroscadas. O marido ainda lhe disse para
experimentar então o vinho de pássaros, que era uma massa de cucos esmagados e
recozidos em álcool, mas ela parece que não foi daí abaixo. E nos quartos dos
hotéis onde pernoitavam havia avisos escritos a aconselhar os senhores hóspedes
a não esborrachar os percevejos nas paredes para não dar cabo do papel.
- Se verdadeiramente me amas,
Ernie, tira-me deste filme da China, pela tua rica saúde - implorou Martha Gelhorn ao marido.
Caravanas de camelos do Tibete
continuavam nessa altura a entrar pachorrentamente em Pequim.
Pequim? Não tenho nada
a ver com isso. Nunca lá irei. É demasiado para mim, que olho para o sorriso de
um chinês e não posso fazer a mais pequena ideia se ele está a pensar em
apunhalar-me se simpatizou comigo.
As minhas pequenas
reminiscências pequinesas estagnaram num tempo histórico terrível que foi o da
Grande Marcha para o poder de Mao Tsé Tung. E continuo a ouvir a conversa entre
ele e André Malraux cinquenta anos depois dessa Grande Marcha.
- Quando os pobres se
decidem a combater vencem sempre os ricos – dizia Mao a Malraux, recordando a
revolução havida no próprio país do escritor.
Tempos da grande fome
de Tchang Che. Nas aldeias havia cabeças cortadas espetadas em varas altas. Os
suspeitos de rebelião eram enterrados vivos. (Gente simpática, afável,
cordata.) As árvores estavam todas descascadas, as cascas das árvores eram
comidas pelo povo faminto em extremo. As camponesas faziam o voto de reencarnarem
como cadelas para serem menos infelizes numa outra vida.
- Não há marxismo
abstracto. O marxismo era para ser adaptado às realidades da China – continua
Mao.
Mao Tsé Tung sempre
havia tirado partido das suas derrotas. Uma revolução não podia ser um drama
passional. O povo não se conquista pelo lado da razão. Perante situações de
fome extrema, a vontade de redenção pela igualdade é como a força de um
sentimento religioso.
Durante a Grande (ou
Longa) Marcha, quando estavam para chegar às portas de Pequim, os exércitos
revolucionários de Mao Tsé Tung tinham feito 50.000 prisioneiros. É o
gigantismo da escala e a exacerbação factual desses orientes o que sufoca o meu
conceito pequeno e ocidental de realidade. Pequim, a China, são para mim um
planeta desconhecido e desinteressante, uma dimensão humana cuja descomunal
tragédia não me sensibiliza.
Mas gosto do pato, sim,
o pato à Pequim…
Ouçam o Mao a falar:
- É bom ensinar às
massas com precisão aquilo que delas recebemos em confusão. O que conquistou
mais aldeias foram as declarações de amargura.
Os camponeses narravam
as suas dores. Uma camponesa vai perguntar a um senhor da guerra e grande
proprietário rural: “onde está o meu marido?”. “Olha, filha, deve andar aí pelo
jardim.” E andava. Ou antes: estava. No jardim. Decapitado. Deitado no chão com
a cabeça pousada em cima da barriga. A mulher agarra na cabeça do marido. Os
soldados precipitam-se para ela, querem tirar-lhe a cabeça das mãos. Ela defende-a
como que possessa de uma força sobrenatural. Até que os soldados se afastam
dela. O senhor da guerra que tinha mandado cortar a cabeça ao marido daquela
mulher vem, tempos depois, para grande azar dele, a ser capturado pelos
revolucionários e submetido a julgamento público e popular. Durante o
julgamento, a mulher foi-se ao senhor da guerra e arrancou-lhe os olhos com os
próprios dedos.
Estávamos nos anos 60 e
Malraux declarava a Mao Tsé Tung que a juventude ocidental estava profundamente
do lado dele. E era capaz de estar. E esse estar deu frutos e dividendos. E
lucros. Olhemos para a classe política portuguesa, por exemplo, e contemos os
antigos adeptos e sinófilos e ferrenhos e implacáveis revolucionários maoístas
desses anos 60 e 70 e compreendamos no que eles se tornaram hoje: presidentes
de conselhos de administração ou membros de governos ditos burgueses (o actual
ou outro qualquer), pró-capitalistas e o contrário, se for preciso, e muito
moderados, e ditos de centro-esquerda ou de centro-direita, tanto faz, conforme
convier mais à conjuntura. O que é a vida … o que são as tão temidas e
impetuosas revoluções! Talvez por isso é que já não as haja…
E como manter a paixão
revolucionária cinquenta anos depois de uma revolução? Aí está…
Era preciso fazer
desaparecer o pensamento e a cultura que haviam levado a China à situação
pré-revolucionária. Era necessário criar o pensamento e a cultura de uma China
proletária.
Durante os tempos de
revolução cultural chinesa corria em Lisboa uma anedota. O brincalhão
perguntava a um amigo: “sabes como é que se chama a mulher do Mao Tse Tung?” E
é claro que o amigo não fazia ideia do nome da senhora. Mas o brincalhão tinha
a resposta pronta: “chama-se Mau Maria”.
Malraux saí do Palácio
do Povo e resolve ir ver alguns túmulos. Passa o pórtico de mármore e mete pela
alameda funerária. Estátuas de corceis e de camelos. Uma tartaruga, símbolo da
longevidade, com garotos a cavalo nela. Cigarras, andorinhas e pardais. O
grande jardim. Os canteiros. Vermelho e laranja. Os gladíolos. As telhas
envernizadas. Um quiosque com a tiara de plumas de pica-peixe que pertenceu à
imperatriz. Um túmulo em ruínas, a seguir, porque um bosque sagrado investira
contra o túmulo sem todavia o invadir. Dálias.
Na Cidade Proibida,
onde os imperadores se julgavam no
centro do universo, com a linha do meridiano a passar-lhes por baixo do
sim-senhor, rodeados de concubinas e eunucos,
o que o imperador mais temia era que o assassinassem numa emboscada
saída de cima das árvores. Malraux avista a árvore onde o último dos Ming se
enforcou, no dia em que os manchus entraram em Pequim.
Nos arrabaldes de
Pequim – arrabaldes nessas paragens deve significar uns 400 km. – sei eu que se
pode apreciar a Torre Eiffel, o Arco do Triunfo, a Praça de S.Pedro, o Taj
Mahal, o Big Ben, a torre de Pisa, as pirâmides do Egipto e… e… as torres
gémeas de Nova York. E com um desconto substancial nas dimensões… no esforço
visual, quero eu dizer. Podem apreciar-se estas maravilhas apenas por 1/3 do
seu tamanho real.
Mas também para que me
serviria a Praça de S. Pedro verdadeira e no seu tamanho real e feita em travertino em vez de esferovite? Quando
fizeram essa praça, coitados dos papas e dos artistas renascentistas, ainda não
tinham percebido que Roma, Itália, América, China, Japão e Patagónia era tudo o
mesmo. Pequim, ao menos, contém o mundo inteiro nos seus arrabaldes. Isto
enquanto não o tiver na palma da mão, graças ao seu sistema económico perfeito
e global, graças à lógica esclavagista do seu mercado de trabalho e dos seus
meios de produção. E sem um Tribunal
Constitucional para lhe empatar o serviço.
Essa é que é essa…
Ah graças aos céus, que se vão desanuviando na tardia Primavera, o TC que bruxuleia-candeia! Agradeço a informação e sobretudo, aprecio que se exponha aqui, num lugar comum e (re)conhecido e ao qual me é fácil aceder (tenho blogs onde me escrevinho). Pelo mail lhe farei alguns comentários... mas para já estou BEM satisfeita.
ResponderEliminarAinda não tinha ido ao mundo virtual procurá-lo, às tantas ia dar de caras com a moral que defendo e o meu amigo escreve, mais tarde ou mais cedo!
Abraço
Prevejo para o mundo, em geral, e para o ocidental, em particular, um verdadeiro "perigo amarelo", subreptício, de falas mansas e sorrisos, mas avassalador na sua dimensão planetária...Pobres das gerações futuras!A economia chinesa vai, passo a passo, dominando o mundo.
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